Terminado mais um período escolar, fomos confrontados, eu e milhares de outros professores, com a sempre delicada tarefa de avaliação. Nas reuniões, falou-se de futuro porque os resultados de hoje ditam os potenciais destinos de amanhã, ou contrariam-nos.
À margem dos rótulos pouco abonatórios da opinião pública, o papel dos agentes educativos no desenho de futuro dos jovens não é exclusivo, mas é incontornável. A escola é a estrutura pericial que, regendo-se por temporalidades específicas inscritas na missão de orientar vocacionalmente os jovens, procura dotá-los de conhecimento que lhes permita construir um projecto (profissional) de futuro. Muitos alunos terão consultado o marketing académico da Futurália, confirmando os resultados dos testes vocacionais realizados na escola ou, pelo contrário, vivendo ainda conflitos entre sonho e expectativa, devires imaginados e projecções pragmáticas, até ao derradeiro momento de tomar uma decisão.
Numa altura em que falar de futuro é cada vez mais navegar num estado líquido em que todos os planos imergem e dificilmente encontram onde assentar o pé — a “modernidade líquida” com que Zygmunt Bauman descrevia os novos tempos de incerteza e instabilidade exponenciados pelo dealbar do novo milénio — os millennials são confrontados com a inevitabilidade da escolha, imposta pela família, pela escola, pela sociedade e pela crença da “salvação pelo canudo” que ainda a todos atravessa. E, por isso, enquanto nesses conselhos se discutiam resultados e expectativas, eu pensava particularmente nos meus alunos chegados de outros lugares e nos desafios que as escolhas lhes acrescentam.
Pensava no Nozy, que apareceu na primeira aula do segundo período com um caderno, uma esferográfica (não dizem que basta para transformar o mundo?) e a sua humildade ancestral. De Angola fez-se acompanhar pela mãe, vítima revoltada da fragmentação e da descapitalização da família, e por uma leve bagagem de sonhos que passam pela diplomacia “porque o diálogo é o mais importante”. Eu concordei, mas pus o dedo na ferida, perguntando-lhe se sabia como poderia lá chegar. “Eu vim cá para aprender, ‘stora”. Mal teve tempo para “aterrar” nas disciplinas e evitar sete níveis inferiores a 3, mas houve uma aula, logo das primeiras, em que o Nozy aprendeu o que era o fado e agora emociona-se com os poemas cantados pela Mariza, mesmo sem o Matias Damásio.
Pensava na Nicole, uma cabo-verdiana “despachada”, a declarar pragmaticamente: “Já não dá para sonhar! Agora só vou estudar o que a minha média me deixar. Será que dá para Psicologia?” A média está abaixo de 10 no 1.º ano em Humanidades, curso da insistência de ambos, família e aluna, que psicóloga e professores tentaram contrariar, em vão. Nessa altura, o el dorado prometido falava mais alto, era preciso experimentar.
Pensava no Peter e no seu complexo percurso migratório: Nigéria – Macau – Hong Kong – Arábia Saudita - Portugal. “De todas, esta é a língua mais difícil”. É também onde o Peter deixou de ser top of the class como era habitualmente. Embora todos lhe reconheçam o valor enquanto aluno. “Se não percebes a língua, não consegues tirar mais”, dizem. Em oito meses de língua escolarizada ter média de 12 no 1.º ano de Ciências e Tecnologia só pode ser o resultado de quem já trata o Adamastor por “tu” em quatro línguas diferentes!
Penso nestes e em mais dos meus alunos e nas suas “futurolândias”. Analiso a promessa democrática da escola em garantir a igualdade de acesso às oportunidades a todos os que a frequentam em carácter obrigatório. Observo, com preocupação, o acolhimento de jovens de outros países numa escola que ainda não está preparada para lidar com as diferenças que desafiam a supremacia. Apercebo-me do conflito entre a deriva aspiracional dos alunos, as expectativas condicionadas de todos os sistemas e a fugacidade líquida do futuro. É Abril e há tanto para fazer. Era bom que começássemos.