Terão os livros escolares os dias contados?
Que consigamos sempre fugir das vias únicas, que não permitem a riqueza da diversidade de situações de aprendizagem.
Têm vindo a público experiências pedagógicas, em certas escolas, que baniram a utilização dos livros escolares, quer na sua versão física, quer na sua versão digital. Desde o 5.º ano de escolaridade, os conteúdos passaram a ser explorados de forma virtual, através da utilização de tablets. Estas escolas são notícia pelo pioneirismo das suas opções, que as coloca supostamente na linha da frente da modernidade, enquanto escolas do futuro.
As preocupações com o peso excessivo das mochilas, os gastos na compra de livros escolares e a preservação do meio ambiente são argumentos fortes dos defensores das soluções digitais e tecnológicas, a que juntam a modernização do processo de ensino-aprendizagem, que assim otimiza as competências dos nativos digitais.
Com uma perspetiva diferente, surgem todos os que continuam a fazer valer a importância dos livros escolares, do papel e da caneta na aquisição de aprendizagens estruturantes e sólidas. Contra-argumentam com a adoção de medidas mais eficazes, por parte das escolas, na disponibilização e utilização de cacifos; com os malefícios para a saúde resultantes do excessivo número de horas que os alunos passam em frente aos ecrãs; com os gastos na aquisição, manutenção e renovação regulares de equipamentos e licenças de utilização de plataformas educativas credíveis; com a necessidade de ligações à internet que não impeçam o normal funcionamento das aulas a centenas de alunos em rede; com a poluição, que também existe neste tipo de soluções; com a perda de hábitos de leitura, em papel, e de escrita à mão (vários estudos – Mueller e Oppenheimer, 2014; Stacy e Cain, 2015; Stacee Horwitz, 2017 – têm vindo a confirmar quão fundamental é mantermos a prática das notas manuscritas à margem dos textos que lemos, dos tradicionais apontamentos, por ativarem áreas cerebrais ligadas ao pensamento, à linguagem, à memória, à compreensão e à conceptualização, que o trabalho digital não permite, para além do que se fica a dever às destrezas da motricidade fina).
Estas notícias e o esgrimir de argumentos trouxeram-me à memória a Feira do Livro de Frankfurt, onde estive em outubro de 2018. No setor da feira dedicado à educação, a FrankfurtEdu, numa visita guiada por Michael Jay, o presidente da Educational Systemics (empresa norte-americana de tecnologias na educação), foi possível conhecer as novidades propostas por várias editoras do mundo. Sob a designação Trends and newcomers in education, a visita centrou-se nas ferramentas tecnológicas, a área de interesse de Michael Jay, mas os livros escolares acabaram por assumir protagonismo no debate, permitindo reflexões interessantes.
Em primeiro lugar, a maioria das inovações apresentadas parte de livros de leitura obrigatória ou de livros escolares e com eles mantem uma interação.
Em segundo lugar, países que enveredaram por soluções exclusivamente tecnológicas, como o Egito, que ali apresentava o seu Egyptian Knowledge Bank (um banco de recursos digitais, criado pelo Estado como uma estratégia para a educação nacional), mostraram-se sem resposta face às realidades apresentadas por alguns visitantes, conhecedores de causa. As falhas no acesso à internet e as avarias nos tablets, ao final de três meses de utilização, haviam feito regressar os livros em papel à sala de aula.
Em terceiro lugar, face à insistente questão do grupo – Como fazer com que crianças tecnologicamente estimuladas regressem à tranquilidade da leitura, à concentração e à interpretação de um texto em profundidade? – assistiu-se ao encolher de ombros ou à repetição dos chavões comerciais por parte dos expositores.
Em quarto lugar, há países, como a Coreia do Sul, a fazer uma grande aposta nos livros escolares em papel, de capa dura, com uma espessura enciclopédica e com articulação de saberes.
Em quinto lugar, a Finlândia e a Alemanha mostram-se cautelosos no uso das tecnologias na sala de aula, porque não querem perder as potencialidades do que, habitualmente por cá, se chama de “métodos tradicionais”: a leitura, os livros, o papel, a caneta e o lápis. Umas horas e uns quilómetros à frente, noutros setores da Feira do Livro, duas conversas fortuitas comprovaram esta realidade. Tuula Pere, uma escritora finlandesa de livros para crianças, falava-me orgulhosamente do valor que as crianças do seu país dão aos livros e do excelente funcionamento da rede de bibliotecas públicas, muito frequentadas por consumidores infanto-juvenis. O pai da Íris, uma menina lusodescendente de 11 anos, a viver na Alemanha, deu-me conta da oposição cerrada dos pais da turma da filha ao uso dos tablets. Esperam da escola o que lá em casa não podem dar: a leitura, a escrita, o cálculo, o trabalho, o treino... E quando o questionei sobre a motivação para a aprendizagem, que é argumento abonatório das tecnologias da educação, eis a resposta: a motivação é intrínseca, é o valor que as crianças e os jovens alemães reconhecem à escola, à sua formação, porque sabem que sem ela têm um futuro comprometido.
Claro que não precisamos de ficar na era do retroprojetor, a “caixa de luz” de que me falou a Íris, mas parece que os países desenvolvidos se pautam ou pela prudência e pelo equilíbrio na utilização da tecnologia na sala de aula ou mesmo pelo depuramento tecnológico, como se tem visto em França. Ainda recentemente, o New York Times, numa peça intitulada "The Digital Gap Between Rich and Poor Kids is Not What We Expected", mostrava como as escolas públicas norte-americanas promovem a utilização exclusiva de recursos digitais, desde o ensino pré-escolar, enquanto os mais ricos, incluindo os executivos de Silicon Valley, preferem as escolas livres de ecrãs. É preciso que impere o bom senso.
O certo é que às “novas” tendências digitais correspondem também novas tendências de “aprendizagem”, por parte dos alunos. Todos os professores convivem diariamente com a resistência dos jovens à leitura, à escrita, ao raciocínio, ao que dá trabalho e não é imediato. Leem na diagonal, por impaciência, tropeçam na leitura em voz alta, manifestam pobreza de vocabulário, incorreções na expressão escrita e dificuldades em descodificar mensagens, explícitas e implícitas. Ou seja, mostram-se cada vez mais acríticos e, por conseguinte, serão enganados mais facilmente.
As ferramentas educativas, em papel e no digital, devem ser complementares e não auto-excluir-se. Em Portugal, a caixa de luz da Íris já não brilha, há os computadores, os tablets, os quadros interativos e até os telemóveis, que são uma mais-valia, mas é urgente apostar na literacia digital, bem como na literacia da leitura, da escrita, do raciocínio e do pensamento crítico.
Que consigamos sempre fugir das vias únicas, que não permitem a riqueza da liberdade nem a riqueza da diversidade de situações de aprendizagem. Por isso, os livros escolares ainda têm muitos dias para contar.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico