Moderno nunca mais (in memoriam Manuel Graça Dias)

Partilhando a fina ironia de Mark Twain, Manuel Graça Dias dir-nos-ia hoje que as notícias da morte do pensamento pós-modernista foram largamente exageradas, bem como a do irreverente tubo de queda de águas pluviais em forma laçarote que desenhou para o seu projecto de fim-de-curso. Há momentos em que sinais difusos, no ar há já algum tempo, se tornam por fim evidentes; o imaginário do “moderno”, dominante na arquitectura há décadas, é hoje finalmente contestado de forma inequívoca. Não será apenas a inusitada aderência a um imaginário “historicista” no shortlist do prémio Europeu Mies van der Rohe 2019, com as prominentes vigas metálicas cor-de-laranja e caixilharias verde-alface dos belgas Vylder Vinck Taillieu a recordarem-nos o vigor desse distante imaginário. Até a recente atribuição do prémio Pritzker ao metabolista e proto-pós-modernista Arata Isosaki parece fazer parte do alinhamento desta nova constelação crítica. Torna-se assim manifesta a mudança no panorama da arquitectura deste continente dissoluto que persiste, para todos os efeitos, em marcar o compasso internacional do pensamento e da produção de obra relevante. Gostaria, porém, de voltar um pouco atrás.

Em 1980, a Bienal Arquitectura de Veneza tinha o provocante título, The Presence of the Past: The End of Prohibition. Comissariada por Paolo Portoghesi, a exposição marcava um momento de clivagem estética sem precedentes desde o pós-guerra. E, principalmente, uma declaração de morte ao pragmatismo tecnocrático do projecto moderno. Esta “proibição”, em subtítulo, remetia na verdade para uma espécie de celebração do fim de uma “lei seca” sobre a utilização da história como instrumento operativo do projecto ou, em termos práticos, do uso de elementos compositivos clássicos. Não cabe aqui explanar quer sobre a bondade dos princípios, quer sobre o rastilho caricatural da sua exploração comercial. Sabemos que em Portugal foi particularmente equívoco e inflamatório, com uma ruptura crítica assumida entre as escolas de arquitectura de Lisboa e Porto que, à boa maneira portuguesa, a exposição itinerante Tendências da Arquitetura Portuguesa, de 1987, tentaria reconciliar, ao associar Alvaro Siza a Tomás Taveira, Luiz Cunha, Raul Hestnes Ferreira e Manuel Vicente.

Mas capitulado por congestão, o colapso do vaudeville pós-modernista deu lugar à reificação de um imaginário moderno, assumidamente retardatário e largamente ancorado na matriz marxista de Kenneth Frampton, por sua vez construída em torno de Habermas, Vattimo e Gadamer, entre outros. Pelo seu carácter assumidamente abstracto e não-referencial, e com um passado ideologicamente imaculado, este “novo-moderno”, com pequenas inflexões aqui e ali, tornar-se-ia a expressão dominante das décadas seguintes; uma espécie de “fim-da-história” da arquitectura.  Porém, não foi só Fukuyama que se sentiu traído. Ao abdicar de uma ideia de linguagem, dotada de uma gramática capaz de gerar “significado” através da forma, tal como Umberto Eco a preconizara na sua teoria da semiótica, a arquitectura reduziu o campo disciplinar a “tecnológicos” e “fenomenológicos”, sendo que em ambos o gradual esvaziar do discurso crítico ocorreu em paralelo com o seu inegável sucesso formal. Aprisionada numa dialéctica em torno de um materialismo “físico”, a arquitectura ficou então suspensa entre a verdade tecno-científica das doutrinas da construção, e a sedução dos discursos auráticos sobre o corpo, a matéria e o lugar. Canonizado, mediatizado e globalizado, o seu estertor — o minimalismo — capturou o imaginário lifestyle e informou as novas burguesias das gerações X e Y de como viver em plenitude a contemporaneidade. Repetidas à exaustão, expressões como pele, matéria, espessura, massa, escavado, cheio e vazio, constituíram um léxico geracional em que em boa verdade poucos acreditavam. 

Entretanto, destituídas ao limite pela voragem da Grande Recessão de 2008, que afinidades poderiam as novas gerações ter pelos universos autocontemplativos do introspectivo asceta dos alpes suíços, Peter Zumthor, ou da brilhante Kazuyo Sejima, ilusionista da transparência? Que verdade poderiam encontrar nos coffee-table books de outros profetas da pureza, como John Pawson ou Valerio Olgiati? No início do século, Wilfried Wang advertia já para o que entendia ser a redução das ambições sociais e ecológicas do projecto moderno a meras operações estéticas de formalização elitista e inconsequente. A tão criticada “cardboard architecture” de Eisenman, não acabaria afinal sublimada pelo minimalismo “boutique”, ainda que sob o mantra de uma “essencialidade” de gesso cartonado?

Quase 40 anos depois, o título da Bienal de Chicago de 2017 era Make New History, um oximoro que se fazia acompanhar do subtítulo Krausiano: Look back and move forward. Este evento cada vez mais nos parece ter sido o epicentro de uma mudança com uma força disruptiva semelhante à do pós-modernismo, onde o lastro histórico da exposição Late Entries to the Chicago Tribune Tower — em que 17 arquitectos, entre eles o atelier Barbas Lopes, foram convidados a criar maquetes de arranha-céus numa homenagem ao livro de Stanley Tigerman de 1980 e por sua vez ao célebre concurso de 1922— poderá vir a colocá-la num plano semelhante à Strada Novissima de Portoghesi. Mérito de Diogo Seixas Lopes e André Tavares, esse trajecto, essa refundação, parece ter o seu embrião um ano antes, na presciente Trienal de 2016, já que muitos dos autores e projectos convocados por Lisboa são comuns a Chicago; e ainda que de alguma forma alheada da cultura anfitriã, já que à arquitectura portuguesa, imersa no de profundis do “moderno”, toda esta problemática lhe era, e é, relativamente excêntrica.

Porém, e espelho do nosso tempo, este “regresso à história” não parece circunscrito à advocacia de um modelo ou de uma frente ideológica comum, como no passado. Apesar da sua imensa vitalidade, surge num clima de névoa, gasoso e atomizado, que congrega autores consagrados que reinventaram e enriqueceram a sua pesquisa (6A, Bruther, Caruso St John, Mary Duggan, Office KGDVS, Sergison Bates ou o português Bak Gordon); com jovens turcos sem preconceitos de desenho na relação entre a história e o presente (EMI, Gafpa, Lütjens Padmanabhan, Made In, Monadnock ou Ted’A); com a redescoberta de autores prematuramente descartados ou excêntricos à historiografia autorizada (Alberto Ponis, James Wines, Luigi Caccia Dominioni ou Hans Kollhoff). Claramente, desenha-se um arco de sensibilidade crítica comum entre Inglaterra, Bélgica, Suíça e alguns franceses, e que por sua vez parece alheio a geografias que no passado recente tiveram uma enorme importância, nomeadamente, Portugal, Espanha e Holanda — no caso português, em concreto, não se trata de falta de ‘escola’ ou visibilidade, mas de um crescente academismo e ausência de irreverência que conduz a um inevitável esgotamento do reportório formal e crítico. Neste contexto, as expectativas para a proposta crítica que emanar da Trienal de Lisboa 2019 de Éric Lapierre não podem obviamente deixar de ser altas, e seguramente no campo oposto à Bienal de Veneza da Hashim Sarkis no ano seguinte; com o campo crítico mais uma vez a extremar-se entre a sensibilidade tectónica da arquitectura europeia e o formalismo gráfico e ideológico da academia americana.

É difícil ser o oráculo de um tempo inorgânico e incapaz de gerar manifestos. O duvidoso name dropping que aqui fiz, numa tentativa de clarificar o leitor, deixa-me desconfortável quanto a sua fiabilidade e abrangência. No entanto, e sem prejuízo de todos os problemas da profissão, admito que a história da arquitectura venha a reconhecer este, desde há décadas, como um dos seus mais estimulantes momentos. Ainda assim, escrever sobre o presente é sempre tão arriscado, quanto insensato. É desafiar as probabilidades através de simplificações que raramente se revelam certeiras. E se nem Sigfried Giedion acertou, ao excluir Adolf Loos de Space Time and Architecture, quem sou eu para vos convencer?

Sugerir correcção
Comentar