Pode a sociedade desportiva subsistir sem a participação do seu clube fundador?
Nos termos da lei, a sociedade desportiva pode ser constituída de raiz, sem a necessária participação de um clube.
Uma das questões a que nos últimos tempos mais frequentemente sou chamada a responder, nos círculos de amigos, nas conferências e nas diversas aulas de seminários, pós-graduações e mestrados em que trato temas relacionados com as sociedades desportivas, é esta: pode a sociedade desportiva subsistir sem a participação do seu clube fundador?
A resposta, que já desenvolvi e continuarei a tratar de modo desenvolvido em sede própria, é simples: pode. E pode, desde logo, porque uma sociedade desportiva não precisa, para existir enquanto tal, de um clube fundador. Nos termos da lei, a sociedade desportiva pode ser constituída de raiz, sem a necessária participação de um clube; ele apenas é necessário quando se pretenda a constituição pela transformação (do clube) ou por personalização jurídica de equipa desportiva (do clube).
E se é verdade que ela se pode constituir sem um clube fundador, também o é que pode subsistir sem ele se, tendo o clube participado na sua constituição e necessariamente passado a ser seu sócio (o que apenas acontece na constituição pela personalização jurídica da equipa desportiva), entretanto deixar de o ser, pelas mais variadas razões – podemos estar a falar, por exemplo, de transmissão voluntária da participação que o clube detém na sociedade, mas também podemos estar a falar da própria insolvência do mesmo.
Porém – costumo ouvir –, a lei das sociedades desportivas determina que a participação do clube fundador, nas sociedades constituídas pela personalização jurídica de equipa desportiva, não pode ser inferior a 10% do capital social. É verdade. Mas esse limiar mínimo estabelecido na lei existe porque ao clube fundador, nas sociedades constituídas por esse meio (e só nesse caso), são legalmente conferidos meios de tutela especial; por outras palavras, o clube fundador recebe, aí, um tratamento distinto (mais favorável) daquele que teria um qualquer outro sócio, nessa ou noutra sociedade (tem, por exemplo, o direito de veto em determinadas deliberações sociais). Apesar do silêncio da lei neste ponto, essa regra não impede, nem poderia impedir, o clube de participar na constituição de uma sociedade desportiva de raiz, com uma qualquer percentagem no capital social. Nem o impede de, tendo optado pela constituição de SAD por personalização jurídica da equipa desportiva, livremente alienar, parcial ou totalmente, a sua participação (a própria lei das sociedades desportivas proíbe qualquer limitação à transmissão das acções da SAD); ou que ela seja alienada em consequência da declaração da sua insolvência.
Agora, então, a questão a colocar é diferente: se isso acontecer, se a participação do clube passar a ser inferior a 10% do capital social, ou até inexistente, o que acontece à sociedade desportiva que foi constituída por esta via?
A resposta é, mais uma vez, simples: isso não põe em causa a sua subsistência (até porque todos os elementos essenciais à prossecução do objecto da sociedade foram transmitidos à sociedade a título de entrada, como decorre imperativamente da lei das sociedades desportivas, e o clube não pode, em caso algum, pretender a devolução da sua entrada, como decorre das regras gerais do direito societário; retomarei em breve este tema). Mas implica necessariamente, e evidentemente, que a sociedade desportiva deixe de estar sujeita ao regime de especial protecção do clube fundador consagrado para as sociedades que resultam da personalização jurídica de equipa desportiva (de resto, esse é basicamente o único traço distintivo de regime, relativamente às sociedades desportivas constituídas por qualquer outro meio). Ou seja: a sociedade desportiva “sobrevivente” passa a estar sujeita ao regime estabelecido para as sociedades desportivas constituídas de raiz (apesar de ter sido constituída pela personalização jurídica da equipa), regime esse que se distingue daquele que lhe era até aí aplicável por não contemplar a (agora, desnecessária ou injustificada) tutela do clube fundador.
A última pergunta a que costumo ter de responder depois é: e essa solução não deixa desacautelada a posição dos clubes fundadores portugueses? A esta, respondo habitualmente com outra: e algum investidor irá algum dia equacionar investir significativamente, ao lado de um clube com claros problemas financeiros, numa sociedade desportiva portuguesa constituída pela personalização jurídica da equipa, se souber que corre o risco de um dia ver posto em causa todo o seu investimento com a hipotética extinção da sociedade desportiva, em caso de conflito com esse clube, ou de insolvência deste? É certo que este investimento comporta sempre riscos – mas a decisão que lhe subjaz exigirá, como qualquer outra decisão de investimento, a ponderação relativa à existência de um mínimo de segurança jurídica. Deste ponto de vista, então, esta é a única solução que tutela os interesses da generalidade dos clubes desportivos portugueses que carecem do investimento de terceiros para a prossecução da actividade desportiva.