“A comida está a acabar-se” nas zonas ainda isoladas pelo ciclone Kenneth
A chuva deu tréguas no Norte de Moçambique, mas prevê-se que volte, e os rios estão a ameaçar transbordar. Há comunidades que ainda não tiveram auxílio após a passagem de mais uma grande tempestade.
Ernesto Parivos, director de uma escola no distrito de Quissanga, está à espera de sinais de que as águas da cheia baixem. Enquanto isso não acontece, vai vendo a comida a acabar. A sua Escola para os Professores do Futuro foi uma das onze que foram danificadas pelo ciclone Kenneth, que se abateu sobre a província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, na semana passada, e cortou as estradas que conduzem a Pemba, a capital provincial.
Quase uma semana depois da tempestade, que ali chegou com ventos de 280km/hora e que trouxe chuvas intensas que provocaram cheias e deslizamentos de terras, áreas remotas e pequenas ilhas, ainda estão à espera de ajuda e de mantimentos, dizem os serviços de emergência.
Parivos e os cerca de 80 estudantes em regime de internato, bem como todo o pessoal da escola, estão presos ali naquele instituto de formação de professores. “No fim desta semana, a comida deverá ter acabado…”, disse à Reuters, falando por telemóvel.
Das janelas de um pequeno avião, jornalistas da Reuters viram que a idílica ilha de Ibo, com grandes extensões de areia branca, perto da costa de Quissanga, sofreu uma enorme destruição.
Uma clínica na ilha parece ter sido bombardeada e abandonada há muito tempo, com o telhado caído e o pátio cheio de destroços — a cena parece mais de um cenário de guerra do que de um desastre natural.
Numa povoação a norte de Pemba, vêem-se edifícios arrasados e sem telhados, e a mobília e os objectos pessoais de quem lá vivia espalhados entre o entulho.
O ciclone Kenneth chegou ao Norte de Moçambique quando o país ainda está a tentar lidar com o impacto do ciclone Idai, que arrasou a região central de Moçambique há seis semanas, e destruiu a cidade da Beira, a segunda maior do país. O Idai matou um milhar de pessoas.
A tempestade e as fortes chuvas trazidas pelo ciclone Kenneth cortaram as comunicações e obrigaram a ficar em terra aviões e helicópteros que deveriam levar ajuda às populações. Um voo do Programa Alimentar Mundial conseguiu chegar a Quissanga na terça-feira, mas as chuvadas impediram que se realizassem mais. Na quarta-feira, esta agência da ONU conseguiu fazer chegar a primeira ajuda, que incluía biscoitos energéticos e material médico de outras organizações a Ibo, onde os ventos ciclónicos demoliram quase todas as habitações de madeira e arrancaram até a casca das árvores.
Habitantes locais puseram as caixas com a palavra “Ibo” marcada na frente de um armazém perto da pista do aeroporto em camiões, para serem distribuídas. Já começaram os trabalhos de limpeza na ilha, mas há ainda grandes necessidades. “Há tantos factores, ajuda humanitária, água, as doenças que podem surgir… Isto é grave”, disse Marcel Nordin, um técnico auxiliar de emergência médica sul-africano, que estava a ajudar a tirar árvores caídas que bloqueavam uma estrada de terra batida.
O Governo moçambicano diz que o Kenneth provocou a morte de 41 pessoas, mas espera-se que esse balanço aumente, à medida que a ajuda chega a zonas ainda isoladas. Nas Comores, país que também foi afectado, a mortalidade chegou a sete. Nos dois países, 234 mil pessoas foram afectadas pelo ciclone, dizem as Nações Unidas, citando números oficiais.
A chuva parou na quarta-feira, mas prevê-se que volte, pondo em causa a integridade de rios cujo caudal está já muito elevado. Uma análise pedida pelo Departamento Britânico de Desenvolvimento Internacional calcula que muitos rios do Norte de Moçambique atingissem ontem o nível de cheia. Milhares de pessoas vivem nestas zonas de risco.
Em toda a região já afectada pelo Kenneth, mais de 38 mil habitações foram destruídas e 21 mil pessoas estão em centros de emergência, de acordo com números do Governo.
Na escola do Parivos, têm estado a tentar limpar e consertar os estragos, na esperança de que já tenham acabado as cheias. Ontem recomeçavam as aulas, com a esperança de que as estradas fossem desbloqueadas e chegassem mais mantimentos. “Vamos tentar começar uma vida nova”, disse Parivos.