Estas estórias de Lisboa não vêm nos livros. Estão nas memórias que eles agora partilham
Histórias que revisitam o passado e nos dão a conhecer uma Lisboa já distante é a ideia deste projecto, que se concentra nas vivências pessoais de alguns idosos lisboetas que experienciaram mudanças urbanísticas, sociais e económicas ao longo do século XX.
Entre largos sorrisos e um olhar expressivo de algum saudosismo, Orlando Vaz, antigo operário na capital, narra as vivências da infância de um século já passado. “Não havia televisão, não havia nada disso, então as nossas brincadeiras eram na rua”. Diversidade não faltava: havia a época de brincar ao peão, de jogar à apanhada, de brincar aos cowboys e, “o engraçado, é que não havia bullying porque, se levássemos uma estalada, tínhamos que dar um pontapé. E se fosse para casa a chorar porque o Manel me tinha batido, a minha mãe ainda me batia também”.
Desenvolvido no âmbito do Orçamento Participativo, “Vidas e Memórias de Bairro: oficinas comunitárias da memória” é um projecto das Bibliotecas de Lisboa. Iniciado em 2015 na Biblioteca da Penha de França, ainda como projecto-piloto, foi replicado na biblioteca de Marvila em 2017 e está previsto um alargamento a outras bibliotecas da capital. Esta semana foi apresentado o vídeo com estórias que Lisboa não quer esquecer.
Para a câmara, Orlando conta entre gargalhadas que de cada vez que sangrava por lhe esfolarem as canelas a jogar à bola, recorria à ‘terromicina’”, isto é, ao uso de terra e água como forma de curativo. A única preocupação na altura era a polícia, pois “era proibido jogar à bola na rua”. A multa era de 96 escudos. Ora, se o seu pai “ganhava 60, a única alternativa para não ser preso era andar a fugir”.
Nos dias mais quentes, as docas eram o sítio predilecto para Orlando e os camaradas se banharem “todos nus”. Tinham apenas que “ter cuidado com o guarda-fiscal” para que não lhes apanhasse as roupas.
“Eram outros tempos”. José Fonseca, contabilista de profissão, confirma a originalidade das brincadeiras. Nos pátios, os arames dos estendais da roupa serviam de rede para que se jogasse voleibol. “Jogar à bola era com uma meia com trapos dentro, e depois atava-se a ponta”, conta. “O guia para o término das brincadeiras eram as sirenes das fábricas” que soavam às 17h00 em ponto, hora a que os pais saíam do trabalho e altura em que os mais novos tinham de abandonar a diversão na rua.
Entre várias memórias de uma vida, há uma que José mantém muito presente. No dia 25 de Novembro, “faltavam dez para as duas da tarde quando se deu uma grande explosão na fábrica de material de guerra”, no Beato, motivada por um trabalhador que transportava uma caixa de explosivos. Morreram 12 pessoas e 200 ficaram feridas. José, na altura com 11 anos, almoçava “carneiro guisado com massa” quando os vidros lhe bateram nas costas. “Espavorido”, fugiu a correr até chegar à fábrica nacional, local onde trabalhava a mãe. “Passados todos estes anos ainda me lembro da minha mãe a sair do portão com uma alegria tremenda quando me viu”, recorda emocionado.
As recordações de outros tempos e de uma outra Lisboa, estão vividamente nítidas nas memórias destes idosos. Relembram-se das mudanças que a cidade sofreu, e dos dias em que os transportes eram quase inexistentes. “Era tudo a pé. Subir a Alameda, descer a Alameda”. As quintas e terras, que entretanto deram lugar a diversos prédios, eram abundantes e local onde “as pessoas que tinham um bocadinho de terreno semeavam favas, couves, algo a que estavam habituadas a ter na província de onde vinham”, refere Maria Fernanda Gonçalves, antiga administrativa.
A realidade habitacional era bastante distinta da que hoje conhecemos. “A maioria das casas era feita em madeira. A Câmara não deixava fazer obras no Beato, e havia polícia a patrulhar durante todo o dia. Mas à noite, quando a polícia não actuava, a rapaziada começou a revestir o interior das suas casas de madeira, com tijolo. Quando estava pronto, tirava-se a madeira”, confessa Manuel Antunes, antigo operário especializado. E assim começaram a surgir a maior parte das casas. “Lisboa era um autêntico mar de barracas”. Tomar banho então, era um luxo. “Não havia instalações sanitárias, havia um poço no pátio de onde tirávamos a água e depois aquecíamo-la. Lavava-me uma vez por semana, não se tomava banho todos os dias.”
Também o vestuário era um privilégio e a sua aquisição, pouco recorrente. Os armazéns da Morais Soares, agora inexistentes, enchem de brilho os olhos de Albertina Guedelha que, talvez por ser uma antiga costureira, relata com entusiasmo as lojas que na altura lhe enchiam as medidas. “Tinham tudo, tudo, tudo. Era toalhas, era lençóis, era cobertores, era roupas de vestir...”, conta. “A Britania também tinha tudo quanto era bom, roupas muito boas. Era lá que comprava os vestidos”.
A propósito de indumentárias, Albertina evoca um episódio “muito engraçado”. A mãe nunca a permitia sair com ninguém, e um dia uma colega da costura desafiou-a a ir a um baile em São Vicente. Como a madrasta da colega era amiga da sua mãe, houve consentimento. “Conheci lá o meu marido. Na noite de S. João. Lá andou atrás de mim, lá me pediu em namoro, mas não andávamos de braço dado nem nada”, revive. “Namorávamos há dois meses, e ele vai e dá-me um beijo na testa. Fiquei fula! E estive muito tempo sem lhe falar”, recorda sorrindo. “E foi assim, o meu primeiro beijo foi aqui na minha testa”, com aquele que viria a ser companheiro de vida durante 57 anos.
“Não havia hipótese nenhuma de fazer avarias”, visto a austeridade parental ser uma constante. “As mães e velhas avós não deixavam as raparigas irem ao cinema à vontade, tinham de levar sempre o pau-de-cabeleira. Onde se namorava mais um bocadinho era nos bares, aí as coisas eram mais avantajadas porque dava para nos agarrarmos”, conta José entusiasmado.
As tabernas faziam igualmente parte dos passatempos de juventude. Orlando recorda os dias em que “os homens iam de casa para o trabalho e do trabalho para a tasca”, onde bebiam e se juntavam a conversar. Alice Marques, taberneira, admite que “numa taberna é preciso ter muito bom feitio. Nós gostamos de vender o vinho, mas depois também temos que os aturar”. Refere que, por vezes, chegou a ter que enfrentar as esposas que a acusavam de só querer vender o vinho aos maridos que, à noite, de lá saíam “todos bêbedos”. Alice confessa que “não os queria aviar, mas que eles bebiam os copos que eram para as outras pessoas”.
Poderiam ser descritas muitas mais vivências pois estas histórias não se esgotam. E ao serem divulgadas, acabam por se "tornar num jogo de memórias praticado entre várias gerações”, afirma Susana Silvestre, Chefe de Divisão da Rede de Bibliotecas de Lisboa da CML, que esteve quinta-feira presente na apresentação pública deste projecto, na Biblioteca de Marvila.
A partilha de estórias que fazem parte da história, mas que não figuram nem nos manuais escolares, nem nos livros históricos, são o mote para este projecto que visa recuperar, preservar e difundir as memórias e vivências dos habitantes mais velhos da cidade, contando com narrativas na primeira pessoa, o que torna os seus testemunhos imprescindíveis para o conhecimento da história e do património de Lisboa.
Texto editado por Ana Fernandes