Psicadélicos ao pequeno-almoço?
A microdosagem de substâncias psicadélicas e o (pouco) que se sabe sobre esta prática.
Imaginemos um cenário em que o café fosse subitamente tornado ilegal. Em que o acesso a produtos contendo cafeína fosse difícil, dispendioso, e a sua venda e consumo sujeitos a estigma e potencial criminalização. Em que cheirar o aroma do café e bebê-lo fossem experiências reservadas a muito poucos, e possível apenas em ambientes discretos e reservados...
Que valor passaríamos a dar à experiência de consumir café, tal como a conhecemos hoje? Que atitude teríamos sobre a possibilidade dos nossos filhos (hoje demasiado novos para ter consumido café livremente) poderem vir um dia a saborear e aproveitar os benefícios do café? Que opinião teríamos daqueles que hoje se envolveriam na descriminalização e eventual legalização — para venda livre, imagine-se! — do grão de café e dos seus derivados?
O café é habitualmente ingerido como um estimulante, para aumentar a vigilância e diminuir a sonolência, e também para aumentar a concentração e a capacidade cognitiva. Parece também ajudar a manter estados de humor mais positivos. Os seus efeitos são temporários, bem tolerados e facilmente conjugáveis com o trabalho e outras actividades habituais. O café não deixa sequelas físicas ou psicológicas e embora exista alguma habituação (e sintomas de abstinência, como as dores de cabeça), a “dependência” de café não é um problema social. Mas não há dúvida alguma de que a cafeína, tal como o tabaco e o álcool, tem efeitos psicoactivos no ser humano. Em alguns aspectos, os efeitos da cafeína não são muito diferentes dos efeitos de uma dose de LSD ou psilocibina em quantidades reduzidas.
O microdosing (ou microdosagem) com substâncias psicadélicas é uma modalidade de consumo que consiste na toma regular — por exemplo, duas ou três vezes por semana — de quantidades pequenas de LSD ou psilocibina (aproximadamente um décimo de uma dose do que se considera normal), sem que isso provoque uma viagem psicadélica ou impeça as tarefas do dia-a-dia. Pelo contrário, e à semelhança do café, pode ter efeitos benéficos nas nossas emoções, pensamentos e comportamentos, sem consequências indesejáveis de relevo. Recentemente, o tema foi objecto de um livro muito popular, A Really Good Day, da autoria de Ayelet Waldeman, uma escritora norte-americana que havia sido advogada na luta contra as drogas e que revela a sua experiência com microdoses de LSD, durante um mês, para combater (com sucesso) uma depressão profunda e reincidente. Actualmente, a autora é proponente de mais investigação sobre o tema, antes que a prática possa ser recomendada de forma generalizada.
Alguns factos sobre microdosing:
- Segundo alguns relatos, o inventor do LSD, o químico Suíço Albert Hofmann, parece ter sido adepto desta prática, que terá adoptado regularmente nas últimas décadas da sua vida;
- o psicólogo James Fadiman ficou recentemente conhecido como o principal promotor desta prática, tendo proposto no seu livro The Psychedelic Explorer’s Guide... o protocolo de utilização mais utilizado actualmente;
- Fadiman e uma colaboradora recolheram e organizaram centenas de testemunhos de utilizadores de psicadélicos em microdoses, reportando efeitos positivos em áreas como a depressão, a criatividade e a produtividade (estudo não publicado). Mas há também relatos de reacções menos positivas, como por exemplo aumentos na ansiedade e alterações no sono;
- ao contrário de estudos com dose elevadas (ou “habituais”), muito poucos estudos foram até hoje realizados com microdosagem e os existentes não têm metodologias robustas. Os resultados apontam para que seja uma prática segura, mas os efeitos reportados, embora tipicamente positivos, são ainda demasiado preliminares para poderem fornecer indicações válidas;
- O Global Drug Survey 2018 indica que cerca de 30% dos utilizadores de LSD experimentou a microdosagem no ano anterior ao inquérito.
- a utilização de microdoses de psicadélicos tornou-se moda, na última década, entre engenheiros e programadores informáticos de Silicon Valley, na expectativa de estimular a criatividade, a resolução de problemas complexos e o pensamento divergente (“fora da caixa”)