Walter Salles, tão longe e tão perto
Um filme feito para retratar um momento específico da história pede com urgência para ser visto, mais de duas décadas depois. O que isso diz sobre Brasil e Portugal hoje? Entrevista a um realizador homenageado na edição 2018 do Leffest.
Na riqueza narrativa do cinema do brasileiro Walter Salles, realizador homenageado na edição 2018 do Lisbon & Sintra Film Festival (Leffest), há questões tão especificamente brasileiras quanto inequivocamente universais. Em Terra Estrangeira (1995), em especial, há uma Lisboa que já não existe e um Brasil que, 23 anos mais tarde, se revela assustadoramente próximo.
Terra Estrangeira (que no próximo domingo, dia 18, passa em Lisboa no Monumental 1, às 14h15 e será apresentado pelo realizador) fala do choque do desgoverno devido à eleição de Fernando Collor de Mello e da deriva como motor da busca de identidade. Após o anúncio do confisco da poupança, em 1990, um jovem de São Paulo, recém-órfão, vê-se sem rumo e aceita vir a Portugal em missão suspeita. Aí encontra brasileiros que se sentem cada vez mais estrangeiros, mas ainda assim não cogitam a hipótese de regressar. Na busca de alguém que não conhece mas que deve encontrar, ouve de um livreiro português: “Isto é a primeira que você vem a Portugal, não é? Isto aqui não é sítio para encontrar ninguém, isto é uma terra de gente que partiu para o mar. É o lugar ideal para perder alguém, ou para se perder de si próprio.”
O pessimismo e a falta de esperança parecem transformar o horizonte oceânico num muro. As saídas não existem. Afinal, qual é a nossa terra a que podemos chamar casa? Existe alguma pátria? Conversa com o realizador de Central do Brasil (1988), Diários de Che Guevara (2004) ou Pela Estrada Fora (2012).
O Governo Collor, eleito à época, extinguiu a Embrafilme, e isso foi uma forma de acabar com a memória visual daquele tempo. Hoje em dia assistimos à ameaça do fim do Ministério da Cultura e dos subsídios que alimentam o cinema e a arte no Brasil. Que paralelo vê entre a conjuntura política que Terra Estrangeira retrata e a do país hoje, pós-eleições?
A conjuntura actual tem pontos em comum com a eleição de Collor: mesmo salvacionismo, mesma profissão de fé neoliberal, mesma difusão do medo como motor ideológico. Não existiam ainda as fake news difundidas pelas redes sociais, mas os telejornais foram manipulados para garantir a vitória eleitoral. Nada de muito novo debaixo do sol tropical, portanto. A não ser O Ovo da Serpente, o perigo autoritário que Bergman retratou como ninguém.
Terra Estrangeira retrata cidades hostis, já que tanto São Paulo quanto Lisboa aparecem cruas, sem beleza, sem aconchego. A arquitectura é dura, não há turistas, não há cores, não há atractivos. Via as cidades assim à época?
Nos anos Collor, o Brasil torna-se pela primeira vez terra de emigração. Com o caos económico, mas também identitário que aquele desgoverno gerou, mais de 800 mil pessoas partiram do país. Terra Estrangeira busca retratar essa sensação de desterro. Há um sentimento de urgência a permear o filme. Daí a escolha da câmara na mão e do preto e branco, que Robert Frank definiu como “a cor da esperança e da desesperança”. Mas o filme também está tomado pelo desejo de voltar a fazer cinema, depois dos anos de silêncio forçado do início dos anos 90.
Há, na primeira parte do filme, um apartamento que se inunda, ressaltando a deriva do personagem que nele se encontra. Depois, em outros momentos, a ideia de ilha retorna, na ênfase de que cada pessoa está sozinha, sem saída. Alex, personagem interpretada por Fernanda Torres, a certo momento diz, apontando para o mar: “Isso aqui é o fim.” Vê esse sentimento como uma asfixia particular da época ou essencialmente ligado à condição humana?
Terra Estrangeira aborda uma sensação de não pertença e de orfandade que os anos Collor realçaram. Esse exílio é ao mesmo tempo político, económico e existencial. Nesse sentido, Central do Brasil [que passa no Espaço Nimas, este sábado, dia 17 de Novembro, às 15h, seguindo-se uma conversa com o realizador; no Centro Cultural Olga Cadaval Auditório Jorge Sampaio, 5ª, dia 22, às 14h30] funciona como o seu oposto complementar. A busca pelo pai que permeia Central é também a busca por um país possível, depois de 30 anos de ditadura militar e dos quatro anos de caos de Collor. Central do Brasil parte à procura de uma geografia humana e física eminentemente brasileiras.
O filme retrata uma ideia de não pertença, comum às personagens que emigram — não querem voltar ao Brasil, mas estão claramente perdidas e sentem-se mais estrangeiras à medida que o tempo passa. Entretanto, parece que aponta como saída — talvez a única — o encontro com o outro. É uma interpretação optimista ou demasiado romântica?
Os sentimentos de desterro e deslocamento afloram com constância na música ou no cinema brasileiros a partir da ditadura militar. Por exemplo, na última entrevista de Glauber Rocha, que [o actor] Patrick Bauchau realizou em Sintra quando filmava O Estado das Coisas, de Wim Wenders; nas letras que Caetano e Gil compuseram no exílio em Londres: “Eu não sou daqui/ Marinheiro só.” Da mesma forma, há em Vapor Barato, a canção de Wally Salomão e Macalé entoada por Alex, a personagem de Nanda Torres no final de Terra Estrangeira, uma evidente ambivalência: “Sim, eu estou tão cansada/ Mas não pra dizer q estou indo embora/ talvez.” A porta é deixada entreaberta, e penso que isso é necessário para seguirmos em frente, e viver.
Numa entrevista disse: “A ausência de um pai e a incapacidade de pertencer a um país andam juntas. Talvez seja uma questão atávica, vinda desde a colonização.” A questão colonial em Portugal permanece encravada, tanto em relação ao Brasil quanto às ex-colónias em África. Acha que é possível pensar Terra Estrangeira de maneira semelhante nesse sentido?
O guião de Terra Estrangeira foi radicalmente reescrito em Portugal, quando nos encontrámos em Lisboa com as pessoas que inspiraram as personagens de Angola, Cabo Verde e Moçambique que estão no filme e que nos pareceram tão próximas das personagens brasileiras. Fazem parte do mesmo contracampo do colonialismo, talvez. Tive essa mesma sensação recentemente, ao ler Cadernos de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo. Além de excelente, o livro pareceu-me reflectir uma realidade próxima.
Apesar de todas as diferenças, há algo de tristemente actual no filme. Mas uma sensação clara da passagem do tempo dá-se com a tecnologia, e consequentemente com os meios de comunicação. Era possível estar incomunicável, e por isso mais isolado e preso a algum lugar do que hoje. Como vê a passagem do tempo sobre o filme?
Não se está menos só por estar conectado 24 horas por dia nas redes sociais. Nisso, a sensação de solidão e deslocamento dominantes em A Cidade Branca de Alain Tanner, Alice nas Cidades de Wenders ou Profissão Repórter de Antonioni, parecem-me estranhamente actuais.
O êxodo brasileiro para Portugal — principalmente para Lisboa — é neste momento um fluxo intenso. A busca pela identidade e por uma ideia de pátria estão presentes no filme, assim como em quem vem para cá hoje. Será sempre uma busca impossível?
Mudar de país por questões políticas ou económicas é sempre um gesto doloroso. Mas também vale a pena lembrar que a errância e o deslocamento fazem parte da natureza humana, desde o nomadismo. Já dizia Wally Salomão: “Tenho fome de me tornar tudo aquilo que não sou.”