Quem pode, manda
Cada instituição projeta-se na escala e ambição a que aspira e nada há de menos digno na escala local ou paroquial.
A Fundação de Serralves é uma fundação privada. Mesmo sem ter conhecimentos jurídicos especializados, pressuponho que os seus responsáveis possam fazer aquilo que quiserem, nos limites da legislação que se lhes aplique e na medida em que os seus parceiros institucionais e financiadores aceitem o que for feito. Tentemos compreender (com base na pouca e confusa informação disponível) o que foi feito com a exposição Robert Mapplethorpe: Pictures.
Mas antes de chegar a Serralves, comecemos por uma abordagem genérica da questão. Não há ninguém minimamente familiarizado com o meio artístico contemporâneo que não saiba que a obra de Mapplethorpe e o historial da censura e da luta contra a censura à apresentação e divulgação da sua obra é um exemplo destacado no que diz respeito à história recente da luta pela liberdade de expressão artística contra o obscurantismo.
Em função deste historial, é conclusão consensual no meio artístico contemporâneo, à escala internacional, que qualquer tipo de proibição ou bloqueamento do acesso à visão e divulgação da obra de Mapplethorpe configura uma atitude anti-liberal que promove os valores da censura e, dadas as caraterísticas específicas da obra do autor, reforça as dinâmicas da discriminação de tipo sexual (nomeadamente a homofobia) e, por vezes, veicula formas indiretas de racismo. (Ou seja, e sem querer remeter para nenhum caso concreto, será que a pulsão censória teria a mesma intensidade se as relações aparentemente representadas fossem heterossexuais ou, noutros casos, se a cor da pele dos corpos representados fosse branca?)
Dito isto, importa reconhecer que a obra de Mapplethorpe é frequentemente objeto de proibição ou de severas limitações de acesso à sua visão (e isso é muitas vezes aceite como um mal menor), nomeadamente quando se trata de países não democráticos, anti-liberais ou dominados por fundamentalismos religiosos, ou quando se trata de instituições dependentes, para a sua sobrevivência e financiamento, de entidades guiadas por esse tipo de valores. Imaginemos, por exemplo, o que se poderia passar numa instituição dependente do financiamento de fundamentalistas evangélicos.
Se há uma outra evidência consensual no meio artístico contemporâneo é que uma instituição artística, mesmo que privada, que aspire à respeitabilidade internacional e queira assumir uma vocação cultural contemporânea e cosmopolita, deve trabalhar com diretores artísticos e curadores nos quais delega a concepção e execução da sua programação e, nomeadamente, a organização concreta, seleção e apresentação das obras das suas exposições. O recurso a profissionais com conhecimentos especializados permite o adequado acesso do público a uma visão de conjunto da obra de um autor nas suas várias dimensões: uma visão informada e articulada, liberta de amputações ou desmembramentos ditados por motivos espúrios. É para isso que existem “diretores artísticos” e “curadores” e é por isso que as instituições respeitáveis costumam respeitar as suas competências específicas, e bem assim os poderes e a autonomia neles delegados.
Mas, na realidade, nada obriga a que assim aconteça. Ou seja (com a eventual ressalva de algumas obrigações contratuais que desconheço), imagino que os responsáveis de uma fundação privada como é Serralves podem prescindir ou desautorizar o trabalho de diretores artísticos ou curadores e decidirem de acordo com os seus próprios desígnios políticos ou económicos, ou os seus valores morais (ou mesmo de acordo com os seus caprichos estéticos ou fetiches sexuais). Ou mesmo tão só em função dos ditames da boa gestão dos seus pequenos ou grandes interesses paroquiais. Cada instituição projeta-se na escala e ambição a que aspira e nada há de menos digno na escala local ou paroquial.
Ainda assim, em termos práticos, no que diz respeito às modalidades de censura ou bloqueio do acesso à visão da obra de Mapplethorpe, partilharei algumas dúvidas e perplexidades, designadamente em relação à questão da exigência de maioridade das pessoas que poderão ter acesso a um determinado conjunto de obras.
Por não ter conhecimentos suficientes na área clínica não consigo imaginar a dimensão dos danos que a visão de algumas fotografias de Mapplethorpe possa provocar numa pessoa com menos de 18 anos. Julgo saber, no entanto, que é muito fácil encontrar na internet imagens suscetíveis de provocar o mesmo tipo de danos. Nesta medida, talvez fosse aconselhável proibir, em domínios sujeitos à autoridade da administração de Serralves, o acesso de menores à internet. A menos que devidamente acompanhados por familiares.
Aqui surge, aliás, uma outra perplexidade, associada à falta de clareza em relação à questão do acesso à sala proibida. Através das notícias que me chegaram pela comunicação social ainda não ficou claro, para mim, qual o princípio censório aplicado. Os menores não podem mesmo entrar ou basta estarem acompanhados por um adulto, qualquer adulto? Ou deverão estar acompanhados por familiares e, neste caso, qual o grau de parentesco requerido? Será que uma pessoa com 17 anos se poderá fazer acompanhar, por exemplo, por um irmão ou uma prima já com 18 anos feitos? Será que uma tia ou um avô poderão ser considerados válidos para o efeito? Ou será indispensável a presença dos progenitores devidamente identificados e, neste caso, será que basta a presença de um deles ou é necessária a presença dos dois, já que podem não partilhar os mesmos princípios em matéria de educação dos filhos? Para maior conforto dos potenciais visitantes creio que seria útil clarificar estas questões em futuros avisos.
Uma questão que não tem sentido colocar é a da competência da administração para tomar as decisões que tomou. Uma vez que (pelo que julgo poder deduzir) não está obrigada legalmente a respeitar o poder ou a autonomia de diretores artísticos ou curadores, a administração não carece de qualquer competência artística ou cultural para tomar as suas decisões. Quem pode, manda.