Lavar a alma a seco nos Arcos de Valdevez
Fazendo da Quinta Lamosa a base, passámos um fim-de-semana a descobrir as muitas razões pelas quais devemos vencer a inércia e sair de casa. Em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, aprendemos como se faz uma broa de milho autêntica e conhecemos Sistelo, a aldeia pendurada na serra que atrai cada vez mais forasteiros.
Com GPS ou sem ele, o problema não é encontrar a Quinta Lamosa, no lugar da Zebra, freguesia de Gondoriz, concelho de Arcos de Valdevez. O problema somos nós e os nossos impedimentos, reais ou fictícios, que nos separam de experiências acessíveis de um tempo que recordaremos como tendo valido a pena. A “pena”, neste caso, é a nossa inércia, que se pode traduzir em ideias de tempo demasiado quente, demasiado frio, demasiado chuvoso, demasiado qualquer coisa, para conseguirmos sair de casa e participar em mundos novos que nem sabíamos que estavam, ali, tão próximos, para nós.
Aceitemos o facto: já não dependemos de carros de bois sem suspensão para percorrer caminhos de montanha em terra e cascalho solto e pedregulhos pontiagudos tendo por iluminação candeias de azeite. Agora podemos chegar a qualquer lado com todo o conforto que nos dá a tecnologia moderna do nosso carro — ou, ainda melhor, do vosso carro — incluindo lados pensados para serem um ponto de acolhimento à nossa espera. Assim é a Quinta Lamosa.
Partindo de terrenos incultos, João Pedro e Carla Serôdio conceberam um lugar de descanso em forma de um quintal relvado e arborizado em socalcos onde encaixaram quatro casas (há projecto para mais uma) com uma disposição tão feliz que a privacidade dos ocupantes de cada uma das construções é sabiamente defendida da dos restantes. A casa maior (a Casa da Árvore) até tem uma ponte de acesso que, embora não seja levadiça, acrescenta uma sensação de independência e de defesa contra ataques de imaginários alanos, vândalos ou visigodos e dos seus descendentes mais directos ou por via colateral.
Sabendo que uma das casas (Casa da Corte) estaria ocupada por hóspedes estrangeiros, ficámos curiosos de saber até que ponto notaríamos a sua presença, mas, tirando a entrada ou saída ocasional de um carro, nada. Talvez fossem monges tibetanos em recolhimento que não tocassem trombetas curtas e muito menos das longas, mas que apenas se entretivessem a fazer contas de cabeça, em estado de levitação, sobre o fascinante Orçamento do Estado português.
Por isso era preciso submeter a tranquilidade da quinta a um exame mais sério: convidemos três casais com uma composição de 50% de jornalistas e um não-casal com 100% de jornalistas e vejamos se é possível resistir à recriação automática de um ambiente caótico de uma redacção média. Acreditem ou não, a prova foi feita e a tranquilidade prevaleceu. E mesmo considerando o peso de um representante da Fugas para manter a paz e fomentar a concórdia, o facto de a Quinta Lamosa ter resistido, funcional e pacífica, diz muito sobre a sua concepção e a sua gerência. Agora imaginem como poderá ser o ambiente com pessoas normais...
Assegurado o descanso, que inclui uma piscina exterior de água salgada (o que dispensa produtos químicos desinfectantes), a quinta é uma base para se ir mais além, acrescentando diversão, conhecimento, experimentação, deslumbramento à medida, até chegar à lavagem de almas a seco. A lavagem de alma que o nosso manual de instruções recomenda que façamos de tempos a tempos, para assegurar “a durabilidade do produto” (nós).
Se se quiser, há muito para fazer sem se ter a sensação de se estar a fazer alguma coisa. O apoio de João Pedro no acesso ao que nos interessa e as informações que nos pode dar sobre o que dantes não sabíamos que nos viria a interessar tanto são fundamentais. Desdobrando-se em guia que nos conduz com perícia na sua carrinha de nove lugares aos sítios que ele conhece e que nós queremos conhecer, sabe tudo sobre a região, os lugares, as distâncias, sabe guiar-nos para a boa comida (Restaurante O Barriguinhas, freguesia de Parada), para actividades aquáticas no rio Vez, que passa ali, a 200 metros da quinta, com alguém próximo e de confiança (Ricardo Teixeira, do Centro Aventura), ou hípicas, para a ecovia que se pode percorrer a pé ou de bicicleta (na quinta há bicicletas para alugar), para o Parque Nacional da Peneda-Gerês, a aldeia de Sistelo, a serra do Soajo, o Corno de Bico. Perguntem, que ele sabe. E o mais provável é que vos possa levar lá. E nós vamos.
Porta do Mezio
A Porta do Mezio é uma das cinco entradas no Parque Nacional da Peneda-Gerês, uma por cada município que lhe dá território. É a entrada do concelho de Arcos de Valdevez, com um conjunto de edifícios e infra-estruturas de apoio ao visitante devidamente tripulados por técnicos formados em várias áreas, com especial incidência na simpatia e na hospitalidade (também pode ser do ar da serra). Ali há várias mãos responsáveis pela administração e pela dotação de meios, devendo destacar-se a câmara municipal e a ARDAL – Associação Regional de Desenvolvimento de Arcos de Valdevez.
Atrás do edifício de recepção e orientação dos visitantes há um terreno adjacente à antiga casa do guarda-florestal onde havia um viveiro para reflorestação daquela área do parque. Atrás da casa, recuperada, há um centro de promoção dos produtos regionais onde até se pode almoçar, por marcação. Ali perto, um conjunto de casas em miniatura, em granito, representam a arquitectura tradicional regional, mais acima uma jaula com dois cães representativos de uma raça a que chamam aqui cão-sabujo-da-serra-do-soajo e, finalmente, a cozinha rural com forno de lenha que nos chamou aqui.
O nosso mestre é Joaquim Dantas, de 50 anos, natural da freguesia de Rio Frio. Não é apenas “o homem que foi lá fazer uma broa” para nós vermos. É o homem que se meteu, há uns anos, na aventura de, tendo o gosto de fazer broa em casa como a viu fazer à sua avó, investigar a receita que fosse a mais representativa do tradicional, do antigo, do genuíno. A broa faz-se de farinha de milho e de centeio, mas em que proporções? Onde encontrar as farinhas moídas em moinhos artesanais? E a levedura? E os tempos (de levedura, de cozedura)? E o tipo de lenha para aquecer o forno? Fez inquéritos nas zonas rurais circunvizinhas entre os mais velhos praticantes da arte, estudou e sistematizou as respostas, comprou uma escola primária desactivada e começou a fazer esse pão respeitador dos métodos imemoriais, que veio a ser reconhecido pelo movimento internacional Slow Food e a ser conhecido por “a broa de Rio Frio”. Foi esse saber que este estudioso entusiasta trouxe para a Porta do Mezio, incluído no projecto Sabores do Parque, para esclarecer vagas contínuas de ignorantes interessados e para dar exemplo de como interesses como estes podem ajudar a fixar população, tornando viáveis negócios de plantação e colheita, de moagem ou de criação de gado e de aves de capoeira autóctones, pagando-lhes um “preço justo” e preservando os produtos locais, tais como a carne de raça cachena, o feijão-tarrestre (deveria ser terrestre, mas um erro numa candidatura fixou esta forma, que me pede sais de frutos para a escrever), a laranja-do-ermelo, a galinha-preta, a galinha-amarela, a galinha-pedrês (para o famoso “pica no chão”).
Fazer broa
Por qualquer razão, há sempre menos entusiastas em meter a mão na massa do que em a comer, de qualquer modo que seja. Mas a atenção geral estava presa às explicações de Joaquim Dantas e à sua demonstração da produção caseira de uma broa de milho com preocupações de genuinidade e de preservação (prefiro dizer salvação) de processos, receitas e resultados que até há pouco foram tradicionais, nossos, mas em risco recente de perda.
Os circunstantes são industriados na arte de amassar, na arte de levedar, de conservar o forno à temperatura óptima, de não deixar o ponto da massa ficar aquém (que não dá broa) ou além (que dá broa azeda) e na proporção tradicional de farinha de milho e de centeio (três partes de milho para uma de centeio). Mas em tudo isto a chave é a prática, a experiência, o olho: as fissuras da massa dão o ponto, a cor do interior do forno dá a temperatura, etc.
Enquanto esperamos que a broa coza, passamos às instalações do centro de promoção de artigos locais da Porta do Mezio para apreciar uns petiscos que a amabilidade pôs sobre a mesa, com a co-responsabilidade de Joaquim Dantas e de sua mulher, Maria do Sameiro Dantas, funcionária camarária, de 54 anos, que acrescentou o carinho da transformação de carne de raça cachena em pedacinhos grelhados ou em alheira, o bacalhau em pataniscas, e – e aqui é preciso fazer um parêntesis encomiástico de um lambareiro – arroz em arroz-doce apaixonante, de que muitos restaurantes deveriam seguir a receita, para salvação deles e regalo nosso. Em todos estes processos, é preciso mencionar a coadjuvação dada pela técnica Cristina Rodrigues, de 37 anos, da ARDAL, desdobrando-se na sua função de recepção, orientação e apoio aos visitantes da Porta do Mezio.
Da voz do presidente da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, João Manuel Esteves, ouvimos descrições dos pontos de interesse do seu concelho e informações sobre os vários projectos em que o município está envolvido nas áreas mais directamente ligadas ao turismo, seja na manutenção e desenvolvimento da ecovia, do apoio à Porta do Mezio, da instalação de antenas para fornecer wi-fi em plena serra, onde não há rede de telemóveis, e outros de execução programada, como a construção do parque biológico com animais autóctones selvagens (cavalos-garranos, cabras-montesas) e de quinta. Também num futuro próximo, com a ligação da ecovia dos Arcos à ecovia de Ponte de Lima, espera que seja possível ir do mar (Viana do Castelo) à montanha (Sistelo) a pé, acompanhando o rio, num percurso de cerca de 70 quilómetros. Entretanto, existem percursos pedestres para todo o ano, com o programa 12 Meses, 12 Trilhos.
Sistelo, a aldeia pendurada na serra
Há uma aldeia pendurada na serra que merece a nossa atenção e a de cada vez mais forasteiros. João Pedro leva-nos lá, tal como faz aos seus hóspedes, que pode levar ainda mais acima, a Porto Cova, para que desçam de lá até Sistelo de bicicleta e depois apanhem ali a ecovia com passadiços que vai até Arcos de Valdevez. Em Sistelo, passeamos pelas ruas, visitamos o cruzeiro, o fontanário, os palheiros comunitários com o lavadouro por trás, a antiga escola primária, espreitamos as vistas para os socalcos talhados na serra. E reparamos na adaptação dos moradores a um trânsito de veículos e de pessoas que é crescente, de modo a poderem recebê-los em número.
O Café Ti’Amélia tem moedas equilibradas nas proeminências do granito de uma das paredes. Os donos lembraram-se de lá pôr umas moedas antigas, os visitantes quiseram imitá-los e foram deixando moedas modernas. É de manhã, tomam-se cafés, um chá preto, uma água com gás, experimenta-se um quadrado de bolo de cenoura, por sinal, bom. Rapidamente se enche o recinto, rapidamente se sai, está bem organizado, tudo roda sem sobressaltos, tirando uma água sem gás, de um outro grupo, que ficou por pagar. Uma rapariga é enviada lá fora, para ver se localiza o esquecido. Nada feito. Mas, felizmente, o tempo está de Verão, em meados de Outubro. Não resolve o problema do calote, mas traz mais clientes para diluírem o prejuízo da água.
Quem quer almoçar precisa de conhecer o restaurante que abriu em Maio deste ano, por iniciativa de uma família de Sistelo emigrada em França que voltou às suas origens para abrir a Pastelaria Pérola dos Arcos, na vila, e depois decidiu ir matar a fome aos visitantes da sua aldeia, Sistelo, tal como no-lo disse Ana Rodrigues, de 44 anos. É na parte de baixo da residência paroquial que funciona a sala de jantar, com desdobramento em esplanada, assim o tempo o permita, com vistas de abrir o apetite sobre a serra e os socalcos que os braços lhe foram conquistando em séculos. É o Cantinho do Abade. Com vários pratos e “carne da cachena às 7 maravilhas”, ao fim-de-semana. E uma inovação na doçaria: pastéis de feijão... feijão... feijão-tarrestre (raios!...).
Alguém quer ir-se embora? E o “embora” é de volta à quinta. Ora experimentem...
A Fugas esteve alojada a convite da Quinta Lamosa