O Mulato, de Aluísio Azevedo, ou o anti-racismo no século XIX
Em pleno século XXI, a xenofobia continua a ser tema de discussões exacerbadas. Continuamos a assistir a diferenças abissais entre as classes. Aprendemos muito pouco com a história e os testemunhos que nos legaram. No século XIX, Aluísio Azevedo já expunha uma crítica violenta ao racismo, à burguesia provinciana e ao clericalismo corrupto.
“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. O slogan de Pessoa aplica-se modelarmente ao romance naturalista de Aluísio Azevedo. O Mulato é um retrato de época, hino ao anti-racismo e anticlericalismo, que expõe a escravatura e a influência do clero na sociedade brasileira durante o pré-abolicionismo.
A narrativa introduz o regresso do doutor Raimundo José da Silva — ou "Mundico" — a São Luís do Maranhão, retornado de Lisboa, onde cresceu ao cuidado de terceiros, por solicitação do seu tio, Manuel Pedro da Silva — ou Manuel Pescada — no seguimento da morte do seu pai. A presença de Raimundo altera a rotina enfadonha da província. A sociedade recebe-o sem entusiasmo, transparecendo desdém. Homem feito, formado e viajado, o jovem desconhece as suas origens, mas o povo conhece a história que a pele morena denuncia. O "Mundico" era filho de uma escrava que se deitava com José da Silva, seu falecido pai. Desconhecendo as razões de tamanho desprezo, Raimundo procura respostas na fazenda de São Brás, considerada “tapera” (terra abandonada) pelo povo. A verdade atormenta-o. Compreende enfim a atitude hostil da sociedade do Maranhão.
Entretanto, Ana Rosa, filha de Manuel Pescada, cai de amores pelo primo recém-chegado. Raimundo retribui a afeição e as juras de amor culminam no pedido de casamento insólito. Poderia Manuel Pescada conceder a mão da sua filha a um mulato? Afinal, o "Mundico" era filho de uma escrava. Mesmo sendo filho do seu irmão e considerando-o “um moço muito digno, muito merecedor de consideração”, o tio não podia ignorar que o pobre fora “forro à pia”. Daqui ao desfecho, até o próprio Raimundo se debate intimamente, indagando a decisão acertada.
E não podemos falar de O Mulato sem referir uma personagem essencial: o cónego Diogo, representante do clero, que defende os seus interesses (pessoais) até às últimas consequências. É uma presença polémica e crucial na evolução do enredo.
Quanto ao final, o leitor será certamente surpreendido. Aluísio Azevedo faz jus ao título de precursor do movimento naturalista na literatura brasileira. O naturalismo representou a demonstração romanesca de teses e teorias científicas, que procuravam entender a vida do homem como resultado de factores externos (raça e classe social, por exemplo).
Em pleno século XXI, a xenofobia continua a ser tema de discussões exacerbadas. Continuamos a assistir a diferenças abissais entre as classes. Aprendemos muito pouco com a história e os testemunhos que nos legaram. No século XIX, Aluísio Azevedo já expunha uma crítica violenta ao racismo, à burguesia provinciana e ao clericalismo corrupto. Face aos recentes desenvolvimentos na política internacional, a leitura de O Mulato torna-se (ainda mais) indispensável, por várias razões: a primazia do género na literatura brasileira, o importantíssimo registo de época e a mensagem explícita e corajosa, que rejeita a xenofobia, o snobismo e a corrupção.
Aluísio Azevedo nasceu em São Luís do Maranhão, em 1857. A alma de artista levou-o a estudar Artes Plásticas e a rumar à Corte, no Rio de Janeiro, para trabalhar como caricaturista. Com a morte do pai, em 1878, regressa à terra natal, onde passa a escrever na imprensa local. Em 1881, publica O Mulato. Este relato baseado nos costumes locais fez sucesso a nível nacional e incomodou de tal forma os conterrâneos que obrigou o autor a sair de São Luís do Maranhão e a regressar ao Rio de Janeiro.
Azevedo escreveu mais de 20 obras, entre romances, contos e peças de teatro. Curiosamente, cessou a produção literária em 1985 para dar início a uma longa carreira diplomática. Foi cônsul em vários países, durante 18 anos, e não voltou a publicar qualquer obra literária. Numa edição da Klick, Frederico Barbosa e Sylmara Beletti escreveram que o autor não gostava que lhe falassem da carreira literária que o imortalizou. Aluísio Azevedo faleceu aos 55 anos, na Argentina, onde desempenhava funções diplomáticas. Foi fundador da cadeira n.º 4 da Academia Brasileira de Letras. Um homem de ideias criteriosas e palavras autênticas, que assumiu a responsabilidade de transmitir o essencial: a sua mensagem. Singular e arrojada.