Seus filhos de Marx!
Por mais irónico que seja, todos os ismos presentes nas discussões políticas pós-modernas sobre a realidade têm sido apadrinhados pelo materialismo histórico marxista.
Como apanágio do final de todos os anos, importa sempre – mais por tradição do que por uma necessidade declarada – fazer uma reflexão crítica sobre as vivências sociais ao longo do último ano. No entanto, e como existe sempre uma quantidade de comentadores bem mais articulados e experientes na redação de textos pós-modernos que eu, fazendo uso de jargões e recursos estilísticos dignos de criar espanto a qualquer criado mais inocente, pretendo aqui refletir um pouco no modo como individual e coletivamente refletimos sobre a realidade que nos se depara.
Desde a crise de 2008 até hoje, inúmeras experiências sociais foram vividas. Os argumentos técnicos, para todos os gostos, justificavam qualquer tomada de decisões de política económica. Todos os movimentos prós e contras os programas de austeridade, a título de exemplo, são reflexos bem claros na usucapião de argumentos técnicos, de proveito próprio, para justificar as diversas posições ideológicas. No entanto, e o que mais surpreende, é a aderência dos vários espetros políticos a explicar a realidade das sociedades a questões exclusivamente económicas (ou materiais).
Em Portugal, da esquerda à direita, todos os agentes esgrimiram ao longo desta última década argumentos económicos para explicar a realidade e justificar, assim, as suas medidas de política. Não posso, contudo, abdicar que os aspetos técnicos da economia tenham sido sempre extremamente valorados, um pouco por todo o mundo, na explicação da realidade. No entanto, a minha perceção é a de que esta simbiose entre realidade e economia, economia e realidade, tem-se intensificado no pós-modernismo do século presente. E, neste aspeto, somos todos filhos de Marx! Socialistas, conservadores e liberais, todos eles, durante os anos em que me foi possível analisar as discussões políticas com alguma distância, utilizaram argumentos económicos para justificar a sua perceção da realidade. Por mais irónico que seja, todos os ismos presentes nas discussões políticas pós-modernas sobre a realidade têm sido apadrinhados pelo materialismo histórico marxista.
A diferença dos vários pontos de vista políticos tem residido, então, numa pretensão tribal, fazendo recurso dos conceitos que melhor obedecem aos critérios de moral e de eficácia económica, de modo a edificar, na perspetiva dos agentes políticos, uma solidez inabalável dos seus ismos. Critérios de justiça económica, como por exemplo o ótimo de Pareto, entre outros, para justificar a aderência seletiva de argumentários justificativos das políticas de barricada parecem ser um caminho pernicioso para a cimentação de políticas.
E nesta última época, caro leitor, esta aderência tribal e seletiva dos critérios económicos de suporte às várias posições ideológicas tem sido gritante. Os mesmos que defendiam uma austeridade expurgante do governo de Passos Coelho são os mesmos que hoje criticam a austeridade reconciliatória de António Costa. O seu contrário também se verifica. É irónico ver os que rasgavam as vestes pelo nefasto das políticas económicas em tempos de troika, e agora suportam medidas de política económica igualmente austeritárias, ainda que bem mascaradas, deste governo. Estes últimos acabam hoje por ser, e como Álvaro Cunhal deliciosamente os critica num dos seus escritos, radicais pequeno-burgueses de fachada socialista.
Levantado o problema, que solução existirá – se é que existe apenas a unicidade de soluções – para explicar a realidade de uma forma que apela exclusivamente à razão, não tribalizada pelas várias dimensões da economia a gosto? A realidade explicada e que recorre unicamente a fundamentos racionais e a que, portanto, deveria ser útil para a melhor compreensão dos problemas com que as sociedades atuais se deparam, não pode, paradoxalmente, ser explicada pelos instrumentos ceteris paribus que a economia – e mesmo quase todas as outras ciências sociais – fornecem aos agentes políticos. Aliás, inúmeras vezes, senão sempre, as conceções ideológicas de política, com iguais implicações noutros domínios da vida individual dos agentes, estão sempre condicionadas por uma economia da perceção face às várias fontes de informação com que se deparam. Ora, a incorporação da incerteza parece ser fundamental para, da microeconomia do agente à macroeconomia da realidade social, se compreender as várias dimensões dos problemas com que as sociedades atuais, sem exceção, se deparam.
Ora, se a incerteza e a perceção da realidade são condicionantes intrinsecamente humanas, e sendo que estes servem também de avaliadores do sucesso de cada indivíduo sobre a eficácia dos objetivos a que se propõe, existirá sempre, dentro da estabilidade macroeconómica aparente, disrupções provocadas pelo indivíduo por diversas razões. Paradoxalmente, o indivíduo pode, por sua iniciativa – e escapando à luz da razão até hoje compreendida –, acabar por tomar decisões contra si próprio. É nestes distúrbios individuais que se provocam, muitas vezes, as instabilidades macroeconómicas.
No busílis da questão está, pois, uma dificuldade de a ciência económica incorporar e compreender nas suas análises a questão das instabilidades macroeconómicas associadas ao caótico que pode ser as decisões levadas a cabo pelo indivíduo. Ora, como este trabalho de compreensão é árduo, a reflexão sobre a realidade atual e dos tempos passados pede, por preguiça, uma aderência da explicação da mesma aos jargões económicos de fácil manuseio. E nisto, de modo muitas vezes tribal, acabamos todos por ser filhos de Marx!
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