Majestática, sim, Mariema era majestática
O actor, encenador e dramaturgo Jorge Silva Melo sobre a actriz Mariema: “No Parque Mayer veio a ser uma das maiores actrizes que Portugal conheceu. Actriz. E não disse ‘actriz de revista’, disse ‘actriz’, embora a maior parte das suas actuações tenha sido em revistas, sim, entre o veste e despe das coristas.”
Não é palavra que eu use muito, republicano que sou. Mas nenhuma outra me ocorre para falar desta rapariga de Campo de Ourique que começou por cantar no modesto restaurante do pai, quando ainda pensava vir a ser desportista (andebol, creio — ou era basquete? —, no CACO, o Clube Atlético de Campo de Ourique, disso tenho a certeza). Felizmente alguém a ouviu (Deolinda Rodrigues, reza a lenda) e lá a levou, tímida, silenciosa, desajeitada, para o Parque Mayer.
E no Parque veio a ser uma das maiores actrizes que Portugal conheceu. Actriz.
E não disse “actriz de revista”, disse “actriz”, embora a maior parte das suas actuações tenha sido em revistas — no ABC, no Maria Vitória, no Variedades, no Sá da Bandeira, em digressão, em tournées —, sim, entre o veste e despe das coristas.
Actriz. Já o notara logo no início Ribeirinho, que tanto a quis levar para o Trindade para fazer “peças sérias”, sim, Ribeirinho adorava-a.
Mas se digo “majestática” é porque quero que se lembrem da sua maneira displicente de entrar em cena, lenta, demorada, da maneira de arrancar uma frase, sempre “como quem não quer a coisa”, nunca sublinhando a piada que lá estivesse, deixando as graças caírem-lhe da boca e o espectador que risse, como se estivesse enfadada, distante. Como Marlene poderia cantar I'm the laziest gal in town, sim, havia uma indolência, um distanciamento, uma ironia nesta actriz realmente única.
Ah, felizmente, há uns anos, a RTP produziu uma série do Filipe La Féria muitíssimo bem-feita e filmada no Teatro Variedades, Grande Noite, onde podemos ver, entre outros, Mariema — e a sua arte maior.
Não me esquecerei de um número que fez com José Viana em que eram anjinhos de procissão com, cada um, uma vela na mão. Velas que se quebravam, se erguiam, voltavam a falhar. Provavelmente, o quadro de revista mais ordinário de que me lembro (foi no Maria Vitória, foi). Mas a graça, a displicência, a sobranceria, a elegância generosa de Mariema (e do José Viana, outro que tal) fizeram deste número brejeiro um dos momentos mais altos do teatro que vi: sim. Sim. E gritei “Bravo!”. Mariema parecia que não dava por isso, estava ali, à nossa frente, viva, e isso, meus amigos, era o teatro.
No dia em que lhe tirámos esta fotografia para a promoção de Seis Personagens à Procura de Autor, de Pirandello, que fizemos no São Luiz, ela, sentindo o fotógrafo aproximar-se, pôs-se a cantar, baixinho, uma cantiga espanhola. E não tirava os olhos de mim, que, sentado na plateia, confesso que chorei. No palco, tudo parou, éramos umas quarenta pessoas que por lá andavam, o Jorge Gonçalves disparou não sei quantas vezes. E, no final, um silêncio longo, e logo a seguir uma salva de palmas que vinha dos camarotes, dos bastidores, da plateia. Eu levantei-me e fui beijá-la.
Era a Mariema, a boémia lisboeta, um uísque, outro uísque, os jantares sozinha na Júlia (ao lado do Capitólio), que foi onde a conheci, em 1972, sozinha, preparando-se para a sessão da noite, sozinha.
Sabia dela de vez em quando pelo Fernando Heitor, que a acompanhou nestes últimos e tão tristes anos. Foi ele que me deu a notícia da sua morte. Mas quero é lembrar-me de que foi ele que há uns dois anos a levou a Sevilha, sim, à Triana e à Macarena, beber tinto de verano, cantarolar espanholadas e conversar até às tantas.
Quando lhe propus um trabalho, lá fui falar com ela à Casa dos Artistas, onde recuperava de uma fractura na perna. E, ao voltar, tremendo ainda, fui ali a uma florista da Rua Castilho para lhe enviar “o ramo mais bonito que aí tiver, sim?”.
E creio que a última vez que estivemos juntos foi quando te fomos ver, José Raposo, magistral, na Gaiola das Loucas. E depois fomos parar ao Snooker, ali entre o Parque e o Maxime — e só de lá saímos passava das cinco da manhã. Mas, quando fui pagar, reparei que nenhum de nós bebera mais do que duas imperiais: embriagou-nos, sim, a conversa de Mariema. Majestática.
Como eu a admiro, ai como eu gosto da Mariema (“porra!”, diria ela nos dias maus), sorriso rasgado, franco, caloroso, rapariga para sempre de Campo de Ourique.