Por esta altura do ano, sempre que se aproximam os prémios da indústria, eclode um cisma entre os cinéfilos: de um lado, os que deliram com vestidos e discursos; do outro, os que denunciam o artificialismo lustroso da cerimónia. A minha tolerância ecuménica afasta-me de ambas as trincheiras. Mas, se me dão licença, não é preciso ver a emissão dos Emmy ou dos Óscares para perceber que há muito andamos iludidos com artifícios. Se a vida não imita a arte, mas antes a má televisão — como dizia um cineasta avesso à comparência nestas lides —, não será surpreendente que a esplêndida safra televisiva da última década e meia nos desperte um sentimento de expectativas defraudadas. Como aceitar que as nossas vidas pareçam tão insípidas quando comparadas com as daqueles que vemos, a cada noite, no ecrã da televisão?
Por exemplo, as histórias de piratas. Não sei se já tenho idade para dizer “Eu ainda sou do tempo”, mas eu ainda sou do tempo em que a pirataria era uma coisa temerária. Envolvia abordagens a navios, a golpes de sabre; cenas de soco no cesto da gávea; amantes ladinas esgueirando-se, no último segundo, a matulões façanhudos que as queriam degolar. Eram tempos saudosos, que transmitiam bons exemplos à nossa juventude. Hoje, parece que o nobre exercício da pirataria está circunscrito aos ciberataques de hackers. São uns fedelhos de óculos grossos, com a cara sulcada de acne, trancados em cubículos esconsos; e passam dias inteiros a decifrar códigos chatíssimos cheios de letras e algarismos. Como chegámos a um tal declínio civilizacional?! A pirataria, que é uma actividade digna, não merecia tal sorte.
E a calamidade abrange outros géneros. Quantos mancebos não terão aspirado a uma carreira na investigação criminal por influência dos policiais? Vocês sabem: a figura do detective, de chapéu e gabardina, envolto no fumo do cigarro, absorto nos seus pensamentos. Mas a realidade, pelo menos em Portugal, não se coaduna com essas fantasias. Não há vilões a escapulirem-se em carros de alta cilindrada, por entre o fogo cruzado dos agentes da polícia; há arguidos a escapulirem-se da porta do tribunal, por entre uma saraivada de perguntas dos jornalistas. E, ao contrário do enredo policial clássico, não há dúvidas sobre "Whodunnit": o desenlace revela-se logo de início, através de “fugas de informação”.
Talvez conviesse, por isso, adequar a ficção à nossa mísera realidade. Sem sair do âmbito judiciário, boa parte das séries televisivas retrata o quotidiano dos advogados como uma colorida sucessão de disputas retóricas, dilemas éticos, dinheiro a rodos e assédio às subordinadas. Mas quem conheça o advogado médio sabe que o seu dia-a-dia é passado a lamber papel para dirimir litígios de condomínio, desavenças familiares ou entraves administrativos à obtenção de licenças camarárias. E como é que há tantas séries sobre advogados e nenhuma sobre notários? Imaginem a voz off : "Parecia ser um dia normal na vida deste notário. Mas o trágico desaparecimento de um selo notarial haveria de mudar a sua vida… para sempre." Ou os comentários na net, de miúdos fascinados pelo universo do notariado: "Vou na season 3, episode 1. É aquele em que eles têm de autenticar um documento. Brutaaal!"
E quem diz notários, diz escrivães: sou só eu que sinto falta de diálogos sobre truques de estenografia? Em vez de um True Detective, o True Scrivener; em vez do Matthew McConaughey, o Luís Esparteiro. Com sorte, ainda sai daqui um êxito comercial. E nada impede que isto seja apenas o prelúdio de uma anthology series sobre profissões pouco glamorosas, a começar pelos arquivistas e a acabar nos técnicos oficiais de contas.