Como parar a charlatanice que são as medicinas alternativas?
“Regular o charlatanismo é ridículo”, mas é sobretudo estúpido e perigoso. É preciso criar uma cultura em que as pessoas terão vergonha de dizer que foram ao homeopata ou que são homeopatas.
Com a ajuda da Organização Mundial de Saúde, dos nossos partidos, da RTP e de uma população alienada, o lobby dos charlatões das medicinas alternativas continua a vencer. Falamos da acupunctura, fitoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia e medicina tradicional chinesa.
No Prós e Contras desta semana, repetiu-se um fenómeno curioso: perdeu o debate quem tinha toda a razão e sensatez do seu lado. David Marçal e João Júlio Cerqueira, que, entre outros, deram a cara pela razão, são dois dos defensores da medicina convencional mais inteligentes, informados e incansáveis que temos, mas pouco importa a qualidade argumentativa e preparação de quem critica as medicinas alternativas.
A derrota pode ser declarada mesmo antes da primeira intervenção, porque quando se dá palco a um grupo de charlatões o público fica com a impressão de que eles estão ao nível dos médicos e dos cientistas. Não estão, trata-se de uma equivalência tão falsa como pôr astrólogos a discutir com astrónomos.
Mas até esta simples constatação é contraproducente, porque soa arrogante. Os charlatões enredaram-nos num catch 22: se não agimos, eles ganham, mas se agirmos eles ganham também. Parece até que temos de ser cordiais e evitar descrevê-los como charlatões. Como se chegou aqui?
Um dia alguém escreverá uma grande história da charlatanice, cuja origem se perde na memória. Afinal, a ciência e o método científico não têm mais de dois mil anos (e esta será para muitos uma estimativa inflacionada), enquanto a crendice remontará à origem da nossa espécie, que calcorreia a Terra desde há cerca de 200 mil anos. Mas como ninguém tem muito tempo para estes assuntos, podemos começar a 22 de Agosto de 2003.
Foi o dia em que nasceu lei que enquadra as terapias não-convencionais (45/2003), a mãe de toda a péssima legislação que desde então tem vindo a legitimar e beneficiar os charlatões. Seguiram-se várias portarias que regulam várias destas profissões e introduziram termos absurdos da pseudociência no Diário da República. Depois, numa estranha consonância, o PSD, PAN. CDS e BE apresentaram em 2016 projectos de lei com vista à isenção do IVA na prestação de serviços no exercício das terapêuticas não convencionais, tendo a lei passado com votos do PSD, BE, CDS, PEV, PAN e a abstenção do PCP.
É uma lei tão absurda que chegamos a ter pena dos pobres astrólogos, ainda condenados a pagar 23%, e que tem até efeitos retroactivos. A seguir, em 2017, o Bloco propôs que terapeutas das medicinas alternativas com dez anos de experiência na área pudessem ensinar no ensino superior como “especialistas”, mesmo não tenho as qualificações necessárias.
O último delírio legislativo, já em 2018, foi a portaria 45/2018, que regula os requisitos das licenciaturas em medicina tradicional chinesa. Carlos Fiolhais e David Marçal identificaram bem o problema: “O que esta legislação faz é colmatar a falta de provas científicas de eficácia e segurança de várias terapias alternativas, da homeopatia à medicina tradicional chinesa, substituindo-a por portarias e decretos-leis. Permite aos terapeutas alternativos pendurarem nas paredes dos seus consultórios cédulas profissionais passadas pela Administração Central de Saúde, o que induz o público no erro de pensar que estas têm fundamentação científica”.
Por outras palavras, “regular o charlatanismo é ridículo”, mas é sobretudo muito estúpido e perigoso. Viu-se claramente no debate de segunda como Pedro Choy, a grande referência nacional da medicina tradicional chinesa, já se apoia na lei de 2003 e suas sucedâneas para reclamar a legitimidade que a ciência lhe nega. Eles não vão ficar por aqui. Aliás, se depender do PAN, as terapias alternativas farão parte do Sistema Nacional de Saúde.
E assim, depois do insulto indirecto que foi a isenção de IVA, estamos em risco do insulto directo que seria o dinheiro dos nossos impostos ir parar aos bolsos dos aldrabões. Só o recente veto presidencial do diploma do Governo que reconhecia interesse público à Escola Superior de Terapêuticas Não Convencionais nos deu a impressão de que o Estado ainda não está completamente nas mãos dos charlatões, mas é difícil reverter os direitos entretanto adquiridos.
Que esquizofrenia republicana é esta que faz com que um país defenda políticas e medicina com base na evidência, mas também a homeopatia, que não tem qualquer hipótese de funcionar segundo as leis da Física e da Química, mais não sendo do que uma teatralização da intervenção médica? Que autoridade resta a um Estado cúmplice desta aldrabice e como podem estar tranquilos todos aqueles que aprovaram estas leis?
Porque, mais tarde ou mais cedo, vamos perceber que estamos perante tragédias anunciadas e outra que decorre já silenciosamente. As intervenções das terapias alternativas são geralmente inócuas, mas podem matar quando se substituem a terapias eficazes capazes de curar ou retardar o desfecho de uma doença mortal, como diversos tipos de cancro.
Quando comparados com doentes tratados pela medicina convencional, sabe-se que nos pacientes de cancro que recorrem às medicinas alternativas em exclusivo ou como “complemento” da medicina convencional a probabilidade de morte aumenta 2,5 ou 2 vezes, respectivamente.
Mas em momentos de grande vulnerabilidade, mesmo os mais brilhantes, como Steve Jobs, continuam a deixar-se seduzir por charlatões sem escrúpulos que vendem falsas esperanças. Acumulam-se também os casos de mortes que poderiam ter sido evitadas se não se tivesse enveredado pelos tratamentos homeopáticos, particularmente insuportáveis quando as vítimas são crianças filhas de pais irresponsáveis.
É impossível convencer quem já teve uma experiência positiva com as medicinas alternativas de que não há nexo de causalidade (além de um eventual efeito placebo) entre a intervenção a que foi sujeito e a cura. É muito fácil criar a ilusão de cura pela “terapia” porque grande parte das doenças curam-se com o tempo graças ao sistema imunitário. É depois impossível que os nossos diversos vieses cognitivos (nomeadamente o da confirmação) não reforcem a impressão de que o comprimido de coisa nenhuma funcionou além do efeito placebo.
Por outro lado, qualquer má experiência com a medicina convencional (uma realidade) desvia os pacientes para as medicinas alternativas. Estes convertidos são mais fervorosos e empreendedores na promoção das agulhas, mezinhas e comprimidos de coisa nenhuma do que uma testemunha de Jeová, animados pela sua experiência e a desconfiança de raiz conspirativa que os põe contra as farmacêuticas e a medicina convencional. São parte de um emergente culto da irracionalidade que é um efeito secundário e paradoxal do triunfo da razão.
Foi a razão que nos deu as sociedades desenvolvidas em que nos podemos dar ao luxo de pensar que as vacinas não são necessárias (não serão enquanto existir a imunidade de grupo assegurada pela vacinação) e que as medicinas alternativas funcionam (mas todos sabemos que em situações de grande urgência, como aquelas em que o sangue jorra, na verdade ninguém procura as medicinas alternativas).
É também praticamente impossível convencer os indecisos. Estes estão predispostos a acusar os cientistas de cientismo, são presa fácil das palavras encantatórias da pseudociência dos charlatões, não percebem como se gera consenso na ciência, nem como funciona o processo de publicações numa revista científica, nem o que é a validade perpetuamente provisória dos factos científicos.
Os indecisos têm uma simpatia natural pelas medicinas alternativas, encarando a sua aceitação como um exemplo virtuoso de multiculturalismo e, numa sociedade cada vez mais secularizada, sentem-se tentados por uma espécie de redenção pelo contacto com energias cósmicas enigmáticas e pelo culto da Natureza (é o que explica a sintonia e dinamismo do Bloco e do PAN nesta matéria).
Não é com debates que vamos a tempo de reverter o mal entretanto feito. Bem sei que desvalorizar debates numa sociedade aberta levanta suspeitas. Mas organizar um debate com um charlatão é o mesmo que defender combates de boxe em que se sabe que um dos adversários soqueia sistematicamente abaixo da cintura.
Não é fácil explicar a ciência porque temos uma tendência natural para lhe resistir. O heliocentrismo é uma teoria correcta, mas desafia a nossa intuição. A mecânica quântica tem décadas de sustentação empírica, mas é incompreensível para a maior parte dos mais instruídos. Pelo contrário, ao charlatão basta-lhe explorar os nossos receios, manipular a nossa desconfiança e lançar confusão com um artigo desencantado não se sabe bem e que vai contra toda a evidência, mas que citado isoladamente lhe dá uma ilusão de credibilidade. A cada debate, eles ficam mais fortes.
Precisamos de melhorar o SNS (das listas de espera ao tempo das consultas) e de apertar a vigilância às farmacêuticas, claro que sim. Mas precisamos também de uma mobilização geral contra o “lobby” das terapias alternativas. A luta não é para ser travada apenas pela Ordem dos Médicos e não basta alargá-la aos enfermeiros e farmacêuticos. É para ser travada por todos: todas as corporações que se guiam pela evidência, dos engenheiros aos biólogos, todas as associações que se interessam pela promoção e preservação do conhecimento, todos os cidadãos que querem viver numa sociedade que respeita a verdade.
Esta luta precisa também de bom jornalismo de investigação, não do habitual Pôncio Pilatos que se lembra de moderar mais um debate sobre o tema. Digam-nos antes qual a dimensão deste apetitoso mercado. Encontrem casos em que a acupunctura correu mal, casos em que a naturopatia e homeopatia foram perdas de tempo que atrasaram intervenções médicas que poderiam ter salvo vidas, o raríssimo caso do charlatão que tem vontade de desabafar porque algum problema de consciência lhe tira o sono.
Precisamos de histórias pois os números não têm chegado para mudar as opiniões. Não façam é a enésima reportagem neutra com depoimentos de um homeopata e um médico, nem vão à procura do médico que adoptou as medicinas alternativas, sobretudo se não frisarem que se trata de uma excelente oportunidade de negócio. É preciso criar uma cultura em que as pessoas terão vergonha de dizer que foram ao homeopata ou que são homeopatas. Chega de cordialidade.
Sabemos qual o contributo das medicinas alternativas para o bolso de quem as pratica. E para a humanidade, quais foram os contributos da acupunctura, homeopatia e naturopatia? Num programa de entretenimento que antecedeu o Prós e Contras desta semana, uma das perguntas era sobre a varíola, uma doença terrível que poderá ter provocado cerca de 500 milhões de mortes e conseguimos erradicar devido à ciência e a práticas de saúde pública baseadas na evidência. Ver logo a seguir um trio de charlatões com muitos minutos de propaganda pagos pelo contribuinte foi absolutamente revoltante.
A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial da Universidade Nova de Lisboa.