De novo o Hospital Pulido Valente: para além da irracionalidade
Com a desarticulação do HPV, perdeu o SNS e perderam os portugueses.
Louve-se o artigo de Isabel do Carmo publicado neste jornal no passado 27 de Outubro, intitulado “Hospital Pulido Valente: um caso de irracionalidade do SNS”. E louve-se porque chamou a atenção para muitos aspetos importantes, como por exemplo, o de um Hospital (HPV) que era referência em algumas áreas e que a tutela decidiu desarticular; de um Serviço (SNS) que nos importa a todos porque tem a ver com o nosso bem mais precioso, a Saúde; da irracionalidade que preside a muitas decisões de quem governa aquele Serviço e de mais coisas que se abordarão neste artigo.
Fui médico desse hospital durante mais de 30 anos e, consequentemente, agente e observador atento das mudanças que ele foi sofrendo ao longo dos anos: de um antigo sanatório para um dos hospitais de topo no panorama hospitalar português. E como não se deve ser juiz em causa própria, permitam que vos diga que essa qualidade não lhe foi conferida pelos seus dirigentes ou funcionários, mas sim por entidades exteriores. É que o hospital era regularmente auditado, quer por uma empresa internacional de auditoria clínica, quer pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, que divulgava, anualmente, o ranking dos serviços hospitalares do SNS. Eram estas entidades que nos vinham dizer – a nós, à comunidade científica, à tutela e aos portugueses – que o hospital tinha áreas de excelência, com serviços de topo no panorama hospitalar nacional, como muito bem é referido no artigo.
Por exemplo, o Departamento de Pneumologia – lembro que a principal vocação do hospital era a medicina respiratória – era, em todo o país, aquele que possuía os critérios de eficiência clínica mais robustos e os mais elevados standards nas principais áreas da medicina respiratória, tais como: tuberculose, infeção pelo VIH, pneumonias, DPOC, oncologia pneumológica, hipertensão pulmonar, patologia do sono, doenças alérgicas, reabilitação respiratória, cuidados respiratórios intermédios e intensivos, técnicas invasivas, funcionalismo respiratório, hospitais de dia e tantas outras. Em todas estas áreas o hospital era uma referência nacional, onde médicos de outros hospitais vinham estagiar (e levar o saber apreendido para as suas instituições de origem) e a primeira escolha para aqueles que pretendiam, um dia, ser especialistas.
Mas havia mais. Tal como diversas organizações têm características definidoras próprias, aquela instituição também as tinha. A transmissão dos conhecimentos aos mais novos, sobretudo aos jovens médicos em formação, realizada pelos mais experientes, era uma chancela institucional, ou seja, a formação era uma das principais prioridades da instituição. Dito por outras palavras: fazia-se escola. O HPV era uma escola médica. Quem ganhava? Sem qualquer dúvida: a medicina portuguesa e os doentes.
Quando a nova organização dos hospitais na periferia de Lisboa se revelou uma ameaça que, eventualmente, poderia fazer perigar o futuro do hospital (novos hospitais em Loures e Vila Franca de Xira), os dirigentes elaboraram e apresentaram à tutela um projeto inovador que levaria o hospital para uma superespecialização em doenças torácicas médico-cirúrgicas. Esta opção elevaria o hospital a um patamar ainda de superior qualidade, como hospital de referência nacional para as doenças do tórax, estrutura muito necessária porque iria colmatar importantes deficiências, de então, do SNS, como por exemplo a transplantação de órgãos torácicos. Os aplausos foram muitos, as decisões políticas... nenhumas!
E hoje o HPV é um hospital decrépito. Desapareceram especialidades como as de otorrinolaringologia, gastrenterologia, dermatologia e cirurgia vascular. Outras estão reduzidas à sua mínima expressão, casos da medicina interna ou da cardiologia. A pneumologia perdeu, este ano, a sua idoneidade formativa, querendo com isto dizer que aquela que foi a grande escola de pneumologia do país não é hoje reconhecida pela Ordem dos Médicos como tendo capacidade para formar novos especialistas.
Perante um ambiente de progressiva degradação, os especialistas mais velhos pediram a aposentação e saíram logo que a legislação o permitiu. Os mais novos passaram a optar por outras instituições mais dinâmicas. O HPV foi-se desertificando, também em termos de recursos humanos. Os que ficaram estão desmotivados.
O HPV está a morrer aos poucos e por muitos motivos é pena.
O desmantelamento do HPV é uma prova concreta que não temos uma cultura de meritocracia. Não premiamos os melhores; por vezes, pelo contrário, penalizamo-los. Por outro lado – e esta é uma outra nossa característica –, ao não tirarmos proveito das diversas capacidades instaladas, desbaratamos uma série de recursos: recursos humanos (neste caso, altamente competentes), recursos tecnológicos (neste caso, altamente diferenciados) e recursos financeiros (de vulto), estes postos à disposição do SNS pelos portugueses, através dos seus impostos e outras contribuições ao Estado.
A irracionalidade de que fala Isabel do Carmo inclui, pois, muitos outros conceitos, como por exemplo, a falta de uma cultura de mérito, o esbanjamento de recursos instalados e a impunidade de decisores que tomam más decisões.
A título de exemplo: perguntem a um português que sofra de apneias noturnas e que tenha que fazer um estudo do sono através do SNS, qual o tempo de espera para a realização do exame. Ou a mesma pergunta a um outro português que sofra de obesidade mórbida e que tenha de se submeter a uma cirurgia bariátrica. Em ambos os casos, tempos de espera inadmissíveis. São apenas dois exemplos e servem para lembrar que aquele exame diagnóstico e esta técnica cirúrgica se realizavam no HPV.
Em minha opinião, com a desarticulação do HPV empobreceu-se o SNS e com ele a Saúde, que como sabemos é um direito consignado na Constituição da República. Perdeu o SNS e perderam os portugueses.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico