O legado de Graça Dias
Manuel Graça Dias vivenciou a arquitectura não como uma militância política – apesar de ter sempre assumido a sua linhagem socialista –, mas como um modo de pensar o mundo.
A morte prematura de Manuel Graça Dias vai obrigar uma geração inteira a perscrutar as suas opções no interior da arquitectura portuguesa e a colocar a questão do seu próprio legado. Essa geração é a minha. É a geração que, nascida durante os anos 60 do século passado, passou a década de 1980 pelos corredores e salas da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, no Convento de S. Francisco ao Chiado, onde Graça Dias ensinava. É a geração que se manteve ambivalente em relação à cultura pós-moderna e que, eventualmente, num tempo posterior, haveria de descartar essa mesma cultura, como quem se desembaraça de um passado pouco glamoroso, nostálgica de uma escola – a do Porto – que não era a sua. É a geração que negou a visão optimista que ser um arquitecto pós-moderno exigia.
Manuel Graça Dias não foi um optimista até ao fim por opção, mas porque a sua visão de mundo o obrigava a esse esforço. A sua carreira enquanto arquitecto foi voluntariamente traçada sobre a hipótese de trabalho que a pós-modernidade trouxe para o exercício da própria arquitectura – possibilidades de a disciplina arquitectónica reencontrar a sua vocação humanista, um caminho deambulante entre as artes, a literatura, ou o cinema.
Uma forma culta de regressar ao cerne do debate arquitectónico para lá do funcionalismo mecânico ou da estrita tecnologia, vertentes da construção, que, aliás, nunca lhe interessaram demasiado. Se os tratados do Movimento Moderno estavam repletos de regras, positivismo e intransigência, os tratados pós-modernos eram odes à prática diletante e à especulação, dificultando o processo. Daí, em certa medida, o optimismo.
A arquitectura de Manuel Graça Dias – que a partir de 1989 haveria de ser também a de Egas José Vieira, seu parceiro no escritório Contemporânea, Lda – perseguiu a complexidade que ser pós-moderno representava e que era também uma forma de sofisticação face ao elementarismo arquitectónico que genericamente se praticava nos anos que envolveram a Revolução de Abril de 1974. Formado após o PREC (Período Revolucionário em Curso), Manuel Graça Dias vivenciou a arquitectura não como uma militância política – apesar de ter sempre assumido a sua linhagem socialista –, mas como um modo de pensar o mundo.
O arquitecto, acreditava, era portador de uma cultura própria, construída a partir de experiências múltiplas, de conhecimentos acumulados, de sensibilidades artísticas – eventualmente partilhadas entre pares – que transferia para o território, para a cidade, para o edifício. Por isso, coleccionava “arquitecturas” como quem elabora pacientemente o seu “museu imaginário”. Essas arquitecturas não tinham estilo, não tinham autor, não tinham origem.
Manuel Graça Dias tanto se emocionava com uma igreja românica, como com uma construção clandestina, um muro, uma janela desalinhada, uma fachada torta, uma pala à procura de apoio. Falar sobre arquitectura com Manuel Graça Dias era exactamente isso, embarcar numa viagem sobre expressões estéticas, soluções inteligentes, desenhos inventivos. Como qualquer outro criador generoso, Manuel Graça Dias estava sempre à espera do sinal de inteligência do outro, quer fosse estudante, quer fosse cliente, quer fosse arquitecto.
Tem-se escrito muito nestes dias sobre a arquitectura de Manuel Graça Dias, desde a esplêndida aventura pelas terras transmontanas – de que o edifício “Golfinho” (1985) foi a primeira pedra-de-toque –, passando pela loja à Rua do Carmo (hoje destruída) da estilista Ana Salazar, pela síntese pós-modernista que foi o Pavilhão de Sevilha (1992), até ao Teatro Azul (2008), em Almada, o seu principal testemunho arquitectónico. Pouco se tem escrito, contudo, sobre as suas incursões ao mundo proibido da arquitectura informal ou clandestina, que descreveu como lugares da invenção, em programas de televisão nos anos de 1990 ou em rubricas de rádio.
A recuperação da arquitectura de emigrante seria interpretada por Graça Dias como um valor provável numa paisagem granítica e demasiado imóvel (uma metáfora do próprio país). Mais recentemente, têm existido rumores de que as ideias de Manuel Graça Dias sobreviviam mal. Parece-me hoje evidente – um dia após a sua morte – que as expressões arquitectónicas apoiadas em visões culturalistas, como a que cultivava, estão em processo regressivo. As gerações contemporâneas regressaram à arquitectura como um meio de activismo primário que convive mal com imaginários forjados em ambientes ligados às disciplinas das humanidades. Manuel Graça Dias jamais seria condescendente com as novas reivindicações que trouxeram novos modos de intransigência e a superficialidade dos discursos. Para si, a liberdade do indivíduo nas suas diversas manifestações – inclusive a arquitectónica – era um bem demasiado precioso. O lugar da sua arquitectura na cultura contemporânea coloca-se exactamente aí – na dimensão e exercício da liberdade também como forma de erudição.