Carne de laboratório. No seu restaurante já em 2021?
Criar e matar animais tornou-se um problema ambiental e ético. Várias startups estão a desenvolver carne in vitro e a associar-se a multinacionais do agro-negócio. Um dos desafios agora é passar da produção experimental de carne em laboratório para a grande escala e criar um negócio rentável.
Quer o seu bife bem ou mal passado, de carne de vaca abatida num matadouro ou de carne cultivada em laboratório? Esta pergunta poderá dentro de poucos anos fazer parte da rotina de um empregado de mesa. Talvez não numa tasca, mas num restaurante mais dado à inovação. A existência desta carne, que está a ser desenvolvida há anos, não é um grande segredo, mas a iminência da sua comercialização foi uma das conclusões de uma conferência internacional sobre carne de laboratório, em Maastricht, e que encheu La Bonbonnière – um pequeno teatro do século XVIII desta cidade holandesa – com perto de 200 especialistas.
Em 2013, Mark Post, o anfitrião da conferência, tinha apresentado em Londres, numa degustação, o primeiro hambúrguer de carne de vaca produzido em laboratório a partir de células estaminais de músculo de vaca retiradas através de biópsia. Na altura, o hambúrguer teria um custo calculado de 250 mil euros. Mas desde esses dias até hoje muita coisa aconteceu do ponto de vista do desenvolvimento tecnológico, do interesse da indústria, do apetite do consumidor e até da regulamentação, que está em marcha muito acelerada.
“Dentro de aproximadamente três anos, um hambúrguer equivalente custará à volta de dez euros”, calcula Mark Post. “Nos primeiros tempos, não estará à venda nos supermercados. Imagino que será mais uma coisa de restaurantes, porque o preço de 60 euros o quilo não é razoável para o grande retalho, mas queremos que rapidamente se torne acessível.”
Além de dirigir o Departamento de Fisiologia da Universidade de Maastricht – e de ser a figura emblemática da carne de cultura, carne artificial, ou carne in vitro –, Mark Post é o responsável científico da Mosa Meat, uma startup que nasceu com as suas investigações na universidade e que agora está a crescer muito rapidamente e a preparar-se para ser um bom negócio. Em 2019, a Mosa Meat passará de dez para 25 funcionários. Está a contratar cientistas e a procurar um local para começar a trabalhar a todo o vapor, para começar a vender carne de laboratório na Europa.
Em 2018, a Mosa Meat já tinha recolhido 7,5 milhões de euros de financiamento provenientes da Merck e do maior grupo suíço na indústria da carne, o Bell Food – uma ligação que junta de um lado a tecnologia na área biomedicina e, do outro, a capacidade de distribuição no mercado europeu. Esta operação significa que a carne de cultura está a passar do domínio da bizarria de uns quantos cientistas para o universo do agro-negócio. Mark Post sustenta que há 30 startups no mundo inteiro a desenvolver produtos comerciais com carne de laboratório, a grande maioria nos Estados Unidos, sobretudo na zona altamente tecnológica da Califórnia, mas também em países como Israel. “Acreditamos que todas estas empresas estejam a fazer os mesmos cálculos para lançar os seus produtos no mercado em 2021, já há muito investimento nesta área.”
No La Bonbonnière – na 4ª Conferência Internacional de Carne Cultivada, onde se discutiram os desenvolvimentos científicos necessários para passar à produção em escala e a regulamentação –, também esteve presente a SuperMeat. Nos seus laboratórios em Telavive, esforça-se por replicar carne de frango. Na página da Wikipédia que lhe é dedicada refere-se que a SuperMeat formalizou em 2018 uma parceria estratégica com a PHW, um “dos maiores produtores de aves da Europa”. Do outro lado do Atlântico, instalada na área de São Francisco, a Memphis Meat também aposta em 2021 como o ano de lançamento dos seus produtos comerciais, depois de ter recebido um investimento de Bill Gates e de Richard Branson em 2017 e da Tyson Foods em 2018. Três anos após o hambúrguer holandês, a Memphis Meat exibiu, em 2016, a primeira almôndega feita com células de animal e, tal como as outras startups, esta empresa está a alargar a sua equipa.
Para lá da vaca e do frango
O futuro deste tipo de produtos parece tão promissor que o interesse não se limita aos animais terrestres. A Finless Foods aposta na produção de carne de atum (sem pesca e sem aquacultura, claro). “Há imensas vantagens ambientais”, sustenta Jennifer Tung, bióloga celular desta empresa norte-americana. “Por exemplo, a preservação das espécies marinhas e poderem fazer-se produções locais de proteína de peixe em zonas distantes do mar, sem o custo do transporte e sem sacrificar a frescura”, especifica Jennifer Tung. “Quanto ao peixe, também há a questão dos metais pesados. No futuro, será possível comer sushi sem mercúrio e sem os poluentes dos oceanos.”
Ainda no campo da pura investigação, Nathalie Rubio está a fazer o doutoramento na Universidade de Tufts, em Boston, sobre cultura de tecidos de insecto para agricultura biológica. Trabalha especificamente na mosca-da-fruta, insecto em relação ao qual há imensa informação genética disponível.
Bolseira do New Harvest, um instituto de investigação em agricultura celular na Universidade de Tufts, Nathalie Rubio não acredita que haja um bife de mosca no mercado a curto prazo. “Sou a única pessoa que conheço que se dedica a isto. É claro que é uma ideia nova e não será agora o momento oportuno para produzir em larga escala. Mas tendo em conta o conhecido valor nutritivo dos insectos, penso que é muito promissor”, explicou ao PÚBLICO. Do ponto de vista do consumidor, admitiu que tal será mais difícil de aceitar do que a carne de animais que já fazem parte da dieta ocidental. “Mas se for uma questão de alimentar a população mundial crescente com uma proteína altamente nutritiva, e que aparentemente ficará muito barata, eu, sinceramente, preferia não ter de comer os seus olhinhos e perninhas.”
Uma questão ética
Em 2013, o hambúrguer cozinhado em Londres na apresentação de Mark Post tinha uma característica que não pode ser mantida para venda ao público. As células estaminais haviam sido cultivadas com recurso a soro bovino, um material recolhido com extrema crueldade, com uma punção no coração do feto vivo no útero de uma vaca (e que provoca a morte dos dois animais).
Para levar esta carne até ao consumidor, procuram-se agora alternativas ao soro bovino. “A fonte pode ser oriunda de bactérias, de origem vegetal ou de fungos. E o negócio de produzir esses componentes em larga escala é algo que surgirá em paralelo e que está a ser incentivado”, sustentou depois Mark Post aos jornalistas presentes na conferência. O objectivo é criar um produto livre de crueldade animal. “Vender carne que recorra a soro bovino não faz sentido nenhum. De origem animal, o nosso produto terá apenas as células que são recolhidas, e que não implica crueldade nem morte.” Afinal, grande parte do apoio ao desenvolvimento daquela que também é conhecida como clean meat (“carne limpa”) vem dos grupos de defesa dos animais.
Mas até chegar ao prato, esta carne produzida em biorreactores tem ainda de ser aperfeiçoada em termos de gosto. “Estamos a desenvolver tecido gordo, que é o que acrescenta suculência, textura e sabor”, disse Mark Post. A ideia é que à mesa chegue um bife tão parecido quanto possível com o cortado num animal abatido. “O que vamos vender não é um produto alternativo à carne, é biologicamente tecido animal, sem dúvida.”
Portugueses parecem receptivos
Do ponto de vista do consumidor, Chris Bryant, investigador do Departamento de Psicologia da Universidade de Bath (Reino Unido), apresentou uma revisão dos principais estudos internacionais (nos Estados Unidos e na Europa) desde 2005 até hoje. Concluiu que os interessados em experimentar esta carne são, na maioria, homens, jovens e omnívoros. “Tudo indica que os homens são em geral menos cautelosos do que as mulheres quando confrontados com comida que não lhes é familiar.” Por outro lado, os jovens “estão mais preocupados com questões ambientais e com o bem-estar animal”. Os vegetarianos e os vegans “não são o mercado para esta carne”: “Só 5% deste grupo está disponível para provar, talvez porque desenvolveram uma relação de nojo com a carne em geral.” Este é um dado uniforme quer nos EUA quer na Europa. Mas se quisermos comparar os dois blocos geográficos, “os norte-americanos estão mais predispostos” para consumir este novo produto.
No geral, a aceitação entre os consumidores varia, segundo os estudos, entre 16% e 66%, “dependendo de vários factores, de como se descreve o produto e como se faz a pergunta”. Em todo o caso, salienta Chris Bryant, “mesmo os números mais baixos colocam a procura do mercado muito acima do que é possível haver como oferta, pelo menos inicialmente”.
Em relação aos portugueses, Chris Bryant refere que, embora não havendo nenhum estudo recente suficientemente abrangente, sabe-se, a partir de um inquérito de 2005, que “Portugal está entre os países com maior aceitação na Europa em relação à carne cultivada em laboratório”.
Quanto ao futuro, o investigador salienta que os estudos mostram que a aceitação desta carne aumentará com o acréscimo no conhecimento e, neste momento, “metade das pessoas não faz ideia do que seja”. No geral, diz, “quando estiver no mercado, só o facto de estar à venda e haver pessoas a comer fará com que toda a gente fique muito mais confortável com o conceito”.
Do lado da regulamentação, tudo parece também estar a mover-se depressa. Karin Verzijden, advogada especialista em questões científicas, refere que a nova regulamentação da União Europeia para “novos alimentos” (novel food), em vigor desde Janeiro de 2018, irá tornar todo o processo de autorização muito mais expedito.
“Após receber a documentação, a Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) tem nove meses para se pronunciar. A Comissão Europeia terá em seguida sete meses para autorizar, ou não, a comercialização em território europeu. Antes não havia prazos”, sublinha Karin Verzijden. No total, desde a entrada de um pedido até à decisão final, não decorrerão mais do que 16 meses. “O meu conselho é que as empresas apresentem dossiers muito completos e trabalhem em conjunto com os técnicos da EFSA, explicando todas as implicações futuras a nível de segurança destes novos produtos.”
Karin Verzijden defendeu a transparência do processo, para garantir a adesão das agências reguladoras e que os consumidores se sintam confortáveis.
Também nos Estados Unidos o processo de regulamentação foi acelerado recentemente. “De Junho até agora, a paisagem mudou completamente”, refere por sua vez Chris Green, director do Departamento de Legislação Animal da Universidade de Harvard (EUA). “Normalmente, o processo de regulamentação é uma máquina pesada, mas em menos de seis meses a Food and Drug Administration (FDA) e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos puseram-se de acordo sobre quem irá ter jurisdição sobre a fiscalização. O que é uma coisa sem precedentes.” O que indicia que poderá ser rápida a entrada no mercado norte-americano, a não ser que “tudo fique empatado no Congresso”.
Para já, adianta Chris Green, os indícios são encorajadores: “Pensávamos que os industriais da carne eram um bloco só, mas nas recentes audiências públicas, onde isto foi discutido, vimos que a predisposição da indústria é a de que se houver mercado de carne de laboratório é para aqui que eles vão a correr.” Os directores-gerais destas empresas estudaram nas melhores escolas de gestão e não têm nenhum problema em mudar de agulha para o que for mais vantajoso. “Onde eu vejo um grande alarido é do lado dos criadores. Aqueles tipos que têm um rancho e aparecem de chapéu de cowboy nas reuniões. Ou nos criadores de aves, que estão aterrorizados.”
Sem grande antagonismo da indústria da carne e com maior pressão dos grupos ambientalistas e dos direitos dos animais cada vez mais fortes, o caminho para a venda de carne produzida a partir de células de animais parece não estar assim tão longe, nos Estados Unidos e na Europa. “O que é muito curioso é que essas indústrias já se estão a autodenominar ‘produtores de proteínas’, um pouco para assimilar estes novos tempos”, nota Chris Green.