Quantitative easing e os desafios da normalização
Os programas de QE foram as maiores intervenções públicas nas economias ocidentais, excluindo as guerras mundiais. Quais foram os resultados?
No passado dia 26 de novembro, no Parlamento Europeu, Mario Draghi reafirmou o final do programa de compra de ativos do Banco Central Europeu. Este anúncio sinaliza o final do quantitative easing (QE) por parte do BCE, que se junta à Reserva Federal (Fed) no processo de normalização da sua política monetária, e regresso às medidas convencionais, as taxas de juro.
Em circunstâncias normais, os bancos centrais executam política monetária através da definição de uma taxa de juro de referência. Esta taxa influencia o custo de financiamento dos intermediários financeiros, que transmitem as suas variações aos consumidores de crédito: famílias e empresas. Reduções na taxa de juro baixam o custo de acesso ao crédito, fomentando atividade económica e inflação.
Em finais de 2008, a economia norte-americana encontrava-se na pior recessão desde a Grande Depressão. A Fed respondeu baixando taxas de juro, mas a certa altura deixou de o poder fazer, pois estas tinham essencialmente chegado a zero. Esta é uma situação conhecida como “armadilha de liquidez”, em que o banco central deixa de conseguir utilizar o seu instrumento principal para influenciar a atividade económica.
Sem este instrumento, a Fed começou a analisar alternativas, virando a sua atenção para o Japão, cujo banco central enfrentara o mesmo problema no final da década de 90. Tal como a Fed, o Banco do Japão (BdJ) definia taxas de juro através da compra e venda de dívida pública de curto prazo. Com estas taxas a zero, o BdJ decide aplicar a mesma lógica a outros tipos de ativos, tentando estimular a economia com a sua compra. Estas medidas, chamadas “quantitative easing” (QE), são implementadas em novembro de 2008 pela Fed, que inicia grandes programas de aquisição de ativos, especialmente dívida pública de longo prazo e títulos de crédito hipotecário (mortgage-backed securities). O QE tinha dois principais objetivos: (i) afetar a taxa de retorno dos ativos adquiridos, de forma a incentivar o sector financeiro a gerar retorno noutro tipo de ativos, como crédito à economia real, e (ii) sustentar o valor desses ativos, apoiando assim instituições financeiras que estivessem com problemas de liquidez e incapazes de desempenhar funções normais de intermediação de crédito. Ao fim de três rondas de QE, os ativos da Fed chegaram a 4,5 biliões de dólares, cerca de 25% do PIB anual dos EUA.
O BCE, entretanto, adotava uma postura mais conservadora até novembro de 2011, quando Mario Draghi toma posse no auge da crise da dívida pública. No Verão de 2012, Draghi promete “fazer o que for necessário para proteger o euro” — sinalizando que o BCE compraria dívida pública dos Estados-membros, caso as circunstâncias o exigissem, o que teve efeitos estabilizadores imediatos [1]. O QE europeu é formalizado em 2015, quando o BCE inicia um programa de compra de ativos abrangendo títulos de dívida pública e privada, entre outros. Portugal beneficiou bastante deste programa, sendo que o BCE detém atualmente cerca de 15% da dívida direta do Estado.
Apesar de tardio, o QE do BCE já excedeu o da Fed em tamanho, correspondendo neste momento a 40% do PIB anual da zona euro. Os programas de QE foram as maiores intervenções públicas nas economias ocidentais, excluindo as guerras mundiais. Quais foram, então, os resultados? Vários estudos apontam para efeitos positivos na valorização de ativos, o que ajudou a fortalecer as condições do setor financeiro, que assim transmitiu estes efeitos positivos para a economia real, apoiando a criação de emprego e a procura agregada [2]. Medir o impacto exato de políticas macroeconómicas é, contudo, difícil, e requer a formulação de cenários contrafactuais: o que teria acontecido, se não tivesse havido QE? A resposta a esta questão requer combinar dados com modelos macroeconómicos, que impõem disciplina na formulação destes cenários alternativos. Por exemplo, constatar que “o PIB cresceu pouco” após a implementação do QE pouco nos diz acerca dos efeitos dessa política. Para medir o seu impacto, a questão relevante é se o PIB teria crescido mais ou menos na ausência da mesma.
A implementação do QE foi sujeita a muitas críticas, por parte de quem receasse que os bancos centrais estivessem a abusar das suas capacidades legais. Nos EUA, a Fed foi alvo de duras críticas por parte de políticos e comentadores; a criação de moeda para compra dos ativos levou a receios de hiperinflação. Na zona euro, o Tribunal Constitucional alemão questionou, por várias vezes, a legalidade do programa de compra de dívida pública do BCE.
À medida que as economias mundiais recuperam da Grande Recessão, os bancos centrais iniciam a normalização da política monetária, tentando terminar programas não convencionais como o QE e recuperar os instrumentos convencionais. Este é um processo delicado: uma redução apressada dos ativos pode agitar os mercados e contribuir para uma nova recessão. O final das compras é anunciado com muita antecedência e segue um plano gradual bem definido.
Por outro lado, a normalização também não pode ser demasiado lenta: as críticas ao QE levaram à erosão do capital político dos bancos centrais, fator que é amplificado pela ascensão do populismo e crescente desconfiança neste tipo de instituições. A implementação destas medidas extraordinárias pode vir a ser legalmente restringida, através de limites máximos ao volume de compras, por exemplo. A redução dos ativos torna-se assim urgente, para que os bancos centrais tenham espaço de manobra suficiente para combater uma potencial crise no futuro
[1] Ver https://www.nber.org/papers/w23985
[2] Por exemplo: https://www.federalreserve.gov/econres/feds/files/2018071pap.pdf. Para uma meta-análise dos efeitos empíricos de medidas de politica monetária não convencional, ver: https://s3.amazonaws.com/real.stlouisfed.org/wp/2016/2016-021.pdf
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