Exílios da memória: progresso e nostalgia

Uma deambulação pelos rios e lagos suíços que acolheram músicos, escritores e filósofos nos seus exílios. Wagner, Sebald, Mann, St. Gall, Nietzsche. Lugares que revelam a confluência da fé no progresso com a nostalgia pela tradição.

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Na terceira parte da viagem rumamos a norte, passando pelos lagos da Suíça germânica e pelas várias paisagens que influenciaram os exílios de músicos, filósofos e escritores. Partimos do Grimselsee, exploramos a bacia hidrográfica do Reno, passando pelas abadias medievais do lago Constança, seguimos até aos sanatórios de Davos, terminando em Sils, no vale do Engadin. Este percurso permite-nos reflectir sobre o papel da arte como expressão da identidade colectiva durante o século XIX, encontrar lugares de preservação da memória cultural, de desenvolvimento tecnológico em nome da pátria e paisagens que inspiraram reflexões sobre a história e a cultura. Estes lugares revelam as tensões entre a procura de uma identidade cultural colectiva materializada nas ideias de autenticidade e tradição — kultur — e a construção de uma identidade individual — bildung.

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Mitos de unificação

Percorremos o curso do rio Aare em direcção ao mar do Norte, passando por inúmeras barragens e reservatórios até encontrar o rio Reuss, que seguimos até às margens do lago Lucerna. Neste lago rodeado de montanhas azuladas — Rigi e Pilatus —, há uma península onde encontramos a Villa Tribschen, a casa onde Richard Wagner viveu entre 1866 e 1872, os sete anos do seu segundo exílio suíço.

Foi Luís II da Baviera que financiou a estreia de Tristão e Isolda na Ópera de Munique em 1865 e patrocinou a estada em Tribschen de Wagner e Cosima — filha do compositor Franz Liszt. Foi neste momento que Wagner retomou o trabalho da tetralogia O Anel do Nibelungo, que estava suspenso desde 1857, e iniciou o último capítulo da sua carreira que culminaria em Bayreuth.

Da margem do lago, subimos uma colina até à Villa Tribschen, com o perfil do monte Pilatus ao fundo.  Nas salas encontramos o piano Erard — que o acompanhou desde Veneza a Bayreuth —, pautas manuscritas, aguarelas e uma lista de visitas onde constam Gottfried Semper — o arquitecto da Ópera de Dresden — e Friedrich Nietzsche.

Nietzsche visitou Wagner pela primeira vez em 1869 e a partir daí desenvolveram uma amizade fundada numa admiração mútua pela obra do filósofo Arthur Schopenhauer. Foi depois de ler O Mundo como Vontade e Representação (1819) que Wagner suspendeu o trabalho em O Anel do Nibelungo e em 1858 compôs Tristão e Isolda com novas ideias sobre a música.

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Lago Lucerna a partir da Villa Tribschen, a casa onde Richard Wagner viveu entre 1866 e 1872, os sete anos do seu segundo exílio suíço; pormenor do Bourbaki Panorama, uma pintura que representa um episódio da Guerra Franco-Prussiana

Subimos ao segundo andar, onde estavam os quartos de Cosima e dos convidados. Nietzsche visitava tão regularmente o compositor que tinha o seu próprio quarto. Da janela aberta vimos o perfil do monte Rigi a leste, tão azul como na aguarela The Blue Rigi (1842) de J. M. W. Turner.

Os diálogos de Nietzsche com Wagner conduziram à escrita de O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música (1872). Para Nietzsche, a música de Wagner dava acesso ao “arrebatamento que resulta do colapso do principium individuationis” de onde “vislumbramos a essência do Dionisíaco, que nos é revelado pela analogia da embriaguez”.

Nietzsche foi voluntário na Guerra Franco-Prussiana (1870-71), apesar de ter renunciado à sua cidadania prussa no ano anterior. Como professor de Filologia em Basileia e residente na Suíça — um país neutro —, foi apenas autorizado a participar como paramédico. Passou uma semana na frente de guerra, tendo sido dispensado por doença no dia 2 de Setembro, na Batalha de Sedan — o mesmo dia em que Napoleão III se rendeu.

Em Lucerna, visitámos o Bourbaki Panorama, uma pintura com 112 metros de perímetro, que representa um importante episódio da Guerra Franco-Prussiana, a rendição das tropas francesas, comandadas pelo general Charles Bourbaki, na fronteira entre a França e a Suíça.

Este panorama foi pintado por uma equipa liderada por Édouard Castres — que tinha testemunhado o conflito como voluntário da Cruz Vermelha. A pintura representa o cansaço, o desânimo e as privações dos soldados, que depois de entregarem as suas armas recebem ajuda antes de serem colocados em comboios como prisioneiros de guerra. Nota-se a diferença entre o lado sombrio de França — de onde emergem as tropas — e o lado suíço — onde uma aurora clara assinala a paz e as protecções garantidas pela Convenção de Genebra.

Sem oposição, as tropas alemãs cercaram Paris. Em Janeiro de 1871, o chanceler Otto von Bismarck conduziu a Proclamação do Império Alemão e do kaiser Guilherme I, na Sala dos Espelhos em Versalhes — sob o tecto que celebra as vitórias de Louis XIV no Reno — consumando a unificação dos reinos e principados que faziam parte da Confederação Germânica.

A propósito desta vitória, Nietzsche reflectiu em 1872: “Das consequências que decorreram da guerra recente com França, talvez a mais grave seja um erro largamente difundido: [que para além do Exército] também a cultura alemã foi vitoriosa nesse conflito e, portanto, deve ser coroada de louros.”

É no contexto da unificação germânica que Wagner termina a composição da música dos últimos dois capítulos de O Anel e procura apoio para construir um teatro onde possa criar um festival — à semelhança dos festivais dionisíacos de Atenas — e apresentar o ciclo completo da sua tetralogia, o primeiro dos quais tem lugar em Bayreuth, em 1876.

A origem de O Anel é um poema medieval — Nibelungenlied — esquecido durante vários séculos até ser recuperado em 1755. Goethe não lhe deu importância, mais tarde Friedrich Schlegel admirou-o e gradualmente transformou-se num épico nacional. Em 1848, quando um jornal de música incentivou a criação de uma ópera baseada em Nibelungenlied, Wagner respondeu com o libreto de Siegfrieds Tod, que acabou por ser utilizado para o último capítulo do ciclo. Wagner parece personificar uma descrição do seu texto Was ist Deutsch? (1865): “Na sua alta torre erguida até às nuvens (...) mantém vivos os feitos dos antepassados e tece os mitos dos deuses da nação numa teia infindável de sagas.”

Durante o tempo que passou em Dresden, onde era kappelmeister (mestre de capela), Wagner já tinha composto uma ópera baseada numa narrativa medieval, Tannhäuser, estreada em 1845 no teatro projectado por Semper. A abertura e o primeiro acto mostram o fim dos sete anos que o bardo medieval Tannhäuser passou em dissolução dionisíaca na Venusberg — a montanha onde reside Vénus.

Anos depois, Semper e Wagner participaram na revolta de Maio de 1849 em Dresden — o arquitecto construiu barricadas e o músico encomendou granadas —, cujo fracasso resultou no exílio de ambos. Wagner escapou para Zurique e não assistiu à estreia de Lohengrin em Weimar, dirigida por Franz Liszt, para comemorar o centésimo primeiro aniversário de Goethe.

Lembramo-nos das palavras de Goethe: “A literatura nacional é agora [1828] um termo sem significado; a época da literatura do mundo aproxima-se e todos devemos apressar a sua chegada. Mas, enquanto valorizamos o que é estrangeiro, não nos devemos confinar a nenhum modelo em particular. Não devemos dar esse valor à China, à Sérvia, a Calderón [de la Barca] nem a Nibelungen.”

O Anel do Nibelungo

Saímos de Lucerna, passamos por Zurique a caminho de Reichenau, uma ilha do lago Constança que marca o início do Reno alemão. Aí houve um importante centro de produção de manuscritos e de bibliotecas entre os séculos XI e XII. A hagiografia de St. Gall foi escrita por monges beneditinos de Reichenau e conta a sua viagem desde a Irlanda subindo o Reno, passando pelo reino dos burgúndios — onde se centra a acção de Nibelungenlied —, até construir o seu eremitério nas margens do lago Constança.

Deixamos Reichenau e seguimos o percurso deste monge irlandês ao longo do lago até St. Gallen. É na biblioteca da Abadia de St. Gall que está guardado o mais antigo dos raros manuscritos de Nibelungenlied — o manuscrito B. Durante a Reforma Protestante, no iconoclasmo de 1528, a abadia foi parcialmente destruída — a colecção da biblioteca foi preservada — e foi construído um muro que a separou da cidade de St. Gallen, que se tinha desenvolvido à sua volta nos últimos oito séculos.

A importância das bibliotecas monásticas para a preservação da memória cultural europeia não deve ser esquecida. Foi na biblioteca da Abadia de St. Gall que Poggio Bracciolini redescobriu em 1414 o manuscrito de De Architectura, de Vitrúvio, um tratado cujo impacto cultural se fez sentir desde o Renascimento até hoje. Do espaço desta biblioteca medieval já só resta a memória, o que podemos visitar hoje é uma sala barroca com elegantes estantes de madeira. Estavam em exposição uma série de manuscritos medievais irlandeses, um dos quais os evangelhos de St. Gall, aberto numa página com uma figura de braços abertos, pintada em tons de terra de Siena e vermelho de Veneza.

Visitámos a igreja da abadia, reconstruída no século XVIII, que nos lembra as igrejas barrocas de peregrinação, como a igreja de Wies, assim como o tecto da Residência de Würzburg (ambos na Alemanha), pintado por Tiepolo.

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Durante o exílio na Suíça, Wagner fez várias caminhadas pelos Alpes. O Seealpsee, um pequeno lago nos Alpes Appenzell, fazia parte dos seus roteiros. Em cima, à esquerda, a Bruderklausenkapelle nesta zona dos Alpes; a Venusberg de Seealpsee, Appenzell

Durante o seu exílio na Suíça, Wagner fez várias caminhadas pelos Alpes e nós seguimos uma das suas visitas ao Seealpsee — um pequeno lago nos Alpes Appenzell. Subimos pelo vale seguindo um rio, passamos por prados verdes com pinheiros escuros, acompanhados por uma música intermitente que ocupava todo o vale com uma sonoridade esparsa e abstracta — entre Arvo Pärt e Steve Reich —, criada pelos badalos dos animais que pastavam nas encostas e parecia marcar a entrada para um lugar mágico.

O pequeno lago, enquadrado pelos cumes do Säntis e Altenalp Türm parece uma pintura romântica e evoca a cenografia das encenações da Venusberg no Tannhäuser de Wagner. Baudelaire assistiu à apresentação desta ópera em Paris em 1861 e escreveu: “A radiosa Vénus antiga, a Afrodite nascida da espuma branca, não atravessou impunemente a escuridão horrífica da Idade Média (...) ela retirou-se para o fundo de uma caverna, magnífica, é certo, mas iluminada por chamas que não são as do benevolente Apolo. Os poemas de Wagner (...) partilham intensamente o espírito romântico (...) e assemelham-se às grandes visões que a Idade Média apresentava sobre as paredes das suas igrejas ou tecia nas suas magníficas tapeçarias.” 

As árvores à beira do lago, com as suas raízes contorcidas sobre as rochas, harmonizadas com a cor da pequena igreja, transportam-nos para as florestas primevas desenhadas por Otto Hunte para a cenografia de Os Nibelungos — A Morte de Siegfried (1924), de Fritz Lang.

Este filme é baseado em Nibelungenlied, e como o poema está dividido em duas partes. A primeira conta a história de Siegfried, um príncipe da região do Reno que se aventura pelo reino dos burgúndios — governado por Gunther — e onde acaba por morrer. A segunda parte conta a história da vingança de Kriemhild — a sua mulher e irmã de Gunther —, que massacra todos os responsáveis pela morte de Siegfried.

Lang realizou as duas partes do épico, seguindo o argumento de Thea von Harbou, sua mulher, em cinco inebriantes horas de paisagem, morte e vingança. As peripécias narrativas são absurdas, mas a cenografia cria quadros surpreendentes, de inspiração medieval reinterpretada de um modo modernista. Recorda-nos as fantasias de Schlegel em Fundamentos da Arquitectura Gótica (1803): “O Reno é aqui mais belo, animado no seu curso por (...) rochedos suspensos e castelos arruinados, parece uma pintura, a criação intencional de um génio artístico.”

Quando Lang foi a Nova Iorque apresentar a estreia de Os Nibelungos, a cidade revelou-lhe o imaginário do seu próximo filme, Metropolis (1927), em que voltou a colaborar com Von Harbou e Hunte. O filme representa uma distopia futurista e tecnológica onde máquinas voadoras atravessam os desfiladeiros criados por arranha-céus e uma sociedade que parece materializar as proféticas palavras que Jacob Burckhardt — colega de Nietzsche em Basileia — escreveu em 1870: “[A máquina militar] vai tornar-se o modelo da existência. (...) De todas as classes, os trabalhadores vão sofrer as transformações mais estranhas; (...) uma pobreza planeada e controlada, com promoções e uniformes, começando e acabando diariamente ao som dos tambores é o que deve logicamente seguir-se.” 

Estes dois filmes de Lang revelam a tensão, que animava a república de Weimar (1919-1933), entre a alienação da vida na sociedade industrial moderna e a nostalgia que busca a autenticidade nos mitos fundadores e na tradição.

Progresso e memória

Contornamos o lago Constança — Bodensee — passando por pomares de macieiras e vinhas. Chegamos a Friedrichshafen ao anoitecer, uma cidade banal na margem norte do lago, onde foi fundada a Luftschiffbau Zeppelin GmbH, um centro industrial de design e fabrico de dirigíveis.

O conde Ferdinand Adolf von Zeppelin, oficial na Guerra Franco-Prussiana, começou a desenvolver a ideia deste meio de transporte em 1874, o seu primeiro dirigível LZ 1 voou sobre o lago Constança em 1900, e as ligações comerciais regulares entre Berlim, Munique e Friedrichshafen começaram em 1910 — a primeira companhia aérea comercial.

Visitámos o Zeppelin Museum, que celebra a engenharia e o progresso e se situa na antiga estação ferroviária do porto de Friedrichshafen — um edifício modernista, inaugurado em 1933, com uma torre de relógio e longas varandas horizontais. Entramos numa reconstituição do interior do famoso LZ 129 Hindenburg — o “navio dos céus” —, que servia para atravessar o Atlântico luxuosamente e que acabou em chamas em 1937 numa das mais mediáticas tragédias da aviação.

Durante a I Guerra Mundial, os zeppelins passaram a ser usados em bombardeamentos de várias cidades europeias, como Paris e Londres. Os primeiros bombardeamentos no Reino Unido, em 1915, atingiram Norfolk e Lowestoft — a área que W. G. Sebald explora em Os Anéis de Saturno (1995).

É a pensar em Sebald que seguimos para leste até aos Alpes Algäu, na direcção de Wertach — W. em Vertigo (1990) — uma pequena vila onde o autor nasceu e é o foco do quarto capítulo de Vertigo — Ritorno in Patria, o regresso do exílio — onde descreve a sua caminhada entre o posto fronteiriço de Oberjoch, na fronteira austro-alemã, e Wertach.

Quando chegamos, procuramos o Engelwirt, a estalagem onde Sebald viveu durante a sua juventude — um edifício no “estilo pseudo-alpino que se tornou o novo vernacular” —, onde almoçamos no pequeno restaurante sob uma enorme árvore.

Decidimos apanhar o autocarro até Oberjoch e regressar a pé até Wertach. Na vila deserta, esperamos pelo autocarro enquanto estudamos o mapa do percurso que hoje tem o nome de Sebaldweg. Iniciamos esse caminho ao fim da tarde, passando pelos lugares que o autor descreve. Paramos debaixo das últimas árvores antes dos prados de Krummenbach, onde Sebald ficou longamente a observar “da escuridão, a neve branca acinzentada a cair e o seu silêncio extinguindo completamente a pouca cor pálida que havia nesses campos desertos”.

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Trechos do percurso Sebaldweg. À esquerda, Allgäu; à direita, a capela onde Sebald meditou sobre as pinturas modestas desta igreja e as pinturas espectaculares de Tiepolo da Residência de Würzburg

Aproximamo-nos da pequena capela onde não cabem mais de uma dúzia de pessoas. Sebald faz uma meditação sobre as pinturas modestas desta igreja e as pinturas espectaculares de Tiepolo na residência de Würzburg, assemelhando a dedicação e o esforço de ambos os artistas apesar da diferença dos resultados: “Pensando sobre o pintor de Krummenbach que, talvez no mesmo Inverno, trabalhou tão arduamente para representar as 14 estações da Via Crucis, como Tiepolo no seu magnífico fresco.”

Continuamos o caminho passando por pequenos teleféricos abandonados até ao próximo Inverno, que pontuam a paisagem numa área principalmente agrícola, como o ar pungente indica. O processo de síntese do amoníaco, descoberto pelo químico Fritz Haber em 1908, levou à produção de fertilizantes artificiais e revolucionou a produção agrícola mundial, valendo-lhe o Prémio Nobel da Química em 1918.

Durante a I Guerra Mundial, Haber liderou o desenvolvimento de armas químicas para o Exército alemão, tendo sido o oficial que conduziu o primeiro ataque com gás de cloro durante a Segunda Batalha de Ypres, na Bélgica. Milhares de soldados sofreram uma morte lenta e dolorosa, que Haber celebrou como um sucesso, pois a sua máxima era: trabalhar “em tempo de paz para a humanidade, em tempo de guerra para a pátria”.

Depois da guerra, Haber continuou as suas investigações no Kaiser Wilhelm Institut, entre as quais, desenvolvendo o insecticida Zyklon A. Em 1933, abandonou as suas funções como director do instituto e foi forçado a sair da Alemanha — por ser de origem judaica. O gás usado nos campos de extermínio durante a II Guerra Mundial — Zyklon B — foi uma variante desenvolvida a partir das suas pesquisas.

Ao anoitecer, chegamos finalmente à serração e ao início da Alpenstrasse, onde Sebald permaneceu “durante muito tempo na ponte de pedra a pouca distância das primeiras casas de W., a ouvir o murmúrio constante do rio e olhando a escuridão que cobria tudo”.

Chegamos a Wertach e passamos pela casa onde Sebald nasceu, com dois murais que decoram a sua fachada, numa minúscula praça sombria.

Montanha mágica

No dia seguinte, partimos cedo, passamos o posto fronteiriço de Oberjoch para a Áustria, procurando o vale do rio Inn. Passamos o Fern Pass, seguimos o curso do rio até à fronteira da Suíça, entrando no cantão de Grisons. Nesta área, os nomes da cidades — Scuol, Guarda — e das montanhas — Piz Buin — têm uma sonoridade familiar, pois a língua romanche, uma das línguas oficiais, tem raízes latinas.

Dirigimo-nos para Davos através do Flüella Pass, onde a paisagem se transforma, ficando mais dramática. Paramos para ver o vale de Piz Vadret, onde a beleza é terrena, mas estranha e vazia. Os cumes de Schwarzhorn e Wisshorn parecem guardar a entrada de um lugar quimérico, no entanto esta sensação dissipa-se quando chegamos a Davos, que partilha a vulgaridade opulenta de certas cidades suíças.

Foi aqui que, em 1912, Thomas Mann visitou a sua mulher, Katia, no Wald Sanatorium. Nesse ano, Mann começou a trabalhar em A Montanha Mágica (1924), mas foi interrompido pela I Guerra Mundial, um período que passou a escrever Reflexões de Um Apolítico (1918) — publicado no mês em que a Alemanha se rendeu. As suas ideias são surpreendentes, inesperadas para um leitor contemporâneo. Mann afirma que “o espírito nacional fala através de [si]” quando diz que “a tradição germânica é cultura, alma, liberdade, arte e não civilização, sociedade, direito ao voto, e literatura”. Se é verdade que Mann eventualmente repudiou estes textos, eles permanecem como um testemunho da sua posição durante a guerra. Depois disso, passou seis anos a reescrever A Montanha Mágica, que foi publicado em 1924, no mesmo ano de Die Nibelungen, de Lang.

No centro de Davos apanhamos o funicular para Schatzalp, um hotel que Mann descreve como “o mais alto dos sanatórios” e onde ainda se mantém o ambiente do romance. É um lugar suspenso no tempo — as salas comuns ainda mantêm a formalidade de outrora — e no espaço — só se avistam montanhas e florestas longínquas, parecendo levitar sobre Davos.

A Montanha Mágica é uma obra em que se encenam uma série de debates cruciais para a definição da cultura europeia. Susan Sontag relembra um encontro com Mann em 1947, em que este lhe disse que a obra “retratava os conflitos no centro da civilização europeia”.

Ao fazermos uma caminhada perto do hotel, lembramos as conversas entre Hans Castorp — o jovem engenheiro naval e personagem central — e Settembrini — o apolíneo representante dos ideais do Iluminismo. Para quem “a húbris da razão dirigida contra as forças obscuras é a mais alta forma de humanidade”, mesmo “quando um [navio] luxuoso se afunda e mergulha nas profundezas, essa é uma derrota honrada”. Mann parece lembrar-se da tragédia do Titanic em 1912 e antecipar a do LZ 129 Hindenburg, em 1937.

Na sala do pequeno-almoço do Schatzalp, esperamos a qualquer momento que Clavdia Chauchat — a dionisíaca que mantém Castorp durante sete anos na Zauberberg, tal como Vénus mantém Tannhäuser na Venusberg — bata com a porta da entrada. Para Chauchat, a moralidade deve ser procurada “no abandono ao perigo, ao que nos possa magoar, destruir” e parece-lhe que “é mais moral perder-se e deixar-se arruinar do que salvar-se”.

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Berghotel Schatzalp, Davos; secretária de Thomas Mann, autor de A Montanha Mágica

Castorp é uma figura passiva que ingenuamente se encontra no centro destas tensões. Lembramos a insistência de Settembrini para que Castorp deixasse o sanatório, evitasse Chauchat e regressasse à sociedade, algo que ele não parecia disposto a fazer. Chauchat, no capítulo Walpurgisnacht, diz a Castorp que ele é “um jovem simples (...) que em breve irá regressar às planícies para esquecer completamente que alguma vez falou como num sonho [na Zauberberg] e para ajudar a grande e poderosa pátria com trabalho honesto nos estaleiros [navais]”, tal como Zeppelin e Haber.

De facto, só quando o dever patriótico o chamou, no início da I Guerra Mundial, é que Castorp abandonou a montanha mágica. Mann coloca Castorp na frente de guerra, onde, “pleno de horror, um produto da ciência enlouquecida atravessa-se trinta metros à sua frente, enterra-se no solo [e] explode dentro da terra com uma força horrenda que atira ao ar um jacto de solo, fogo, ferro, chumbo e humanidade desmembrada”, entoa nervosamente a melodia de Der Lindenbaum, canção do Winterreise de Franz Schubert.

Visitámos o escritório de Mann, numa sala da ETH em Zurique — Instituto Federal de Tecnologia —, cujo edifício principal foi projectado por Semper. Quando entrámos na sala, fomos transportados no tempo. Percorremos as estantes da sua biblioteca estudando os volumes sumptuosos com nomes gravados em Fraktur: Goethe, Nietzsche, Wagner.

As estantes estão agrupadas de acordo com as obras às quais serviram como material de pesquisa, paramos diante daquela relativa a Doutor Fausto (1947). Há vários livros em inglês, resultado do exílio nos Estados Unidos. Pedimos para ver Rousseau and Romanticism Rousseau e o Romantismo (1919) — de Irving Babbit. Na página 345, Mann sublinhou: “Tanto o nacionalismo emocional, como o internacionalismo emocional têm raízes em Rousseau, mas no final ele é um nacionalista emocional; isto porque viu que a ‘virtude’ patriótica é uma droga mais potente do que o amor pela humanidade.”

No centro da sua secretária, repleta de retratos e objectos exóticos, existe uma medalha com o perfil de Lev Tolstoi. Reconhecemos o sofá americano que Mann tinha em Pacific Palisades e que Sontag descreveu num texto publicado na revista The New Yorker Pilgrimage (1987) —, onde descreve a sua visita, em 1947, quando tinha 14 anos. Sontag conta que Mann tinha acabado de escrever “um romance parcialmente baseado na vida de Nietzsche”, cujo “protagonista, contudo, não é um filósofo. É um grande compositor” — Doutor Fausto.

O filósofo errante

Der Zauberberg é uma expressão emprestada de O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, obra onde Nietzsche estabelece os conceitos de apolíneo e dionisíaco, a tensão desta dualidade no indivíduo e o papel da arte na sociedade.

Deixamos Davos e regressamos ao vale do Engadin, seguimos de novo o curso do rio Inn, passando por St. Moritz até Sils, uma pequena vila no fim desse vale. Foi aqui que Nietzsche passou a maior parte dos verões a partir de 1881 — no início do seu exílio peripatético, depois de abandonar a universidade de Basileia —, ficando hospedado numa estalagem que hoje é uma casa-museu.

Durante as suas estadas em Sils, Nietzsche passava os finais do dia a caminhar pelo vale Fex e a admirar a paisagem que aliviava os seus sintomas. Fizemos uma caminhada por esse vale, ao longo do rio Fedacla, passando por Fex Crasta em direcção aos glaciares. Os pequenos aglomerados de casas tradicionais do Engadin evocam tempos harmoniosos de uma beleza simples e tocante. Parece ser o lugar apropriado para as almas sensíveis se refugiarem do mundo.

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Fex e Piz Lagrev, Sils Im Engadin; Val Fex, Sils Im Engadin

Nietzsche tinha uma enorme admiração pela música de Wagner como uma arte capaz de evocar o transcendente. No ano do primeiro festival de Bayreuth — com a apresentação do ciclo completo de O Anel do Nibelungo, em 1876 —, Nietzsche publicou Considerações Intempestivas. No último capítulo, Richard Wagner in Bayreuth, escreve: “N’O Anel do Nibelungo, por exemplo, quando Brunhilde é acordada por Siegfried, sinto a música mais moral que já alguma vez ouvi. Aqui Wagner atinge um tal nível de sentimento sagrado que a nossa mente inconscientemente vagueia pelos cumes nevados e brilhantes dos Alpes.”

No entanto, Nietzsche gradualmente descobriu que não admirava mais nada em Wagner e repudiou publicamente o seu entusiasmo inicial no livro Nietzsche Contra Wagner (1889). A recepção da obra de Nietzsche foi muito influenciada pela edição abusiva feita pela sua irmã Elisabeth, que controlava o seu arquivo literário.

Para Nietzsche, “o melhor livro alemão” seria Conversações com Goethe (1836), um relato dos diálogos entre este e o seu secretário, Johann Eckermann —, onde, a certa altura, Goethe reflecte sobre o ódio entre as nações, que “é sempre mais forte e mais violento onde há menos cultura”. “Há um momento em que este [ódio] desaparece, quando nos posicionamos, por assim dizer, acima das nações e sentimos a fortuna e o desastre dos povos vizinhos como se fossem nossos.”

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Continuamos a nossa viagem, passamos pelo Maloja Pass, a partir daqui as águas dos rios correm na direcção do Pó e do Mediterrâneo. Antes de chegar a Itália, paramos na fronteira, em Castasegna, para ver a Villa Garbald — a antiga casa do oficial da alfândega, projectada por Gottfried Semper, em 1863. No próximo capítulo caminharemos nas montanhas que rodeiam o lago Como, passaremos pelas planícies da Lombardia e regressaremos ao Mediterrâneo.

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