As democracias modernas resultam de um longo caminho de avanços e tropeços, cuja reflexão sobre os limites da acção política se mostra tão relevante agora quanto no tempo dos filósofos iluministas. No núcleo duro destas discussões encontra-se o malabarismo entre a secularidade do(s) Estado(s) e a liberdade religiosa. Ainda que vivamos assegurados pelos alicerces de Espinoza, Locke e Jefferson, o muro de separação entre Estado e Religião não é tão sólido quanto gostamos de acreditar, sendo o ensino da disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC) na escola pública portuguesa o exemplo maior da sua porosidade.
Não pretendo defender que a escola pública seja um espaço interdito à vivência e expressão religiosa — defendo, inclusivamente, que cabe ao Estado assegurar esse exercício livre e sem consequência para o indivíduo, segundo o princípio da “escola inclusiva” inscrita no Decreto-Lei n.º 55/2018. E ainda que seja desconcertante a existência de uma disciplina que inevitavelmente veicule a apologia do sobrenatural na escola pública, compreendemos todos que a flexibilidade e o respeito são elementos fundamentais para aplacar a onda populista que se alimenta da percepção de abandono e invalidação sentida por alguns cidadãos.
Não podemos, contudo, e sob o pretexto de não provocar a irascibilidade das paixões populares, erodir valores fundamentais como a secularidade das nossas democracias. E o ensino de EMRC na escola pública introduz desafios ao nível dos seus conteúdos, assim como da representatividade religiosa.
Ao nível dos conteúdos, é de salientar que o ensino de EMRC tem por base a Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé de 2004, na qual assenta o Decreto-Lei n.º 70/2013 que regula o ensino da disciplina na escola pública, e no qual podemos ler que é da exclusiva responsabilidade da Igreja Católica a elaboração e revisão dos conteúdos da disciplina. Ainda que possamos aceitar que isto se justifique pelo seu carácter específico, é fundamental que o Estado assegure que não sejam veiculados conteúdos imprudentemente acientíficos não circunscritos à relação com o divino (por exemplo, proposições criacionistas sobre fenómenos naturais), nem conteúdos que vão contra os princípios da República Portuguesa (por exemplo, posicionamentos face a estruturas familiares). É, ainda, da responsabilidade das autoridades diocesanas a decisão sobre a cessação de funções dos docentes da disciplina, podendo levantar sérios conflitos com o “princípio da igualdade” do artigo 13.º da Constituição Portuguesa: tem o bispo autoridade para impedir que um professor homossexual ou divorciado leccione a disciplina? É certo que os assuntos religiosos dizem respeito ao foro privado, mas manifestam-se in foro externo e, nesse sentido, devem seguir os princípios da República onde se inserem.
A questão de fundo é, também, a da representatividade: não é defensável que um Estado secular continue a estabelecer relações privilegiadas com uma denominação religiosa. Nesse sentido, e por forma a evitarmos uma secularidade proibitiva à la iluminismo francês ou o enganador ateísmo científico do marxismo-leninismo, uma possível alternativa seria esta disciplina ser a oportunidade para promover o pluralismo religioso (por exemplo, leccionada em módulos por elementos de diferentes religiões), e não uma evangelização monopolizada pela Cúria Romana.
Porque está na altura de voltarmos a conversar sobre o único muro que protege a nossa liberdade — inclusivamente a religiosa.