As estradas contam histórias
O que as estradas e ruas do mundo têm testemunhado, as histórias terríveis que guardam em silêncio, não devem ser esquecidas ou eliminadas.
As ruas e estradas contam histórias. Este foi o tema que a Federação Europeia de Vítimas do Tráfego Rodoviário (FEVR) escolheu para marcar as celebrações do Dia Mundial das Vítimas da Estrada, no que é já o seu 25.º aniversário.
E quantas histórias contam elas? Milhares, milhões de histórias. A questão é: que histórias são contadas e que histórias preferimos ouvir. As estradas têm histórias de todos os tipos: cómicas, alegres, aborrecidas, dramáticas e infelizmente também trágicas. As histórias trágicas, aquelas que não terminam bem, que terminam em sofrimento, dor e perda, sabemos que há muitas, e que pode acontecer a cada um de nós vir a ser protagonista ou figurante involuntário de uma deles, se é que não o foi já.
O que dizem, por que são contadas, como são contadas as histórias da estrada que não terminam bem? Quem quer ouvi-las, e quando? De facto, porque frequentemente parece às vítimas e aos sobreviventes, seus amigos e familiares, que ninguém as quer ouvir (porque são tristes, casuísticas, e parece que do foro privado), foi criado o Dia Mundial da Memória, para que pelo menos uma vez por ano as comunidades, os países, dêem a devida atenção coletiva ao que acontece – e não devia acontecer – nas ruas e estradas (sejam as "nossas" e dos "outros", as próximas e as distantes, as de hoje, de ontem e de anteontem).
É impressionante a estatística – talvez apócrifa – que diz que no início do século XX morriam mais peões nas ruas de Nova Iorque atropelados por cavalos que por carros. É talvez mentira, mas serve para nos lembrar que, pelo menos desde que a administração romana impôs a construção sistemática de estradas ao longo dos territórios do império, certamente muitas mais histórias poderiam ser adicionadas ao grande livro das tragédias da estrada. Mas a nossa memória não vai tão longe. Na verdade, a nossa memória não vai longe. A nossa memória é tão seletiva que por vezes parece que nem existe.
A humanidade gosta de pensar através de histórias. É um vício e uma forma de tentar entender o absurdo do mundo. É por isso que as histórias têm guiões específicos. Uma nova história trágica na estrada só faz sentido se se basear em outras histórias semelhantes, e se cair num formato que a sociedade pode reconhecer.
Gostaria de evocar aqui, como desafio ao leitor, duas histórias para ver se elas se encaixam ou não no formato devido.
A primeira é esta: há pouco mais de uma semana, os líderes dos principais países que se envolveram na Primeira Guerra Mundial reuniram-se sob a chuva parisiense para comemorar os 100 anos do Armistício da Primeira Guerra Mundial. Encontraram-se aí num momento em que a memória directa da guerra está já quase extinta porque os seus sobreviventes não sobreviveram ao destino da morte natural. E encontraram-se aí, numa altura em que há incerteza sobre o futuro da paz mundial nos próximos anos. A história comemorativa dessa tragédia indescritível está aí para ser contada pela sua moral final, que é lembrar-nos que o esquecimento pode ser a causa de novas guerras. Mas, como sabemos, as lições da Primeira Guerra não foram ouvidas ou foram rapidamente esquecidas. Vinte e um anos depois, os mesmos países e vários outros encenaram uma Segunda Guerra que foi ainda mais trágica do que a primeira.
Porquê evocar histórias que aparentemente nada têm a ver com estradas e carros? Porque, criado para ser realizado na semana seguinte ao Dia do Armistício, o Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada existe para lembrar ao mundo que uma outra catástrofe menos visível, mas igualmente devastadora, nos acompanha desde anos antes que as primeiras armas começaram a ser disparadas em 1914.
A catástrofe contínua e recorrente é aquela que tem sido desnecessariamente causada por modelos de mobilidade assentes em veículos de combustão interna. O que as estradas e ruas do mundo têm testemunhado, as histórias terríveis que guardam em silêncio, não devem ser esquecidas ou eliminadas. Elas servem, esperamos, para buscarmos melhores dias, e para não cairmos no erro de esquecer e não aprender as suas lições: como aconteceu com o grande erro de 1939.
Mesmo que os líderes mundiais não sintam que esta celebração merece a sua atenção mediática – porque têm mais com que se preocupar – e considerem que a tragédia nas estradas do mundo não merece a honra dos seus rostos tristes e sombrios, e as coroas de flores colocadas em monumentos bem tratados, não devemos esquecer os horrores da guerra civil que perdura nas estradas, essa guerra silenciosa ou silenciada, essa pandemia que, há mais de um século, vem manchando o nosso direito colectivo à vida e à dignidade. Evocar e celebrar este Dia é declarar que os pelo menos 30 milhões de vítimas da estrada merecem o mesmo respeito e o mesmo direito à memória que as vítimas das guerras, mundiais ou outras; e que vale a pena continuar a lutar para que as histórias trágicas da estrada não continuem a repetir-se todos os dias.
A outra história é muito recente. Aconteceu no passado sábado numa vila francesa. A vila é Pont de Boisevoisin, que tinha já no ano passado sido cenário involuntário de uma outra história trágica, o rapto, violação e morte de uma rapariga luso-descendente: a Maëlys de Araújo. Nesse dia, uma mulher de 42 anos conduzia, muito aflita, o seu 4x4 porque levava a sua filha doente para o hospital. Num cruzamento, encontrou um grupo de manifestantes vestidos com coletes de segurança amarelos. A pequena multidão cercou o carro e começou a bater nas janelas. Tomada de pânico, a mulher acelerou e atropelou uma outra mulher, de 60 anos, que se manifestava contra o imposto ambiental introduzido em França pelo mesmo grande protagonista das comemorações do Armistício, o presidente Emmanuel Macron. A mulher de 60 anos, que a comunicação social não nomeia, não sobreviveu aos danos causados pelas rodas do veículo que a atropelou e morreu no local.
Exactamente no mesmo dia, uma outra multidão reunia-se nas ruas e pontes de Londres para exigir que o governo britânico cumprisse o Acordo de Paris, com o nobre objectivo de salvar a humanidade dos impactos fatais das mudanças climáticas. Felizmente, desta vez não houve histórias trágicas nas ruas e pontes de Londres. Ninguém morreu na manifestação. Mas é de notar que ela foi organizada por pessoas que têm legítimo medo de morrer por fenómenos em grande parte causados pelo consumo excessivo de combustível dos nossos carros, que não só matam por desastre, mas também através da poluição atmosférica e do aumento do clima do planeta.
As histórias que a comunicação social conta são demasiado formatadas e nós também nos esquecemos de as ligar entre si. Mas a tragédia da manifestante de Pont de Boisevoisin, morta por uma mulher que acelerou porque temia pela vida da sua filha quando se sentiu atacada por uma multidão que se manifestava contra uma medida legislativa justificada pelo compromisso que o governo francês tomou ao assinar o Acordo de Paris contra as mudanças climáticas, é o tipo de história complexa que nos deve fazer pensar sobre o futuro da mobilidade, da sociedade e da humanidade. É também para isso que o Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada serve: para pensar e decidir.