Verdades cristalinas

“O material tem sempre razão”, ouvimos com frequência. Mas tal razão nem sempre vinga. Sabia que elementos da nossa linguagem, que associamos à pureza, à limpidez e mesmo à beleza, reflectem uma visão distorcida do mundo fascinante dos materiais?

“Água pura, cristalina.” Já ouvimos expressões iguais ou parecidas em anúncios de água engarrafada ou de praias paradisíacas. A questão não é denunciá-las como publicidade enganosa, mas dito assim é como se nos estivessem a tentar vender gelo ou uma viagem à neve... Sim, que é no estado sólido que a água assume uma configuração cristalina, não no líquido. É cristalina no sentido de ser transparente? Aceita-se isso. Só que inúmeros materiais cristalinos, tais como cerâmicos ou metais, normalmente até são translúcidos (transmitindo a luz, mas de forma turva) ou mesmo opacos. O dicionário permite o vocábulo “cristalino” para designar um objecto límpido, mas – sem querer assumir o papel de polícia da linguagem – a melhor palavra para descrever essa característica desejável da água não seria mesmo o termo “transparente”? Na vida pública apreciamos a transparência. Sem abdicar da liberdade semântica, eis aqui outra área, o rigor da linguagem, onde a devemos valorizar.

Mas a confusão não acaba aqui. Pense-se numa prenda elegante e certamente que um conjunto de peças de “cristal” pode surgir como uma boa opção. Há aqui todavia um problema: é que esse “cristal” não é... cristalino. Como assim? Precisamente um dos aspectos que é mais ignorado relativamente aos materiais com que lidamos no dia-a-dia é o facto de muitos deles possuírem uma estrutura cristalina: à nano-escala eles apresentam uma unidade estrutural – normalmente um pequeno conjunto de átomos, também chamado de motivo – que se repete periodicamente no espaço, dando assim origem ao cristal. Tão simples quanto isso. Tais materiais são estudados numa disciplina fascinante chamada Cristalografia, que se situa numa encruzilhada de várias Ciências (Física, Química, Geologia, Biologia, Ciência de Materiais, Matemática) e que já gerou pelo menos duas dezenas de Prémios Nobel.

Um deles é particularmente notável, por várias razões, incluindo aspectos familiares pouco... transparentes. William Henry e Lawrence Bragg são até hoje a única equipa de pai e filho a receber conjuntamente essa distinção. Nepotismo? Pelo contrário! É que o pai W.H. chegou a publicar trabalhos conjuntos sem colocar Lawrence como co-autor, exibindo aquela austeridade vitoriana de apenas agradecer a ajuda do filho, mas sem o nomear. Ambos trabalharam na aplicação dos raios-X para determinar a estrutura cristalina de substâncias como o cloreto de sódio (o sal das cozinhas) e o diamante, sendo que a contribuição do filho foi mesmo decisiva, visto que foi ele quem descobriu a lei de... Bragg, que até hoje é estudada no 1.º ano de muitos cursos universitários de Ciências e Engenharias. Lawrence Bragg continua a ser o laureado em Física mais novo de sempre, tendo recebido esse prémio em 1915 aos 25 anos.

Regressemos à confusão (da linguagem), falando de desordem e de ordem. Um vidro é uma substância dita amorfa, onde os átomos se dispõem de forma não regular, ao passo que um cristal é um material atomicamente periódico, ordenado. Falar dum “vidro cristal” é assim uma contradição, um oximoro (tal como “silêncio ensurdecedor” o é). Por que se usa então essa designação para alguns vidros? Por razões comerciais e históricas. Mediante a adição de certas substâncias (por exemplo óxido de chumbo), consegue-se produzir peças com transparência e brilho semelhantes aos de alguns cristais naturais, como o quartzo.

Não se está aqui a sugerir confrontar publicitários ou vendedores de belas peças de vidro com estes factos, que obviamente se revestem de um carácter algo técnico. O objectivo aqui também não é condenar hábitos arraigados de linguagem. Mas é digno de nota que muitas expressões de uso corrente, quando analisadas sob o prisma dos materiais, acabam por nos revelar conceitos simples e de aplicação frequente. Verdades cristalinas, em suma.

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