Será a censura que incomoda Pacheco Pereira?
Estamos de acordo, José Pacheco Pereira: a questão da censura não é primordial no que aconteceu em Serralves. Quer agora falar da competência da sua administração?
Tudo bem, José Pacheco Pereira, já pode marcar o seu “pontito”: não publicamos a fotografia com a qual pretende mostrar a “muita hipocrisia nesta discussão” porque o PÚBLICO não é um museu de arte contemporânea nem a sua direcção editorial tem como principal função fazer curadoria artística. Não podemos, no entanto, deixar de notar e sublinhar a missão messiânica a que se propôs na qualidade de administrador de Serralves e o consequente esforço para denunciar a suposta “campanha” que o PÚBLICO faz contra Serralves. Mas, o que incomoda José Pacheco Pereira: que a cobertura jornalística do jornal se tenha dirigido para a tal denúncia de “censura”? Ou que os factos noticiados pelo jornal exponham com crueza a fragilidade da administração que integra para gerir uma exposição com o potencial para a sensibilidade e a polémica de Robert Mapplethorpe: Pictures?
Não é preciso ter assim tanta erudição para perceber a razão pela qual José Pacheco Pereira escolhe o campo da “censura” para travar a batalha em favor da sua administração. Porque, estamos de acordo, reservar para salas de acesso protegido parte da obra mais polémica do fotógrafo não é censura coisa nenhuma. Fazer com que Serralves conserve os seus pergaminhos de instituição de vanguarda, aberta e cosmopolita e, ao mesmo tempo, seja suficientemente ecléctica para acolher diferentes sensibilidades e diferentes públicos é um atributo de qualquer boa administração. A censura é neste caso um dano colateral. José Pacheco Pereira sabe perfeitamente que a invocação de uma pretensa “censura” sobre as opções do director artístico é uma decorrência de um pecado original que, curiosamente ou talvez não, José Pacheco Pereira não refere.
E qual é esse pecado? A forma desastrada como a administração que José Pacheco Pereira integra geriu o problema da sala reservada. Porque toda esta polémica seria inexistente no seio de uma instituição coesa, onde fossem claras as pontes de contacto e os níveis de responsabilidade entre a administração e a direcção artística. Uma exposição como a do fotógrafo norte-americano exigia doses elevadas de coragem e de consenso para que pudesse ser inaugurada com as devidas blindagens às pressões dos que proclamam a liberdade artística irrestrita e dos que consideram que um museu é um espaço aberto a todos os públicos. Ora isso não aconteceu. A “campanha” do PÚBLICO consistiu em expor todos esses erros e as suas consequências. Pacheco Pereira admitiria ao jornal que um dos erros da administração foi “não falar logo forte e feio”. Talvez sim.
Mostrar as fotografias de Mapplethorpe mais susceptíveis de ferir sensibilidades num espaço reservado seria uma solução de equilíbrio que a sensatez acolheria com naturalidade. Mas para que isso acontecesse, o programa da exposição tinha de ser claro e sem margem para equívocos. O director artístico pode ter exorbitado da sua liberdade ao dizer que a exposição seria irrestrita. Mas a administração foi incapaz de prevenir esse dano e ainda mais de o gerir. Deixou que no dia da inauguração se soubesse que João Ribas não tinha cumprido o que anunciara numa entrevista ao PÚBLICO, deixou que se instalasse a ideia de que em Serralves é a administração que controla a curadoria artística, deixou alastrar a crítica de que o mais relevante museu nacional de arte contemporânea se transformou num banal estabelecimento que mostra quadros escolhidos pelos seus gestores.
Discutir todas estas questões que desgastam a imagem de excelência e prestígio de Serralves tornou-se o ponto essencial da crise Mapplethorpe. Foi isso que o PÚBLICO fez sem deixar de instigar o debate sobre os limites da liberdade artística e o papel da curadoria artística em projectos contemporâneos como os de Serralves. Ouviram-se vozes pró e contra e, por iniciativa e insistência nossa, ouviu-se José Pacheco Pereira em três páginas de entrevista com amplo destaque na primeira página. Se agora se queixa de partes “cortadas” é porque talvez imaginasse a reprodução integral das suas declarações ou mesmo uma edição inteira para expor a sua incompreensão pela falta de reverência do PÚBLICO à excelência da administração.
Já conhecemos José Pacheco Pereira há muitos anos e sabemos da sua arte para levar o debate para a trincheira onde melhor pode pelejar, deixando o principal campo de batalha deserto para não ter de expor a fraqueza das suas armas. É, aliás, por lhe reconhecermos esta visão esquinada do mundo que gostamos muito de o ter entre os nossos colunistas. Daí a tentar surgir na polémica de Serralves como o seu administrador corajoso e destemido que puxa da espada da sensatez para, em nome de uma falsa censura, se destacar como o paladino da luta contra a hipocrisia, vai uma grande distância. Estamos de acordo, José Pacheco Pereira: a questão da censura não é primordial no que aconteceu em Serralves. Quer agora falar da competência da sua administração?
Uma nota final: em consequência de um acordo entre o PÚBLICO e José Pacheco Pereira, cabe-lhe a escolha das fotografias que acompanham os seus textos. A opção pelo espaço em branco, a invocar a bem-sabida simbologia da censura, é da sua exclusiva responsabilidade. A Direcção Editorial