A nova vida das drogas psicadélicas
Desde a antiguidade que o Homem consome substâncias que induzem estados alternativos de consciência. Nos anos 1960/70 as drogas psicadélicas abanaram de tal forma a sociedade que foram proibidas e excomungadas. Mas resistiram e hoje assiste-se ao seu ressurgimento, agora com o apoio das neurociências e a promessa de alterarem para sempre a compreensão da mente humana e de algumas das suas aflições.
Em 2008, 36 voluntários saudáveis participaram num estudo na Universidade Johns Hopkins (EUA), onde ingeriram uma dose da droga psicadélica psilocibina. A psilocibina é uma substância quimicamente semelhante ao LSD e que produz efeitos comparáveis. Depois dessa sessão, 80% dos participantes classificaram a experiência como estando entre as cinco experiências pessoal e espiritualmente mais significativas das suas vidas. Para metade deles, esta foi considerada a experiência mais marcante das suas vidas até então. Estes resultados foram confirmados um ano após a experiência e foram também validados com amigos e familiares dos participantes, através de entrevistas.
Em 2010, 51 doentes com cancro potencialmente terminal participaram num estudo na mesma universidade e com a mesma substância, tendo como objectivo reduzir a depressão e ansiedade habitualmente associadas ao risco de morte. O estudo é ainda hoje considerado um marco, pois a maioria dos participantes viu a sua depressão e ansiedade reduzidas de forma significativa, com resultados muito superiores ao observado habitualmente com fármacos. Após seis meses, 80% dos participantes reportavam reduções significativas nos sintomas de depressão e ansiedade e melhorias significativas nas atitudes acerca de si próprios e da vida, no seu humor e qualidade de vida, e na qualidade dos seus relacionamentos — atribuindo as melhorias à sua experiência com aquela droga. Novamente, os resultados foram confirmados por terceiros de forma independente.
Embora sejam preliminares, estes resultados — e outros deste tipo em áreas como a dependência de tabaco e álcool, o stress pós-traumático ou a perturbação obsessivo-compulsiva — têm levado a que se assista hoje a um renascido interesse por parte de investigadores, médicos, psicólogos e responsáveis de saúde pública pelos efeitos no ser humano de substâncias como o LSD ou os “cogumelos mágicos” (onde a psilocibina ocorre naturalmente), habitualmente incluídas na categoria de “drogas psicadélicas”.
Ilegalizados (e estigmatizados) nos anos 60 do século passado, estes compostos concentram hoje a atenção de universidades e centros de investigação por todo o mundo como terapia para inúmeras patologias com resultados tão promissores como surpreendentes. Será possível que substâncias tidas como drogas ilícitas com efeitos nefastos na saúde possam, afinal, conter soluções para tratar aquelas patologias? Em vez de uma bad trip, estaremos perto de “viagens” que representam uma mudança de paradigma para a saúde mental, se não mesmo para a compreensão da mente humana? Uma análise atenta à história destas substâncias, bem como descobertas recentes no âmbito da psicologia e das neurociências fazem muitos — e em número crescente — acreditar nesta possibilidade. O famoso jornalista de ciência norte-americano Michael Pollan é um deles. Nos últimos tempos, à boleia da publicação do seu mais recente livro (How to Change Your Mind…, ainda não publicado em Portugal), Pollan tem-se desdobrado em iniciativas que revelam os contornos deste novo caminho.
O “pollanizador” psicadélico do século XXI
Michael Pollan é um reconhecido e galardoado escritor, jornalista e professor de jornalismo de ciência na Universidade de Harvard. Na última década e meia revolucionou o discurso público nos EUA, e no mundo, sobre o tema da produção, distribuição e consumo alimentar, com livros como Saber Comer, O Dilema do Omnívoro e Cooked, publicações que acompanhou com uma intensa actividade e activismo públicos.
Em 2015, Pollan decidiu investigar a história das substâncias psicadélicas, a mais conhecida das quais a mal-afamada dietilamida de ácido lisérgico ou LSD. Pesquisou o tema durante vários anos e no livro How to Change Your Mind: The New Science of Psychedelics descreve uma realidade até agora largamente desconhecida: desde a origem do LSD na Suíça em 1938 e os relatos das primeiras trips — a mais famosa das quais a do próprio “inventor” da molécula, o químico Suíço da empresa Sandoz, Albert Hofmann (em 1943) —, passando pela sua criminalização e estigmatização em todo o mundo no final dos anos 1960, até ao seu ressurgimento já no século XXI.
Conhecido pelo “jornalismo de imersão” que pratica, Pollan relata também as suas próprias experiências, não só com LSD mas também com “cogumelos mágicos” (que têm como componente activo a substância psilocibina), com a bebida ayahuasca, e também directamente com inalação de DMT, o componente activo naquela bebida e um dos mais potentes psicotrópicos. Mas mais do que os detalhados relatos pessoais das “viagens” do autor, o que o livro deixa gravado no leitor é um conjunto de interrogações difíceis de ignorar no campo da medicina e saúde mental, mas também de teor cultural, social e até político, que alimentam a crença de Pollan no elevado potencial destas substâncias de características tão particulares, se utilizadas de forma consciente. No final do livro, fica a ideia de que não estamos apenas perante mais uma classe de “drogas” cujo consumo a sociedade deve simplesmente combater.
Segurança e estigma
O que é mais surpreendente acerca dos compostos psicadélicos, tendo em conta a percepção popular generalizada a seu respeito, é a constatação de que estas substâncias parecem ser seguras e não causam dependência. Estes compostos têm sido consumidos ao longo de muitas décadas (na verdade há muito séculos, se considerarmos os usos tradicionais) e as tomas individuais ascendem aos milhões. O psicólogo e psicoterapeuta James Fadiman, um dos mais conhecidos divulgadores da “ciência dos psicadélicos”, estima que 23 milhões de americanos tenham experimentado LSD desde que foi tornado ilegal no final dos anos 60 (antes disso, o consumo era ainda mais generalizado). Em 2014, o Drug Policy Alliance estimou em 34 milhões o número de americanos que usou psicadélicos. Surpreendentemente, tendo em conta a sua má reputação, não existem registos de overdoses fatais, havendo no entanto relatos esporádicos de acidentes graves, geralmente resultado de quedas ou atropelamentos. Com ironia, Fadiman refere no seu livro Psychedelic Medicine: The Healing Powers of LSD, MDMA, Psilocybin and Ayahuasca: “Nos EUA, o tabaco causa 400 mil mortes por ano, o álcool causa 150 mil mortes e os amendoins causam 100 mortes. Os psicadélicos não estão sequer na lista!”
Vários estudos e relatórios recentes estimaram o risco destas substâncias por comparação com outras drogas, lícitas e ilícitas, comparando por exemplo a taxa de visitas a serviços de emergência no hospital — e verifica-se que estão sempre entre as menos perigosas. Um destes trabalhos, o Inquérito Global sobre as Drogas (Global Drug Survey) de 2018 conclui que os “cogumelos mágicos” apresentam as taxas mais baixas de visitas ao hospital de entre 13 substâncias estudadas, com o LSD e MDMA também entre as menos reportadas (e todas atrás do álcool). Uma outra análise efectuada por um conjunto de 40 peritos europeus estimou o risco de dano causado ao próprio e a terceiros de 20 substâncias, com base em 16 critérios diferentes, e chegou a uma conclusão similar (ver gráfico). Neste estudo, o álcool foi considerada a substância mais perigosa, a uma razoável distância das restantes, enquanto os “cogumelos mágicos” foram novamente os mais seguros.
Não obstante esta realidade, existe um franco consenso de que as substâncias psicadélicas não devem ser consumidas por pessoas com doença prévia do foro mental, nomeadamente esquizofrenia ou outras psicoses, ou com risco elevado de as desenvolver. Para evitar que isto aconteça, os estudos actuais em curso incluem no seu protocolo uma avaliação psicológica dos participantes e um acompanhamento médico e psicoterapêutico de toda a experiência.
Na última década e meia, estima-se que mais de mil pessoas tenham tomado LSD ou psilocibina em contextos de investigação e não existe qualquer relato de problemas com participantes, sejam psicológicos ou físicos. Ou seja, os “viajantes” de LSD e de compostos similares reportam frequentemente experiências que, podendo ser intensas e ficar na memória, não parecem colocar em risco nem a sua saúde nem a sua segurança ou a de terceiros.
Não é sem razão que o LSD era, nos anos 60 do século passado, descrito como a droga “da paz e do amor” e o livro de Michael Pollan explica detalhadamente como mitos de suicídios em massa, homicídios e agressões, assim como outros efeitos traumáticos ou nefastos para a saúde do consumo deste “ácido” são infundados. E como foram até, em boa parte, premeditadamente disseminados (ou reforçados) com finalidades políticas associadas à repressão de correntes antissistema e antiguerra da era de Nixon como Presidente dos EUA (1969-1974). Não existe, por exemplo, nenhuma evidência científica para a crença, ainda hoje comum, de que o consumo de ácido lisérgico “queima” ou destrói as células nervosas do cérebro. Pelo contrário, como referiu ao P2 Dráulio Araújo, professor no Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte no Brasil, “estudos utilizando modelos experimentais de células tronco e minicérebros sugerem que componentes da ayahuasca induzem a neurogénese e incrementam processos de plasticidade neural”. Ou seja, em vez de destruir células nervosas, estas substâncias podem até potenciar o seu crescimento e interligação.
Neste cenário, uma comparação objectiva entre a segurança das substâncias psicadélicas e a de substâncias como o álcool e o tabaco impõe-se de forma clara. Estes últimos são reconhecidamente tóxicos para o organismo humano e nocivos para a saúde. E são também aditivos, sobretudo o tabaco, cujo consumo é um dos principais problemas de saúde pública no mundo. No caso do álcool, o consumo está associado a comportamentos de risco graves (por exemplo, acidentes de viação) e é frequente o seu abuso, com efeitos fisiológicos marcantes e consequências por vezes fatais. Paradoxalmente, o tabaco e o álcool são legais, são socialmente tolerados e são acessíveis à generalidade da população, incluindo menores. Pelo contrário, os psicadélicos são ilegais, criminalizados e estigmatizados em praticamente todo o mundo. O que não deixa de ser contraditório, considerando os efeitos no cérebro e no comportamento humano que a ciência vai revelando de forma cada vez mais clara, como se descreve a seguir.
Psicadélicos para tratar o quê?
Em Outubro de 2018, as conferências Horizons: Perspectives on Psychedelics e o colóquio Psychedelics in Psychiatry reuniram, em Nova Iorque e Estocolmo respectivamente, dezenas de especialistas para discutir o uso actual destas substâncias. Foram apenas duas das muitas conferências que decorrem anualmente sobre este tema, por todo o mundo, onde investigadores, médicos, psicólogos e outras pessoas ligadas ao tratamento da saúde mental e à psicologia discutiram o estado da arte do conhecimento e da terapêutica neste domínio.
Em síntese, o que os resultados recentes vão revelando — a par das indicações dadas por mais de mil estudos publicados nos anos 50 e 60 do século passado, envolvendo mais de 40 mil participantes — é suficiente para se acreditar que estamos num período de transição na utilização de substâncias psicadélicas. E que, talvez muito em breve, o mainstream da ciência, da medicina e da psicoterapia vão colher os frutos deste fenómeno. A progressiva legalização do uso médico da marijuana (cannabis) e mesmo a sua legalização para venda livre no Canadá (situação pioneira no mundo), bem como iniciativas recentes em alguns Estados norte-americanos para descriminalizar o consumo pessoal dos “cogumelos mágicos”, são exemplos do que poderá vir a seguir-se para as substâncias psicadélicas.
São várias as áreas (ver tabela) em que o uso de substâncias psicadélicas foi já testado, em instituições académicas como a New York University, a Universidade de Zurique ou o Imperial College em Londres, entre outras em países como Espanha, Canadá, Nova Zelândia ou Israel. Uma das mais promissoras é o uso da psilocibina para o tratamento da depressão resistente. Depois de um estudo piloto com um número reduzido de participantes, mas com resultados promissores (ver gráfico), um grupo de investigação no Imperial College tem já em curso um novo estudo de maiores dimensões a finalizar ainda em 2019. A psicóloga clínica Rosalind Watts coordena o ensaio clínico e resumiu ao P2 a metodologia: “Vamos comparar a psilocibina com um medicamento antidepressivo do tipo SSRI [inibidor selectivo da recaptação da serotonina]. Cinquenta participantes com depressão vão participar no estudo entre Janeiro e Setembro de 2019. Vamos usar imagens do seu cérebro através de ressonância magnética e também medidas tradicionais de sintomas depressivos para avaliar os resultados principais após seis semanas da administração da terapia. Faremos depois uma entrevista individual final, após seis meses.”
Um outro estudo com doentes com depressão resistente a tratamento, mas desta vez utilizando a bebida ayahuasca no Brasil, resultou também em reduções significativas nos sintomas de depressão em 35 participantes. Com base nestes e noutros estudos, nomeadamente com doentes com cancro avançado e sintomas de depressão e ansiedade relacionados com esse diagnóstico, está agora a iniciar-se um estudo de maiores dimensões, financiado pela empresa Compass Pathways, que irá decorrer em vários países da Europa e irá abranger mais de 200 participantes com depressão. Será um estudo de fase IIb, destinado a testar os efeitos de várias dosagens de psilocibina em doentes com depressão resistente. Se for bem sucedido, dará origem a estudos de fase III, destinado a comparar uma dose óptima com placebo ou com medicação de referência.
O psiquiatra e professor universitário Albino Maia, da Fundação Champalimaud e da Nova Medical School, conhece em detalhe a metodologia do estudo, que descreve como “crítico para testar o real potencial terapêutico da psilocibina naqueles doentes com depressão que são mais difíceis de tratar”. O também director da Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Clínico Champalimaud — cuja equipa tem vindo a receber formação para poder trazer para Portugal alguns dos ensaios clínicos internacionais com psicadélicos — sublinha que “o facto de se pensar que a psilocibina possa resultar num efeito terapêutico de início rápido e duração longa após uma única administração é o que motiva maior interesse clínico neste tipo de tratamento”. Acrescenta ainda: “Terá sido seguramente também por isso que, nos EUA, a FDA atribuiu ao ensaio da Compass o estatuto de breakthrough therapy [terapia inovadora], reconhecendo o potencial impacto deste tratamento na saúde pública, caso se venha a verificar que é de facto eficaz.”
Outra área importante é a do tratamento do stress pós-traumático com utilização de MDMA (ou ecstasy), uma vez que decorrem já estudos de fase III, antecipando-se que no final de 2019 ou em 2020 este composto seja autorizado para aplicação médica em contexto psicoterapêutico (nos EUA). Actualmente, a associação norte-americana MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Research) tem a decorrer um extenso programa de formação de profissionais especificamente para este efeito, com o objectivo de preparar cerca de 300 terapeutas até 2021. Esta associação é a principal referência mundial na divulgação destas terapias e na formação de profissionais para o que hoje se designa “tratamento psicoterapêutico assistido por psicadélicos”.
Em Portugal, existem vários psicólogos e outros terapeutas que têm adquirido experiência e iniciado a formação nesta área específica, através de programas de treino oferecidos na Europa, quer pela MAPS quer pela empresa Compass, com vista a apoiar futuras investigações com MDMA e a psilocibina, respectivamente. Uma das pessoas que têm integrado esses treinos, por indicação da Unidade de Neuropsiquiatria do Centro Champalimaud, é o psicólogo e psicoterapeuta João da Fonseca. Ao P2 referiu que “estas formações são espaços seminais de aprendizagem e partilha com profissionais que se dedicam há décadas a esta área”, salientando a importância dos protocolos de actuação já desenvolvidos para a função dos terapeutas. “São estes protocolos que vão permitir suportar a investigação da eficácia do tratamento e, esperamos, legitimar a sua boa prática e acessibilidade no futuro”, refere o psicoterapeuta.
As substâncias psicadélicas e o cérebro
Os mecanismos de acção terapêutica de compostos psicadélicos não estão ainda totalmente esclarecidos mas parecem representar um novo paradigma na compreensão do funcionamento do cérebro humano. Sobretudo através da sua acção num tipo particular de receptores de serotonina (ver entrevista com Zachary Mainen), os efeitos de substâncias como a psilocibina ou LSD caracterizam-se por uma desestabilização temporária de algumas redes funcionais e centros (hubs) cerebrais e por um aumento da plasticidade e interligação entre estas, como resultado de uma amplificação de sinais (ou “avalanches neuronais”). Na prática, isto resulta numa espécie de reset funcional do cérebro ou “repadronização” (repatterning), mudanças que perduram mesmo depois de os efeitos agudos terminarem e que se traduzem numa janela de oportunidade para o indivíduo viver com um cérebro funcionalmente diferente do que acontecia antes da dosagem. Sobretudo se, com apoio psicoterapêutico, estas alterações podem ser essenciais para se atingir a meta de todas as formas de terapia psicológica e comportamental: a transformação.
Uma das redes cerebrais considerada central para compreender estes efeitos é a denominada
Default Mode Network (DMN), que parece ser responsável pelo processo de autoconsciência ou “controlo do ego” — o processo pelo qual a realidade externa é constantemente filtrada e comparada com expectativas face a nós próprios e à realidade à nossa volta. Sempre que estamos acordados, mas não absorvidos numa tarefa, estamos conscientes do “eu” e num processo automático de auto-avaliação. A DMN parece ser a rede responsável por este processo e hoje sabe-se que os psicadélicos — bem como outros métodos, como a respiração holotrópica, a meditação profunda, ou mesmo o jejum ou a abstinência sensorial prolongados — reduzem a acção desta rede, causando a referida “dissolução do ego”. Ambos os processos — aumento da interligação entre áreas cerebrais e diminuição da integridade funcional da DMN — foram nos últimos anos visualizados por métodos como a ressonância magnética funcional, sobretudo no Imperial College, em Londres. Uma diferença fundamental entre a utilização de psicadélicos e os outros métodos referidos é a potência e a fiabilidade com que os primeiros causam os seus efeitos, o que explica a sua utilização preferencial em estudos científicos.A ligação à saúde mental é esta: a interligação entre redes funcionais e a plasticidade neuronal do cérebro — precisamente as funções que os psicadélicos potenciam — parecem estar diminuídas em inúmeras condições, como a perturbação obsessiva-compulsiva, a depressão, a ansiedade, a perturbação bipolar, o stress pós-traumático e a anorexia nervosa; e também em pessoas com dependências de substâncias como o álcool ou o tabaco. Sintomas comuns a todos estes casos são dificuldades no acesso a emoções, a rigidez cognitiva, dificuldades na aprendizagem e uma reduzida abertura e vulnerabilidade ao ambiente envolvente. Pelo contrário, como a psicóloga e investigadora Rosalind Watts sintetizou numa conferência TED Talk em 2017, os efeitos da terapia psicadélica (ou psicoterapia assistida com psicadélicos) resultam numa maior experiência de abertura (openness) quer “para dentro” — aceitação e maior proximidade com a própria experiência dos estados emotivos — quer “para fora”, através de uma maior vulnerabilidade e sensibilidade para com o outro e com o meio ambiente em geral. Um estudo bastante citado da investigadora Kathleen MacLean, publicado em 2011, sugere que os efeitos da psilocibina podem resultar em alterações a longo prazo precisamente no domínio da personalidade, denominado “abertura”. Isto é tanto mais surpreendente quanto, normalmente, a personalidade é um traço estável em adultos.
Uma maior capacidade de “conectividade” (em inglês “connectedness”) ou conexão parece ser outro dos mecanismos responsáveis pelos efeitos terapêuticos da aproximação psicadélica ao sofrimento psicológico. A par da abertura, é tal a importância atribuída ao conceito de conexão que, num artigo recente, Robin Carhart-Harris e outros investigadores defendem que se trata de um novo constructo psicológico, incluindo dimensões de conexão com o próprio, com o outro (por exemplo, a proximidade social) e com o mundo (por exemplo, a proximidade com a natureza).
Ao P2, Rosalind Watts, que entrevistou de forma aprofundada os 20 participantes do estudo piloto com doentes deprimidos, sintetiza o que aprendeu no seu estudo: “Os dois temas principais relatados pelos participantes foram que a psilocibina os ajudou a sentirem-se mais conectados consigo próprios, com outras pessoas e com o mundo à sua volta; e também que a terapia os ajudou a lidar directamente com emoções difíceis e a processá-las, em vez de as evitar ou encobrir.”
Por seu lado, o psicólogo João da Fonseca descreve assim a sua visão do potencial psicoterapêutico dos psicadélicos: “Estas substâncias poderão permitir reconhecer e ultrapassar muitas das defesas psicológicas e hábitos ruminativos de pensamento, sentimentos e comportamentos que aprisionam muitas pessoas num sofrimento existencial. Admitimos que, durante estas experiências, os filtros que usamos para nos vermos e relacionarmos com nós mesmos, os outros ou o universo, possam ser temporariamente retirados e, com isso, se possa ver e sentir as coisas de um ângulo mais profundo e ao mesmo tempo mais elevado."
Em síntese, os estudos actuais sugerem que os estados alterados de consciência induzidos pelas substâncias psicadélicas criam frequentemente uma interferência ou mesmo uma interrupção em padrões rígidos, repetitivos e patológicos de pensamentos negativos e compulsivos — presentes na ansiedade, na depressão, no sofrimento após trauma ou associado a doença grave, mas também em quadros de dependência (por exemplo tabaco e álcool) — contribuindo para uma maior flexibilidade cognitiva e para alterações positivas na capacidade de analisar a própria experiência, no reequacionar de valores e atitudes (por exemplo, maior auto-aceitação e capacidade de ligação ao outro) e consequentemente na adopção de comportamentos e vivências mais funcionais e produtivas.
A trip psicadélica do século XXI
Podem identificar-se três contextos distintos em que ocorre actualmente a toma de uma substância psicadélica. A mais conhecida é sem dúvida a experiência pessoal ou recreativa, tornada famosa nos festivais de música dos anos 60, como o célebre Woodstock — e que perdura actualmente em cenários de música e cultura electrónica e de trance psicadélico que têm também expressão em Portugal. São experiências colectivas e imersivas que atingem o seu expoente máximo no muito concorrido festival Burning Man, que decorre no deserto do Nevada (EUA) todos os anos. Dentro das experiências “pessoais”, situam-se também todas as que ocorrem individualmente (ou entre amigos), em contexto privado. O seu traço distintivo é que a “viagem psicadélica” representa geralmente um fim em si mesmo: a experiência com estados alterados de consciência, a autodescoberta e a partilha de bons momentos em grupo (muitas vezes com a presença de música e dança) são alguns dos motivos apresentados pelos “psiconautas” recreativos com quem o P2 falou. O ambiente recreativo, nomeadamente em contextos festivos, é aquele em que tendencialmente há menos controlo sobre a qualidade e a quantidade (dose) de substâncias ingeridas, bem como uma menor atenção à regra do set and setting, considerada essencial para uma boa experiência.
Set significa “mindset” e destaca a importância da preparação psicológica e emocional do participante antes da experiência: em síntese, este deve sentir-se suficientemente calmo e seguro e na posse de toda a informação necessária para perceber o que se vai passar, nomeadamente que pode viver uma experiência muito intensa, mas que a mesma deverá terminar em segurança e de regresso ao “local de partida”. Quanto ao setting (ou “condição envolvente”), este pretende valorizar a importância do contexto externo da experiência, quer em termos do conforto, segurança e recato físico, como do acompanhamento por parte de terceiros (sejam profissionais ou amigos companheiros de “viagem”), em quem o participante deve confiar. É consensual entre os especialistas que as bad trips — expressão utilizada para descrever isso mesmo, uma “viagem” psicadélica negativa — resultam quase sempre do desrespeito pela regra do set and setting.
Um segundo contexto são as cerimónias ou rituais tradicionais, normalmente com a ingestão de compostos presentes na natureza, como plantas ou fungos. São os casos da bebida ayahuasca (que conjuga a folha de uma planta com uma raiz de outra, cozidas durante muitas horas); de substâncias derivadas dos cactos San Pedro e Peyote; dos “cogumelos mágicos” ou as respetivas trufas; e do extracto da planta africana Iboga. No seu contexto original, a finalidade destas cerimónias está ligada, por exemplo, a práticas religiosas ou xamânicas, a assinalar de rituais de passagem, como fonte de inspiração artística, ou com objectivos medicinais. Ao contrário do uso recreativo, estas práticas são quase sempre sacralizadas e estão bem enraizadas na cultura dos povos que as praticam, em alguns casos há vários séculos. A bebida ayahuasca é a mais conhecida, sendo inclusive parte integrante de algumas denominações religiosas no Brasil, estando hoje muito divulgada (e acessível) na Europa e sobretudo nos EUA. Dráulio Araújo, neurocientista brasileiro que estuda esta bebida, refere que “a primeira cerimónia estruturada de uma dessas igrejas, o Santo Daime, ocorreu em 1930. Mas há várias igrejas que têm a ayahuasca como o seu principal sacramento, utilizada para fins espirituais, de cura, e como ferramenta de autoconhecimento”.
Finalmente, o contexto terapêutico, que nos anos 50 e 60 do século XX foi explorado por dezenas ou mesmo centenas de terapeutas, de forma legal, existindo registos de mais de 40 mil pacientes envolvidos nestas experiências. Um dos mais famosos divulgadores da “ciência psicadélica”, o psiquiatra e psicanalista checo Stanislav Grof afirma ter guiado mais de 4 mil pacientes em “viagens” psicadélicas com LSD. Após a criminalização do uso destas substâncias a partir de 1965, estas sessões continuaram a ser conduzidas de forma clandestina até aos dias de hoje por uma rede informal de “guias” (aos quais Michael Pollan recorreu), usando um protocolo que não é muito diferente daquele actualmente utilizado nos estudos científicos actuais. Este envolve habitualmente a toma de apenas uma ou duas dosagens, separadas por algumas semanas, em condições controladas e acompanhadas por profissionais qualificados em psicoterapia ou psicologia clínica e com experiência no acompanhamento destas “viagens”. Por norma, os participantes são preparados para a sessão nos dias antecedentes à mesma através de consultas individuais e/ou em grupo, e são acompanhados pelos facilitadores nos dias e semanas subsequentes, num processo denominado “integração”. Neste, procura-se que a experiência e eventuais aprendizagens da sessão sejam adequadamente enquadradas na história da pessoa e o seu significado seja aprofundado do ponto de vista psicológico. Este processo pode durar várias semanas e uma boa integração é considerada um passo essencial para o sucesso da terapia.
Numa sessão terapêutica, o participante está deitado, com os olhos vendados e sempre na companhia de um ou dois profissionais. Estes não interferem directamente no processo (por vezes, a mão do “viajante” pode ser segurada pelo facilitador), mas dão confiança ao participante, assegurando que este não está sozinho, sobretudo para o caso de uma experiência psicologicamente intensa. A “viagem” pode demorar entre quatro e oito horas, consoante a substância utilizada, e o participante tem música previamente seleccionada e que lhe chega através de auscultadores. A música pode influenciar toda a experiência psicadélica e este é actualmente um dos temas de investigação no Imperial College, através do trabalho do neurocientista Mendel Kaelen, cujas populares palestras estão disponíveis na Internet.
A música está quase sempre presente na experiência psicadélica, independentemente do contexto em que ocorre. Mesmo nas cerimónias tradicionais, é habitual existirem canções trauteadas pelo condutor da cerimónia (um(a) xamã, curandeiro/a ou maestro/a). De facto, muitos participantes revelam uma sensibilidade à música aumentada durante as suas “viagens” e a música serve como um “vaso condutor” essencial de toda a experiência. “Foi uma experiência musical incrível... cada nota musical parecia entrar para dentro de cada uma das minhas células, provocando tal efeito que por vezes tinha de chorar apenas pela emoção que sentia... Foi algo único, sublime e que valeu, só por si, o preço do bilhete”, é um dos vários relatos deste tipo que o P2 recolheu de utilizadores de psicadélicos.
A intensidade e realismo da experiência psicadélica pode ser psicologicamente difícil de processar e existem relatos de dificuldades na sua integração e no retorno imediato da pessoa à sua vida habitual. Esta possibilidade parece ser tanto mais provável quanto a toma da substância ocorra em contextos não acompanhados, quer durante a sessão quer no período de integração. A este respeito, Rosalind Watts, do Imperial College, refere que “nós, em sociedade, teremos de fornecer serviços de integração para pessoas que passam por estas experiências, que são potencialmente poderosas”.
Em conjunto com uma colega terapeuta e especialista em “integração psicadélica”, Watts revela que desde há um ano que tem “facilitado” grupos em Londres que usam estas substâncias em contextos cerimoniais, terapêuticos ou de auto-exploração. “O balanço é muito positivo, mas tem-nos alertado para a existência de facilitadores sem a experiência ou formação adequada para este trabalho, tanto na fase de preparação como na de integração. Algumas pessoas têm chegado ao nosso grupo um pouco perdidas, confusas e sem saber como incorporar estas experiências na sua vida. Por isso recomendamos que as pessoas escolham sempre um xamã (para contextos cerimoniais) ou um terapeuta com bastante experiência. A confiança é essencial neste trabalho, bem como a capacidade do facilitador em estabelecer limites claros, manifestar compaixão e estar completamente presente”, refere a investigadora.
A natureza da experiência psicadélica
Descrever a experiência psicadélica é um desafio grande. Não só porque as “viagens” são alegadamente todas diferentes, inclusive para a mesma pessoa, mas também porque os seus traços fenomenológicos são considerados inefáveis, ou seja, resistem a uma boa explicação por palavras. São muitas vezes comparadas a experiências místicas, tais como as relatadas em textos religiosos, e marcadas pela qualidade de transcendência face à realidade habitual.
Alguns dos traços centrais da experiência mística, que parece corresponder a relatos de muitos “viajantes” com psicadélicos, são: a experiência “unitiva” — a sensação de interligação e união entre todas as pessoas, todos os seres e entidades, ou seja, que “somos todos um”; sentimentos de reverência e admiração suprema (como a um deus, que pode ter várias representações ou imagens); a percepção noética ou de revelação, em que a experiência é sentida como mais verdadeira e “real” do que a realidade habitual; as sensações de abertura emocional, de gratidão, serenidade e amor; a transcendência das dimensões de tempo e espaço, em que o passado e o futuro se colapsam no momento presente, sendo este “tudo o que existe”; a percepção de que as dimensões físicas habituais (gravidade, separação, distância, etc.) deixam de ser uma barreira e tudo é possível, como se de um sonho se tratasse; e o efeito de sinestesia, em que as qualidades dos sentidos se misturam entre elas, tornando por exemplo possível ao sujeito sentir o cheiro de uma cor, bem como visualizar (ou mesmo sentir no seu corpo) uma nota musical. São também muito frequentes as alterações na percepção visual, com efeitos que confundem os objectos habituais com formas geométricas coloridas e dinâmicas, popularizadas em muitos grafismos e representações artísticas associadas ao “psicadelismo” no domínio público.
Stanislav Grof, no livro LSD: Doorways to the Luminous…, sintetizou com grande detalhe os efeitos reportados por centenas dos seus participantes durante a toma de LSD, destacando domínios como alterações físicas (náusea, tremores, sudação e maior sensibilidade ao toque); alterações perceptivas (sobretudo visuais, mas também do paladar e audição); alterações emocionais (sensação de paz e serenidade, mas também a euforia e êxtase); alterações cognitivas (desde a maior capacidade de raciocínio e resolução de problemas complexos, até à efusão, delírio de grandeza e facilidade de criar teorias de conspiração); alterações psicomotoras (desde a calma e inibição da acção até à excitação, expressão dramática e grande vontade de movimento, como dançar); alterações na sexualidade (que podem ir da ausência completa de libido até uma grande excitação e sensibilidade na experiência sexual e orgástica); alterações na experiência estética e artística (mais criatividade, mas também utilização errática de cores e formas e percepção sem consequência concreta).
Fica também claro pela descrição de Grof que, se existe uma regra na experiência psicadélica, é que é impossível prever a sua qualidade, tal a variedade, individualidade e originalidade que pode assumir. Contudo, uma experiência frequente é a de que “tudo está perfeito tal como é”, no sentido mais profundo da nossa avaliação da realidade, como descreveu o místico inglês do século XIV Julian de Norwich: “All shall be well and all shall be well and all manner of thing shall be well” (Tudo estará bem e todos estarão bem e todo o tipo de coisas estará bem).
A “viagem” psicadélica, sobretudo quando realizada “para dentro” — em recato, sem estímulos visuais e apenas com a presença de um estímulo musical —, pode também proporcionar ao participante o contacto com experiências do seu passado (nomeadamente com pessoas relevantes na sua história) ou com outro material inconsciente. Como relata Michael Pollan no seu livro, estas imagens e cenários, muitas vezes em formas de metáforas difíceis de interpretar imediatamente, podem constituir informação relevante para o processo psicoterapêutico ou simplesmente para um maior autoconhecimento. É interessante verificar que o investigador Robin Carhart-Harris, antes de iniciar os seus estudos em Neurociências, estudou a fundo a teoria psicanalítica popularizada por Sigmund Freud e Carl Gustav Jung (este último autor muito popular no contexto da cultura e estudos psicadélicos). Afirma Carhart-Harris que “os psicadélicos são uma forma especialmente fiável e potente de trazer o inconsciente à consciência”. “Embora não saibamos completamente porquê, a minha sugestão é que isto acontece porque estas substâncias desmontam a estrutura hierárquica habitual da mente e do cérebro de uma forma que mais do seu conteúdo se torna acessível à consciência a cada momento.”
O director do grupo de investigação no Imperial College em Londres destaca a importância da experiência vivida na primeira pessoa, sob o efeito de psicadélicos: “A importância da experiência diz-nos que a terapia psicadélica é em grande parte uma terapia psicológica, pelo menos tanto como é farmacológica. Embora seja uma espécie de terapia ‘híbrida’ — e talvez não exista mais nenhuma deste tipo —, a minha expectativa é de que os seus benefícios não se verificariam na ausência da componente experiencial (ou seja, psicológica). Os dados dos nossos estudos também parecem corroborar este princípio.”
Uma participante de uma sessão de ayahuasca descreveu ao P2 o que viveu numa das noites dessa cerimónia: “Foi a experiência emocionalmente mais intensa que já vivi, ao ponto de ter sentido que podia estar próximo da minha morte física. Foi uma ‘viagem’ como nunca tinha vivido e nela apareceram os meus filhos, os meus pais e também uma outra pessoa muito próxima. Para além de mim própria em várias alturas da minha infância. Era como um sonho, mas o estranho é que, ao contrário de um sonho, eu permanecia consciente de onde estava, embora completamente arrebatada pela experiência e sem capacidade de sair dela. Percebi mais tarde que o tema central da ‘viagem’ era um assunto que discutia há muitos anos com o meu psicólogo, mas que eu nunca tinha sentido — de facto nunca tinha vivido — daquela forma. Foi duro, mas a aprendizagem que tive foi tão importante que talvez volte, mais tarde, a repetir a experiência. Há sempre tanto para aprendermos sobre nós próprios...”
O futuro da psychedelia
Embora a cultura psicadélica exista como tal há várias décadas e com inúmeros protagonistas, o livro de Michael Pollan parece ter tido um enorme efeito na divulgação dos psicadélicos no público em geral, um pouco por todo o mundo. O P2 falou com Martijn Schirp, um dos organizadores do retiro Synthesis, na Holanda, com utilização de psilocibina (neste país, a venda e consumo de trufas de cogumelos são legais) que referiu que muitos dos 15 participantes nunca tinham experimentado uma substância psicadélica e que o seu interesse havia começado exactamente com a leitura do livro de Pollan. Nas conferências nesta área, o livro tem sido apresentado como um marco decisivo para a ciência e cultura psicadélica.
O aumento exponencial do interesse nestas substâncias terá provavelmente um efeito catalisador na sua abordagem, não só pelas instâncias reguladoras, comunidades médicas e científicas, mas também pela opinião pública e pela sociedade em geral. Neste contexto, o processo de redução de dano (harm reduction) associado ao crescente consumo é visto como essencial. Portugal é tido como um exemplo em todo o mundo pelas suas políticas no âmbito dos consumos de drogas, em parte pelos mecanismos de protecção e apoio ao consumidor que têm implementado. Entidades como a Associação Kosmicare ou a Zendo Project farão certamente parte de um futuro onde o consumo de psicadélicos possa estar mais bem integrado na sociedade (ler conversa com Maria do Carmo Carvalho).
Pollan deixa clara a sua opinião de que estas são substâncias poderosas e que a sociedade terá de encontrar soluções novas para chegar a um equilíbrio virtuoso entre o seu potencial e os riscos envolvidos na sua divulgação e acesso generalizados. O jornalista lembra como em todas as sociedades que usaram substâncias deste tipo havia sempre um ritual ou cerimónia associados à sua toma, que era feita em ocasiões especiais e sob supervisão de líderes da comunidade com experiência acumulada. Por outras palavras, estas substâncias e o seu uso nunca foram trivializados e esse é um caminho que ninguém com acção nesta área defende. Sobre o uso futuro de psicadélicos, o investigador Carhart-Harris, um dos protagonistas principais do livro de Pollan, refere: “Espero que sejam usadas de forma responsável, da mesma forma que a psicanálise, ou a psicoterapia em geral, devem ser usadas de forma responsável. Espero também que as pessoas não idealizem demasiado os psicadélicos, mas sim que mantenham os ‘pés assentes na terra’ e integrem estas substâncias e tudo o que elas têm para oferecer em sistemas ou organizações de conhecimento e sabedoria existentes. Não precisamos de ser revolucionários — aliás, uma aproximação evolucionária pode ser mais produtiva e mais bem sustentada. Já existe muito saber acumulado ao longo dos tempos e acredito que os psicadélicos servem mais para nos recordar essas verdades ancestrais do que para nos revelar verdades novas.”
Por outro lado, é também comum entre os utilizadores actuais o receio de que a progressiva legalização dos psicadélicos os torne num bem transaccionável, manipulado e controlado pela indústria farmacêutica, tornando a utilização pessoal mais difícil do que é hoje. A questão da utilização livre privada é um tema sensível. Por um lado, está ligada ao “direito à experiência psicadélica” que muitos defendem, da mesma forma que hoje as pessoas podem viver livremente os efeitos do álcool, da cafeína ou do tabaco (independentemente dos seus efeitos na saúde). Por outro lado, considerando o potencial terapêutico e também de promover o autoconhecimento e desenvolvimento/transformação pessoal, trata-se de organizar estruturas — dentro e talvez também fora do contexto clínico — onde este potencial possa ser maximizado e os riscos minimizados. Alguns dos especialistas com quem o P2 falou imaginam recursos futuros como clínicas, retiros/comunidades terapêuticas ou centros especializados na sua administração segura e baseada na ciência, sob a supervisão de profissionais e “facilitadores” especializados.
Stanislav Grof é uma das pessoas mais experientes em todo o mundo em experiências psicadélicas e é conhecido por afirmar que os psicadélicos não são mais do que um instrumento, fornecendo a analogia da faca, muitas vezes citada neste meio: esta pode ser utilizada por um cirurgião, por um cozinheiro, por um artesão ou por um agricultor, tal como pode ser utilizada para ferir ou matar alguém. Mas não é imaginável ilegalizar e estigmatizar o uso de utensílios cortantes por esta razão.
A visão das substâncias psicadélicas como uma ferramenta, uma tecnologia ou um recurso (entre outros) a ser utilizado de forma responsável, consciente e informada pela ciência, para benefício de tantos quantos o podem sentir, é muito comum e talvez das mais virtuosas. Estas abordagens não excluem a sua utilização para “viagens” recreativas ou com objectivos de autodescoberta.
Uma bióloga e utilizadora de psicadélicos há mais de uma década (que pediu o anonimato) revelou assim ao P2 a sua expectativa e experiência: “Todos somos condicionados ao longo da nossa vida e estabelecemos padrões de comportamento que podem ser nocivos. Para mim, esta é a parte mais fantástica dos psicadélicos. Quando um dia me perguntaram qual seria a minha vida de sonho, disse que imagino uma realidade em que todos nos percebamos melhor, a nós próprios e em relação com os outros — por exemplo, eu com os meus filhos e o meu companheiro —, em que o grau de autoconhecimento é suficiente para nos rirmos das nossas próprias acções e palavras sempre que nos apercebemos de que escorregámos outra vez, em vez de levar a discussões e chatices. Esta é a parte fundamental do meu percurso com estas substâncias. Perceber que é muito raro estarmos completamente desprovidos de ideias preconcebidas, de modelos, de viés que nos afectam em tudo aquilo que fazemos. E que é altamente libertador perceber estas coisas, que nos faz realmente chegar mais próximo do verdadeiro free will [livre vontade].”
No livro Sacred Knowledge: Psychedelics and Religious Experiences, o investigador e psicólogo clínico William A. Richards relata uma ideia similar, referindo-se às suas primeiras experiências (aos 23 anos) e como estas influenciaram a sua vida. “Nessa altura, descobri o que considero uma independência saudável de pressões sociais e a liberdade para ‘ser quem sou’ autenticamente. Passei a sentir-me menos como uma marioneta controlada por expectativas externas... Com esta mudança, veio uma sensação de paz interior, mais autoconfiança e uma notória redução na ansiedade. Penso que também fiquei menos inibido, mais espontâneo, talvez mais divertido e também mais capaz de permitir relacionamentos caracterizados pela autenticidade e verdadeira intimidade. Senti-me sintonizado com ‘o que realmente interessa’, pelo menos naquela altura da minha vida. O termo de Paul Tillich para isto é ‘a coragem de ser’, incluindo ‘a coragem de aceitar a aceitação’... Mais tarde, comecei a aplicar o mantra que desde então indicamos aos voluntários dos nossos estudos, para os ajudar a atravessar períodos difíceis nas transições da consciência: ‘Trust, let go and be open’.” Ou seja, “confia, deixa-te ir e sê aberto/a”.