Cavaco Silva: "Surgiu perante mim uma mulher com ar simples e tímido"
Leonor Beleza apresenta no dia 24 de Outubro, pelas 18h30, o segundo volume de Quinta-feira e Outros dias: Da Coligação à "Geringonça". O PÚBLICO antecipa, em primeira mão, o capítulo onze das memórias do ex-Presidente da República, em cujas páginas Aníbal Cavaco Silva relata a sucessão de Pinto Monteiro e os bastidores da escolha de Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República. Há segredos revelados.
O Procurador-Geral da República, Juiz-Conselheiro Fernando Pinto Monteiro, terminava o seu mandato em 9 de outubro de 2012. Depois de, nas duas quintas-feiras anteriores, lhe ter lembrado este facto, o Primeiro-Ministro Pedro Passos Coelho entregou-me na reunião de 1 de outubro, segunda-feira, os curriculum de dois magistrados do Ministério Público. Mencionou um terceiro nome, de um ex-juiz do Tribunal Constitucional, em relação ao qual necessitava ainda de obter informação adicional. Sobre esses nomes tinha falado, disse-me, com o líder do Partido Socialista (PS), António José Seguro, mas este ainda não lhe tinha transmitido a sua opinião.
Perante as informações que tinha vindo a recolher junto de pessoas conhecedoras dos meios judiciários e de elementos da minha Casa Civil, chegara à conclusão de que o próximo Procurador-Geral da República deveria ser oriundo do Ministério Público.
O Juiz-Conselheiro Pinto Monteiro sempre mantivera um relacionamento correto com a Presidência da República. No entanto, confrontando as expectativas no momento da sua posse, quando lhe tinha recomendado “discrição na ação e visibilidade nos resultados”, e a realidade do seu desempenho, tinha de reconhecer que o mandato não correra bem. A sua dificuldade de diálogo e a tensão permanente com os elementos do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, em que as acusações mútuas na praça pública se sucediam, bem como as suas frequentes declarações à comunicação social e as controvérsias sobre casos concretos de investigação criminal, tinham sido muito negativas para a credibilidade e para a imagem do Ministério Público. Para a generalidade dos analistas e agentes da área da Justiça, ficara provado que a competência jurídica não era suficiente para gerir uma instituição como a Procuradoria-Geral da República.
Após a tomada de posse do XIX Governo Constitucional, em 21 de junho de 2011, surgira a dúvida quanto à data em que o Juiz-Conselheiro Pinto Monteiro cessaria as suas funções: a idade legal de jubilação, setenta anos, tal como acontecia com os Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo, ou seis meses mais tarde, quando se completassem seis anos de mandato sobre a sua tomada de posse.
Era sabido que o Juiz-Conselheiro Pinto Monteiro não tinha o apoio do novo Executivo, cujo desejo era substituí-lo o mais rapidamente possível. Vários membros do Governo tinham feito avaliações públicas muito negativas do trabalho por ele realizado.
Embora não tendo lei expressa a suportar a sua tese, Pinto Monteiro entendia que, tal como acontece com o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República não estava sujeito ao limite de idade para o exercício de funções públicas, se este ocorresse antes do fim do seu mandato.
Decidi optar pela interpretação do Juiz-Conselheiro Pinto Monteiro e disso dei conhecimento ao Primeiro-Ministro. Para mim, a afirmação da defesa do princípio da autonomia do Ministério Público e da garantia de independência do Procurador-Geral da República face ao Governo eram mais importantes do que eventuais razões de perda de confiança política. Por outro lado, era meu entendimento que só em circunstâncias excecionais se poderia justificar a interrupção do mandato do Procurador-Geral da República.
Na audiência que concedi a Pinto Monteiro, no princípio de maio de 2012, falei-lhe das dúvidas quanto à data de cessação do seu mandato. Pedi-lhe que evitasse polémicas e atritos institucionais com o Governo, em particular com a Ministra da Justiça. Apesar da minha advertência para que se empenhasse na criação de um clima de apaziguamento na área da Justiça que facilitasse a discussão pública das reformas decorrentes do Programa de Assistência Financeira, Pinto Monteiro sentiu necessidade de reiterar a acusação de que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público dominava o Conselho Superior do Ministério Público, de exercer influência nociva sobre a Ministra da Justiça e de estar na origem de fugas de informação para a comunicação social.
Um mês antes de cessar funções, voltei a receber o Procurador-Geral da República. Uma audiência cordial de despedida, em que me falou do orgulho que sentia por aquilo que tinha feito em diferentes áreas — cooperação com os PALOP, criação de equipas especiais de combate à criminalidade, combate às situações de violência doméstica, contra os idosos e nas escolas, investigação da corrupção, como nunca antes se verificara —, e também daquilo que gostaria de ter feito e não conseguira — alteração do Estatuto do Ministério Público e da composição do respetivo Conselho Superior. Por outro lado, fez uma breve análise das pessoas que poderiam ser candidatas à sua substituição. Fiquei a conhecer a sua preferência: uma Procuradora-Geral Adjunta diferente daquela que acabaria por ser escolhida.
No dia 3 de outubro de 2012, ao chegar de Madrid, onde fora receber o Prémio Nueva Economia Fórum e participar no encerramento do Encontro da COTEC Europa, tinha no meu computador dois e-mails do Primeiro-Ministro. Um, em que me enviava a lista final das medidas a incluir no Orçamento do Estado para 2013 acordadas com a troika, na sequência do abandono pelo Governo da decisão de alterar a Taxa Social Única (TSU), assim como o documento de suporte à conferência de imprensa que o Ministro da Finanças daria às 15h00; e um outro e-mail, fazendo saber que queria dar-me conta do resultado da conversa com António José Seguro sobre o novo Procurador-Geral da República.
Falámos telefonicamente cerca das 22h30. O líder do PS transmitira-lhe opiniões negativas relativamente a dois dos três nomes que me tinha apresentado a 1 de outubro. Quanto ao terceiro nome, Joana Marques Vidal, Procuradora-Geral Adjunta, que exercia funções nos Açores, a sua opinião era positiva e dava acordo à nomeação. O Primeiro-Ministro acrescentou que Joana Marques Vidal era também o nome preferido pelo Governo: tratava-se de uma mulher próxima da esquerda, sendo que obtivera informações de que era uma excelente profissional, de espírito independente.
No dia seguinte, 4 de outubro, falei telefonicamente com o líder do PS. Confirmou-me o seu apoio à nomeação de Joana Marques Vidal. Apoiaria igualmente o nome do Juiz-Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça que referira ao Primeiro-Ministro, um magistrado de competência jurídica indiscutível, mas compreendia a explicação que lhe fora dada para a sua não inclusão na lista dos potenciais candidatos.
Da análise a que entretanto procedi sobre os três nomes que o Primeiro-Ministro me tinha apresentado, cheguei à conclusão de que a vantagem pendia para o lado de Joana Marques Vidal.
No entanto, para além de não a conhecer pessoalmente — sabia apenas ser filha do Juiz Conselheiro José Alberto Marques Vidal, que fora diretor da Polícia Judiciária no meu tempo de Primeiro-Ministro —, as informações que sobre ela recolhera não eram uniformes. Para uns, como era o caso do Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, embaixador Pedro Catarino, era uma mulher íntegra, independente, dedicada ao serviço público. Também o Ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, que a conhecia, transmitira ao Primeiro-Ministro as melhores referências. Já para outros, não tinha estatuto e competência jurídica nem capacidade de liderança.
No final da tarde do dia 4 de outubro, telefonei à Ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, perguntando-lhe se tinha sondado Joana Marques Vidal sobre se aceitaria ser proposta pelo Governo ao Presidente da República para ocupar o lugar de Procuradora-Geral. Respondeu-me que o tinha feito naquele mesmo dia e que ela lhe dissera que considerava que não tinha condições para desempenhar um lugar tão difícil e mostrara grande resistência. Estava preparada para insistir e tentar convencê-la. Conhecia-a do Conselho Superior do Ministério Público e tinha dela uma excelente impressão.
Disse à Ministra que, apesar de Joana Marques Vidal merecer a preferência tanto do Governo como do PS, não podia dar luz verde à sua nomeação sem a ouvir e saber o que pensava do funcionamento do Ministério Público. Encontrando-se ela em Ponta Delgada, o melhor seria pedir-lhe para vir a Lisboa de modo a possibilitar uma apreciação mais completa.
No dia 5 de outubro de 2012, após as cerimónias dos 102 anos da Proclamação da República, a Ministra da Justiça telefonou-me dizendo que Joana Marques Vidal estava em Lisboa, que tivera com ela uma longa conversa e que estava disponível para aceitar o lugar, desde que tivesse a confiança do Presidente da República.
Combinei recebê-la às 17h00 no Palácio de Belém. Surgiu perante mim uma mulher com ar simples e tímido, pouco entusiasmada com a perspetiva de ocupar um lugar da relevância jurídica e política como o de Procuradora-Geral da República. Foi pouco clara quando lhe perguntei a opinião sobre a situação que se vivia no Ministério Público. Estava há sete anos nos Açores. Foi cuidadosa ao referir-se ao Procurador-Geral da República, mas não deixou de dizer que Pinto Monteiro sabia que ela discordava de várias das suas atitudes e decisões e deixara que se desenvolvesse a ideia de alguma interferência de poder político no Ministério Público.
Contrariamente a Pinto Monteiro, não entendia que o Procurador-Geral da República tivesse falta de poderes.
Surpreendeu-me a sua franqueza ao afirmar que era uma pessoa de esquerda, vista como não alinhada com o Governo em funções e que a sua nomeação podia dar lugar a críticas pelo facto de ter pertencido ao Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, de o seu irmão ser procurador em Aveiro e ter em mãos o processo “Face Oculta” e de o seu pai ter sido Diretor da Polícia Judiciária, aspetos que achava que eu devia ter em devida consideração.
Sublinhei que o Procurador-Geral da República devia ser uma pessoa independente em relação ao poder político e a outros poderes existentes na sociedade portuguesa. Referi-lhe que a eficácia dos magistrados e a confiança dos cidadãos eram fatores essenciais à credibilidade, ao prestígio e ao bom funcionamento de uma instituição como o Ministério Público. Havia que melhorar o controlo do segredo de justiça e a coordenação entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária no domínio da investigação criminal. Havia muito trabalho a fazer nestas áreas. Os conflitos entre o Procurador-Geral da República e o Sindicato — e também com o Governo —, as declarações intempestivas na praça pública, a gestão dos processos mediáticos e as fugas de informação tinham deteriorado bastante a imagem do Ministério Público, um pilar fundamental da nossa democracia, a quem cabe a responsabilidade pelo exercício da ação penal e a defesa da legalidade.
O novo Procurador-Geral da República devia ser capaz de marcar uma viragem na vida da instituição. Devia manifestar abertura ao diálogo e à cooperação construtiva com os outros operadores do sistema de justiça, de modo a concretizar as reformas necessárias nesta área. Acrescentei que o mau funcionamento da Justiça era visto como um custo de contexto para as atividades empresariais e como um fator de bloqueio ao desenvolvimento económico do País. Era isso que explicava a longa lista de medidas na área da Justiça que fazia parte do Programa de Ajustamento que o anterior Governo tinha negociado com a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu.
No final da conversa, retive a impressão de que Joana Marques Vidal tinha dúvidas quanto à sua capacidade para desempenhar cargo de tão grande responsabilidade e que nos últimos anos tinha estado envolvido em inúmeras controvérsias. Eu tão pouco estava seguro de que o seu perfil fosse o mais adequado para o lugar. Fiquei com a ideia de que se tratava de uma pessoa honesta, discreta, ponderada, não agressiva, que, pelo seu feitio, gostaria de ser vista como independente mesmo em relação aos mais próximos, como o Sindicato e a esquerda política, e que não seria uma mulher com apetência mediática.
Fiquei convicto de que seria diferente do Juiz-Conselheiro Pinto Monteiro quanto a dois pontos importantes, em que ele, na minha opinião, tinha falhado: o diálogo com os magistrados do Ministério Público e com os outros responsáveis do sistema de Justiça, e a contenção verbal perante a comunicação social.
Cheguei à conclusão de que Joana Marques Vidal tinha vantagem em relação aos outros nomes que o Governo me apresentara: estivera afastada das polémicas em que o Ministério Público se envolvera nos últimos anos e era aceite tanto pelo Governo como pelo maior partido da oposição.
Foi na manhã desse 5 de outubro que se deu, durante a cerimónia comemorativa dos 102 anos da Implantação da República na Câmara Municipal de Lisboa, o episódio da Bandeira Nacional invertida. Da posição em que nos encontrávamos, na varanda dos Paços do Concelho, a puxar a adriça com o Presidente da Câmara, António Costa, não nos apercebemos de que a Bandeira Nacional estivesse mal colocada.
De forma correta e mostrando-se disponível para procurar reparar a situação, António Costa escreveu-me no dia seguinte, ciente de que eu fora “totalmente alheio ao erro cometido”. Em seu nome e no do Município de Lisboa, apresentou desculpas pelo “desagradável incidente” e pelo “incómodo causado” e assumiu as responsabilidades pelo “lapso involuntário de quem embainhou a bandeira”.
O episódio foi explorado mediaticamente para atacar o Governo e o Presidente da República, que nada tinham a ver com o erro. No rescaldo da crise da TSU e do anúncio do “enorme aumento de impostos”, era uma metáfora aliciante para os partidos da oposição e para a comunicação social, sobretudo num tempo em que as divisões internas no Governo se tornavam evidentes.
Nesse dia 5 de outubro, antes do almoço, o líder do PS telefonara-me a dar conta da opinião sobre Joana Marques Vidal que tinha recolhido junto do Juiz-Conselheiro Fernando Pinto Monteiro e do Presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins. Surpreendeu-me esta auscultação, tratando-se de um assunto confidencial. Não me espantou, pois, que já antes da audiência ao Primeiro-Ministro o nome de Joana Marques Vidal tivesse aparecido na imprensa online.
A decisão não podia ser adiada. Dos três nomes que o Governo me tinha apresentado, a minha preferência ia claramente para Joana Marques Vidal, e não tinha razões para declinar a sua nomeação.
No dia 8 de outubro, segunda-feira, reuni-me com o Primeiro-Ministro para resolver em definitivo a escolha do novo Procurador-Geral da República. O Procurador em funções terminaria o mandato no dia seguinte.
O Primeiro-Ministro confirmou-me que Joana Marques Vidal aceitava desempenhar o cargo, afirmou que a Ministra da Justiça estava convencida de que se tratava de uma excelente escolha e sublinhou a importância de ser uma pessoa que chegava “limpa” à Procuradoria-Geral da República, sem trazer consigo notícias ou polémicas referentes a casos passados.
Comecei por dizer-lhe que a recebera no dia 5 de outubro. Se bem que uma única conversa não permita uma avaliação adequada de uma pessoa, ficara com a ideia de que era uma mulher séria, profissional, que pensava pela sua própria cabeça, com preocupações de isenção e rigor e sentido de serviço público. Quanto às suas capacidades de liderança e para enfrentar situações difíceis, não era capaz de me pronunciar.
Concluí dizendo ao Primeiro-Ministro: “É fundamental que o Ministério Público entre numa nova fase. Deus queira que resulte.”
A posse de Joana Marques Vidal como Procuradora-Geral da República teve lugar no dia 12 de outubro. No discurso que então proferi, afirmei: “A atuação dos magistrados do Ministério Público deve pautar-se pelo rigor e pela discrição e deve ser avessa a protagonismos mediáticos (...). A investigação criminal e a defesa da legalidade devem ser realizadas com isenção e com rigor, apresentando resultados concretos aos cidadãos que legitimamente aspiram a uma Justiça mais célere e mais eficaz.”
As minhas expectativas quanto à nova liderança da Procuradoria-Geral da República não eram muito elevadas, mas a verdade é que Joana Marques Vidal acabou por me surpreender pela positiva. Dos contactos que com ela mantive durante o meu tempo de Presidente da República, concluí que era, de facto, uma pessoa ponderada e reservada, dedicada ao serviço público, empenhada em imprimir um novo rumo à magistratura do Ministério Público e em melhorar a capacidade de investigação criminal.
Na audiência que lhe concedi em dezembro de 2015, felicitei-a pela discrição e contenção verbal em relação à comunicação social, pela gestão cuidadosa das suas declarações públicas e pela abertura e serenidade demonstradas no diálogo com os órgãos de soberania e com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, o que contribuíra significativamente para a melhoria da imagem da instituição.
Referi também, com agrado, o progresso registado no combate às fugas de informação, e às violações do segredo de justiça, domínios que exigiam um esforço continuado e absoluta determinação de penalizar os infratores.
Em maio de 2015, em audiência no Palácio de Belém, o Presidente do Sindicato dissera-me: “A atual Procuradora-Geral da República, por ser da casa e conhecer o problema da investigação, pacificou o Ministério Público.”
Devo reconhecer que Joana Marques Vidal, em cujo mandato se concentraram casos de enorme complexidade, revelou capacidade de comunicação, firmeza nas difíceis decisões que foi chamada a tomar e imprimiu uma nova dinâmica à investigação criminal. Conquistou a confiança e o respeito dos portugueses.