Sete mil quilómetros com um cão na bagageira
De Bruxelas a Lisboa, ida e volta, com escalas em Itália, França e Espanha. Um casal, o seu filho de 15 anos e Luna, um cão de água português que só este Verão descobriu o prazer do mar. Foram várias as limitações e muitos os trabalhos, houve momentos hilariantes e duas visitas ao veterinário, mas a coisa fez-se sem grandes sobressaltos.
Luna, um ilustre mas trapalhão exemplar de cão de água português com medo da água até chegar a este Verão, entrou muda e quase saiu calada de uma viagem de automóvel de sete mil quilómetros. No entanto, a sua presença foi um divertimento constante e foi graças ao seu encontro em Pula, Sul da Sardenha, com Lina, uma pachorrenta setter inglesa, que soube que a melhor sardinha da linha de Cascais se come na Rebelva. Soube depois, à chegada a Lisboa, que Portugal não é lá muito amigo dos animais. “C’est la cátá”, (é uma catástrofe), disse-me uma francesa no Jardim da Estrela, em Lisboa, ao comentar as dificuldades levantadas para encontrar alojamento e restaurantes que aceitem cães. Bélgica, França, Itália e Espanha são mais amigas dos animais, mas, valha a verdade, nós, fiéis aos nossos brandos costumes, fechamos os olhos a legislação mais restritiva, embora tenhamos muita dificuldade em alterar mentalidades.
A viagem, que começou e irá acabar em Bruxelas, teve pernoitas em Estrasburgo, Cagliari, Barcelona, Ávila, Palencia, Bayonne e Orléans e estadias na Sardenha, Batalha, Casa Branca (Alentejo) e Lisboa. “So far, so good”. Até agora, calcorreados 6600kms, tudo bem, salvo duas idas a diferentes veterinários e alguns outros contratempos próprios de uma viagem tão longa. É necessária paciência e jurisprudência numa matéria tão delicada como é a relação entre o homem e o seu melhor amigo e como é a relação deste com a sociedade humana em que vive. Para quem nunca teve um cão e sempre resistiu a tê-lo, andar estrada fora com um bicho que permanentemente nos interpela com o seu olhar é uma experiência de vida gratificante, surpreendente e hilariante.
Gratificante porque nos consola a sua presença, surpreendente porque traz o rebuliço à rotina, hilariante porque origina situações muito divertidas, como aquela em que quase levou consigo a mesa da esplanada onde estava atada, quando resolveu ir atrás de um cão todo bem-parecido. Também deitou ao chão o fotógrafo deste jornal quando ele, de cócoras, lhe acenava com o seu frisbee numa mão e, com a outra, procurava tirar um bom boneco. A Luna não resistiu e saltou para cima dele. Outro dia, resolveu sacudir-se a meio da noite e bateu com a cauda com tanta força na porta do quarto que eu acordei assustado a pensar que me estavam a assaltar a casa. Fiquei a saber que os cães também sentem as costas quentes. Em Agodim, norte de Leiria, observava a cautelosa distância um gato a comer a sua refeição. Quando me aproximei, levantou-se e foi reivindicar as suas massas.
Luna, que fez dois anos no passado dia 31, é o primeiro cão da família e estas foram as primeiras férias em conjunto. Foram várias as limitações e as alegrias e muitos os trabalhos, nomeadamente os de cozinha, tanto mais que a cachorra tem a mania que é gente e deixa para amanhã a ração de hoje sempre à espera da “comida normal” — massa, arroz ou batata com peixe, carne e verdura de linha branca congelados e fruta, que vai comendo depois de alguma insistência. Como anda sempre com fome, come tudo o que lhe vem à boca dos passeios por onde anda, mas essa é uma ingestão que já deixou de nos preocupar porque quem come algas e ossos roídos por outros cães não deve ser lá muito boa da cabeça e há que aceitá-la como tal. Até comeu uma bola de algas secas, não sei que carga de sabor possa ter uma bola cheia de areia. E foi por causa disso, da areia às voltas no estômago, que teve de ir ao segundo veterinário para estancar uma diarreia. Curou-a num dia com a recomendação de lhe darmos “polenta” (farinha de milho) para “agarrar” a areia e de que nunca nos devemos esquecer que um cão é um animal carnívoro e por isso é natural que não goste das rações granuladas. Foi o que ela quis ouvir, pareceu-nos. Já antes tinha desistido da ração matinal e só jantava comida de gente, que ela pede ladrando em seco ou mordiscando as mãos de quem lhe parece estar a preparar a sua refeição.
Clandestina num ferry
A decisão de ir de carro ficou a dever-se à impraticabilidade de uma viagem de avião, por implicar escalas. Já o voo em si é muito complicado para um cão que tem de ir no porão, quanto mais com escalas onde tudo pode acontecer, nomeadamente a perda. No ano passado, num voo de Lisboa para Bruxelas, a Luna ficou perdida durante duas horas no aeroporto de chegada e foi uma aflição. Noutra viagem, foi muito triste vê-la cambalear sob o efeito de um soporífero administrado antes de se saber que o voo tinha um atraso de mais de uma hora. Para uma viagem de automóvel, um cão tem de levar a sua “mala” com passaporte europeu, comida, brinquedos, saquinhos higiénicos, medicamentos, especialmente gotas para as suas conjuntivites e contra as carraças, água, etc. Tem de parar de duas em duas ou de três em três horas para esticar as pernas, comer qualquer coisa e aliviar-se. É bom viajar de carro sem destinos ou pernoitas certas, mas a presença de um cão obriga a uma logística mais cuidada, muito embora a maioria dos hotéis de estrada, à excepção de Portugal, aceitem animais de estimação.
O primeiro estirão de 1200kms levou-nos de Bruxelas, com pernoita em Estrasburgo, a uma chegada de afogadilho a Livorno, Noroeste de Itália. Daqui, um ferry (que transportava naquela travessia de sete horas cerca de 700 veículos e à volta de 2000 passageiros) zarpou pouco depois da meia-noite para Olbia, a nordeste da Sardenha, ilha onde desembarcámos rumo a uma praia selvagem, perto da beleza de Chia, que no ano passado foi considerada a melhor praia de Itália, talvez também por causa da laguna adjacente povoada por flamingos vermelhos. As melgas não contaram para a classificação. Foi uma viagem de menos de 300kms pelo interior da ilha que incluiu uma passagem por Cagliari, a capital, a sudoeste. A cachorra viajou na bagageira de uma carrinha, numa cabine de um ferry e, clandestina, noutra cabine, noutro ferry.
O mundo dos ferries mediterrânicos é um microcosmo navegante de pressas, vagares e vaidades próprias da natureza humana em férias. Pressas nos trajectos nocturnos quando os passageiros mais conhecedores ocupam rapidamente os corredores, estendem os seus colchões insufláveis e se deixam dormir durante as sete horas que dura a travessia entre os rumores passageiros dos embarcados. Vagares, nas travessias de dia (Porto Torres-Barcelona, 12 horas) onde o ambiente é de cruzeiro de luxo de trazer por casa. Os cães terão de ir no canil em jaulas individuais, uma regra que não é cumprida à risca. Na viagem nocturna, a Moby Lines dispõe de cabines onde os cães podem dormir junto dos donos. Como oferta do barco ao cliente de estimação, um pequeno lençol absorvente, uns biscoitos e um recipiente de plástico para a água.
Na ida para Barcelona com a Grimaldi, a Luna viajou clandestina numa cabine porque nenhum de nós, especialmente o seu dono, o meu filho Tomás, de 15 anos, quis vê-la presa numa jaula. Lá estavam um belíssimo braque húngaro, um ternurento golden retriever e um jovem pastor alemão acachapados, tristes, de olhar suplicante e choramingando. Montada a vigilância nos dois extremos do corredor de acesso às cabines, lá foi ela meio escondida em direcção à nossa cabine. No último deck, o do canil, onde os cães podem ser passeados à brisa marítima, alguns caniches faziam companhia às suas donas refasteladas nas espreguiçadeiras à volta da piscina, ladrando a quem da sua espécie passava. Foi na ida para os carros antes do desembarque que vimos outros cães fora-de-lei, vindos de outras cabines, entre eles um belíssimo galgo de uma tímida altivez e coleira que devia ser o último grito da moda canina italiana.
Vou escrevendo este texto às vezes com a Luna quase a pôr as patas em cima do teclado e a esfregar-me nas mãos a sua bola de feltro, outras vezes a empurrar-me com o focinho os cotovelos para cima (sinal de que quer comer ou ir à rua), outras, ainda, deitada sobre os meus pés sem que necessitem de serem aquecidos. Estamos em pleno Verão, em férias, mas os animais, como as pessoas, necessitam de estar perto de alguém que compreenda a sua fragilidade e dependência. E eu compreendo-a muito bem, agora que a vi nadar atabalhoadamente. Um cão de água português, como ela é, deve, por definição, saber nadar e não ter medo da água. Mas a Luna foi até agora a vergonha da espécie e da raça, pois fugia da água como gato escaldado. Foi o rebentar das ondas na praia da Caparica, perto de Lisboa, que a traumatizou desde a infância, penso eu. Aquelas sucessivas massas de água vociferando espumas e estrondos devem ter-lhe parecido monstros ameaçadores de fazer meter o rabo entre as pernas, o que ela, aliás, fazia muito à-vontade e sem qualquer espécie de cerimónia.
Um ano depois, na mansidão marítima de uma praia selvagem, em Perdalonga, no Sul da Sardenha, vê-la entrar imediata e determinadamente na água deixou-me feliz, por ela e por mim. Para nos alojarmos aqui, um local com vista para a praia de Tuerreda, a mais fotografada da Sardenha, tive de passar por cego! Excluída a hipótese do voo, tratámos da logística terrestre mas esquecemo-nos de um pormenor: perguntar ao nosso amigo Aldo, que nos tinha reservado a casa, se era permitida a presença de um cão. Perante a negativa e a perspectiva de férias estragadas, o Aldo disse que ia encontrar uma alternativa. No dia seguinte, numa solução alla italiana, disse que o Miguel (eu) teria de passar por cego porque assim poderia justificar ao proprietário a presença de um cão em sua casa. Dada a irrequietude e desatenção congénitas, a Luna nunca passaria por um cão-guia, mas isso o proprietário da casa não precisava de saber.
Uma farpa na pata
Os caprichos marinhos do Inverno passado fizeram desaparecer a pequena e rochosa praia de Sa Pinnetta que serve o aldeamento, pelo que tínhamos de percorrer durante vinte minutos um trilho de cabras para chegar a um recanto arenoso e desértico. A cachorra farejava sempre o ar num desassossego próprio de quem não está habituada aos inconfundíveis cheiros da macchia mediterrânica (vegetação baixa arbustiva), apimentados pelas marcas de território de javalis, raposas, cabras, coelhos, sapos, lagartixas e, quem sabe, um ou outro veado que resolvesse descer das montanhas um pouco mais a norte. Entrou na água com o afoito e a inconsciência dos jovens que reagem instintivamente. Estava surpreendida com um meio que lhe está no sangue mas que desconhecia, principalmente quando ficava sem pé, aliás, sem patas. Comparada com outros pequenitotes que mais tarde nadaram a seu lado cumprindo as boas regras da natação canídea, a Luna parecia uma trolha prestes a afogar-se — as patas dianteiras fora de água num chapinhar desesperado à procura de fundo que a sustentasse, o pescoço tão esticado quanto possível, a respiração resfolegante. Aos poucos, de cada vez que lhe atirávamos a sua bola de estimação ou um pau, lá ia, insegura, sem nunca se afastar muito. Se a bola era atirada para mais longe, hesitava um bom minuto antes de se lançar à água e depressa aprendeu que podia apoiar-se nas rochas com as patas dianteiras e pensar duas ou três vezes se havia de regressar ao conforto do areal ou ir buscar a bola, apesar de todo o seu desconforto. De regresso à Caparica durante a recente onda de calor, entrou resolutamente na água, demorou a adaptar-se às ondinhas da maré baixa, não se atrevia a perder pé durante muito tempo, ficando com evidente pena de não recuperar o seu frisbee.
Não sei se as suas correrias desenfreadas pela faixa de areia, se o modo como afocinhava, fazia covas, se sacudia ou se espojava era a expressão da sua alegria ou a necessidade de sentir na pele a terra que antes lhe tinha faltado. Sei que, por vezes, se ajoelhava, empertigava as patas traseiras o máximo possível, abanava a cauda alegremente e saltava em direcção ao seu dono. “Não, Luna, não!”. Qual quê!, lá estão os dois embrulhados às voltas na areia e ele a atirar-lhe a bola para longe, para ganhar tempo e ver-se livre dela. Foi assim que ele perdeu uma havaiana que ela queria apanhar.
Num desses dias, uma farpa de um centímetro entrou-lhe na pata direita dianteira durante o trajecto pelo trilho que conduz à praia. Andou coxa e murcha durante dois dias e eu dei comigo a falar com ela como quem fala com um bebé — “tadinha da cachorra, tá ‘noente’”. Lambia a ferida incessantemente, alargando-a, ingerindo a contragosto a solução de Betadine que lhe era aplicada regularmente. Uma observação mais atenta não permitiu ver o pico, mas apenas constatar que a ferida se localizava na membrana interdigital que distingue o cão de água português das outras raças. É esta membrana que permite à raça uma natação ágil, mesmo debaixo de água. Dava muita pena vê-la coxear e quase não poder andar e dar os seus passeios higiénicos. Toda a gente a mimou muito porque tinha perdido a sua proverbial alegria, mas não a curiosidade, outra característica da raça. Esta é uma característica que por vezes causa embaraços. Vê-la olhar fixamente para quem vem atrás de nós ou estar atentíssima e quieta a olhar para um homem na praia em posição de ioga é muito divertido, mas temos sempre de apresentar um “desculpe, ela é assim, muito curiosa”. É muito divertido vê-la ladrar para uma boca de incêndio vermelha numa paisagem verde ou olhar pasmada para algo, nem que seja uma folha que mexe numa tarde de calmaria. Tem especial curiosidade por sacos de plástico a voarem.
Dois dias depois parecia que estava a adivinhar ao que ia, o que é uma extraordinária prova da sua intuição. Contrariamente ao que é seu hábito, o de uma maria-vai-com-todos e a todo-o-lado sem nunca perder a sua timidez, não quis entrar num edifício, muito menos no consultório. Finalmente, ao fim de umas rosnadelas de protesto, tentativas de mordidelas, um açaime e uns ganidos suplicantes, o veterinário conseguiu injectar-lhe uma anestesia local, fazer-lhe uma incisão, extrair o pico, sugar com uma cânula o pus acumulado, dar-lhe uma injecção com um anti-inflamatório e receitar-lhe um antibiótico de 12 em 12 horas, que tomou sem grande convicção durante sete dias. Nada de mar durante três dias e teve de andar de meia para não arranjar mais complicações. Dormitou e lambeu a ferida nas cinco horas seguintes e depois, com vontade, mas ainda sem forças, foi buscar a corda entrelaçada para alguém brincar com ela. No dia seguinte, com a meia atada na pata ferida com um elástico de cabelo, voltou à praia e aos folguedos.
Como dizem todos os donos de cães, aos seus animais só lhes falta falar de tão inteligentes que são. A Luna é muito inteligente, disso não restam dúvidas, mas sofre de défice de atenção. No fundo, é uma despassarada, uma assustadiça mariquinhas-pé-de-salsa e uma metediça a quem nem sequer falta o seu dengoso andar (outra característica da raça) e também dengoso abanar de cauda quando reencontra os seus donos no dia seguinte ou após uma ausência. É uma alegria enorme, uma efusão de companheirismo traduzida pelo brinquedo abocanhado com a evidente intenção de dar ao dono aquilo que ela quer — um bom tempo de brincadeira que a retire da sua pachorrenta rotina de andar a dormitar pela casa à espera que alguém seu conhecido lhe preste atenção, brinque com ela, dê mimos e alimente. Dizem os veterinários que devemos ignorar os cães quando chegamos a casa para eles não ficarem ansiosos durante as nossas ausências, mas quem é que é que lhes consegue negar uma alegria tão grande? Investigações de universidades americanas concluem que os cães apresentam até seis expressões faciais conforme os estímulos, mas eu só consigo identificar o seu olhar pingão de cada vez que saio de casa e não a levo.
Quando a vejo a abanar a cauda, lembro-me da história ancestral do cão de água português, que esteve à beira da extinção, foi animal de trabalho dos pescadores algarvios nos finais do século XIX, princípios do século XX, e chegou a estrela global quando o ex-presidente Obama ofereceu um às suas filhas. Lembro-me do geneticista russo Dmitri Belyaev, refugiado na Sibéria, que se dedicou à produção de peles de raposa e que provou o milenar processo de domesticação da espécie. Após cerca de 60 gerações de criação, algumas das suas raposas, as mais sociáveis que foram sendo cruzadas entre si, começavam a evidenciar diversas características dos cães, nomeadamente abanar a cauda, levar brinquedos na boca e ladrar.
Estás cansada, Luna?
Então como estás? Cheira-me e logo verás! Quando a Luna chegou à fala, aliás, ao cheiro, com a Lina, uma pachorrenta setter inglesa, os donos, ouvindo-nos a falar português, também meteram conversa connosco num português italianizado. Rosa Carlucci e Marco Possanzi estavam a afogar mágoas no Cuccina Macri, o único restaurante gastronómico de Pula, chorando o regresso há dois dias à Sardenha depois de três anos em Lisboa, onde ele trabalhou como médico radiologista oncologista na Fundação Champalimaud. Foi graças a eles que ficámos a saber que é na Casa do Mar, Rebelva, arredores de Lisboa, que se comem as melhores sardinhas da linha de Cascais. “É duro. Temos muitas saudades”, disse-me a Rosa ao telefone há poucos dias.
A presença de um cão facilita muito o convívio humano. Os cães necessitam de brincar e socializar como de osso para a boca e os donos aproveitam a oportunidade para falarem uns com os outros, o que não aconteceria se não houvesse um cão como intermediário de estimação. No dia em que a Luna foi esterilizada, aos oito meses, ao chegar a casa tinha pendurado na porta da nossa casa em Bruxelas um saquinho com biscoitos caninos home made oferecidos pelo seu vizinho Charlie, um dachshund (vulgo salsicha) que tem por dono um jovem casal de bailarinos, ela de Singapura, ele de um país báltico. Num destes dias, no Jardim da Estrela, em Lisboa, estive meia hora à conversa com uma jovem estudante brasileira de Belas Artes, uma senhora americana, outra australiana e outra portuguesa. Na manhã em que quatro cães de água se juntaram, a dona de dois deles, proprietária de uma editora, convidou-me para escrevermos um livro sobre o cão de água português. Como o meu filho já teve de apresentar um trabalho escolar sobre a evolução do cão, estou a pensar em roubar-lho. Trocámos mails. Em Bayonne, perto da fronteira franco-espanhola, foi graças a ela que conheci um engenheiro inglês, nascido em Alexandria, Egipto, onde estive em reportagem há vários anos, e a viver em Knowle, centro de Inglaterra. Ambos conhecíamos o restaurante onde eu jantei com uma família conservadora na véspera das eleições que levaram Tony Blair ao poder, também em reportagem, ambas para o jornal Expresso. Trocámos telefones depois de uma boa hora de conversa. Foi graças à Luna que, em Orléans, 130kms a sul de Paris (e de onde envio este texto), fiquei a saber que um casal inglês na casa dos sessenta, que ia fazer uma semana de bicicleta pelo Vale do Loire, tinha vivido em Bruxelas, não muito longe de mim. Passámos o jantar a falar sobre o “Brexit”. Nunca nos teríamos conhecido se não fosse a brincadeira dos nossos cães. Há uma solidariedade e cumplicidade especiais entre os respectivos donos, que eventualmente se vão tornando amigos com o tempo.
Já demos connosco, na família, a chamar de tudo à Luna sem ela se importar, por isso é que é nossa amiga. Sua porca badalhoca, sua doida, sua louca varrida, passando mais docemente por sua doida felpuda, sua farfalhuda, sua coisa mais fofa e outros nomes carinhosos. Pessoalmente gosto de a tratar por Cachorra Luna, enquanto lhe faço festas na barriga. Todos nós, num momento ou noutro do dia, nos sentamos no chão, a aconchegamos entre as nossas pernas, a viramos de patas para o ar e lhe coçamos suavemente a barriga. Não há melhor ansiolítico, tanto para nós como para ela, especialmente quando adormece refastelada e consolada com a sua vida de cão.
Não me venhas cá com coisas que não levas nada! Quando se arma em esperta, se porta mal ou não obedece a ordens básicas leva uns bons raspanetes, mas faz de conta que não é nada com ela. Vira para o lado o focinho quando vê um dedo indicador em riste, evita o olhar e os donos têm de se render à evidência de que ela levará a melhor na maior parte dos casos. A sua esperteza advém das suas necessidades afectivas e alimentares. Gosta de festas e festinhas, quem é que não gosta? Gosta de sopas e petiscos, quem é que não gosta? Um exemplo: ela sabe que não se pode aproximar da mesa enquanto duram as refeições e tem de ficar a razoável distância. Deita-se, mas, mal nos apanha distraídos, vai rastejando pata ante pata em direcção à mesa. Para trás, já te disse! Levanta-se, dá meia-volta, recua uns passos, deita-se e volta a rastejar pata ante pata.
O cão é o melhor amigo do homem e foi num desses silêncios contemplativos que as praias desertas facilitam que compreendi porquê. Claro, um cão não é uma pessoa, mas é um grande amigo que ouve tudo, não diz nada e tem a grande vantagem de ser um crucial elemento pacificador quando as tensões domésticas sobem. Sabemos por experiência humana feita que o nosso melhor amigo é o nosso melhor ouvinte porque não interrompe o nosso desabafo. Por isso é natural que o cão seja o melhor amigo do homem porque passa a vida a ouvir o que os seus donos lhe dizem e não diz nada. Em vez de dizer que sim com a cabeça, abana a cauda, o que é uma compreensiva diferença gestual que desempenha a mesma função, a do interlocutor silencioso. Álvaro de Campos escrevia que todas as cartas de amor são ridículas e eu sinto-me um pouco ridículo a falar de um cão com uma pieguice da qual não me julguei capaz. No entanto, devo confessar que, após uma noite mal dormida, um dia mal passado, um problema por resolver, um imposto por pagar, chegar a casa e ver um bicho aos pulos de contente, deixo as preocupações para trás e não tenho outro remédio senão o de o abraçar e fazer-lhe festas porque é ele que me cura das maleitas quotidianas. Nem quero pensar no aperto de coração que sentimos quando ela desapareceu em Bruxelas durante três horas. Reencontrei-a no Parc du Cinquantenaire, onde costuma passear, mais aflita do que eu. Durante três ou quatro dias não queria sair de casa, tal o susto. Felizmente, o seu dono estava na escola.
A última etapa da viagem (Lisboa-Bruxelas, 2000kms) será feita apenas com a Luna na mala da carrinha. O meu filho regressou mais cedo de avião a Bruxelas na companhia da mãe, o que me deixou mais espaço no carro para levar os bons recuerdos portugueses — azeite, vinhos, sal marinho, conservas, açorianas e da Murtosa, de preferência, e o que mais for na boa e velha tradição do emigrante português, que nunca julguei ser. No fundo, não passo de um emigrante, mas talvez por ser jornalista consideram-me um expat, um expatriado. É uma diferença de estatuto social. No entanto, fiquei reduzido à minha real condição ao fazer a A10 francesa com o carro cheio de embrulhos e caixas e a olhar para os milhares de emigrantes do Norte de África, de Portugal e Espanha que regressam de férias no último dia de Agosto, também com os carros atafulhados.
Viajar com um cão implica logísticas e precauções redobradas. Os emigrantes tradicionais fazem esta viagem sem parar para dormir ou dormitam uma ou duas horas nos carros em estações de serviço. Uma senhora francesa no Jardim da Estrela disse-me que o hotel Europa, em Vitoria-Gasteiz, perto da fronteira franco-espanhola, aceita cães, mas penso que, mesmo assim, não irei tão longe. Fiz Lisboa-Palencia no primeiro dia, não sei, tenho de ir com calma e parar várias vezes. Aí, encontrei-me numa bomba de gasolina com “um grupo excursionista” da família da minha companheira que vai ao casamento da filha. A segunda pernoita foi passada em Bayonne num Formule 1, os mais baratos de todos os hotéis de estrada com casas-de-banho comuns. Como temos de pagar a toalha porque o hotel não a disponibiliza, eu, por uma questão de princípio, tive de me limpar à toalha de praia porque me esqueci de trazer uma e também do pijama, devo confessar. A terceira paragem foi em Orléans, 130kms a sul de Paris, e depois é um pulo de 400kms até Bruxelas, com a complicação que Paris sempre apresenta aos automobilistas. Já tenho as refeições da Luna no congelador para as levar nas mochilas isotérmicas em embalagens de alumínio, não me posso esquecer da água, muita água, e esperar que não haja os engarrafamentos monstruosos que o regresso maciço de férias muitas vezes origina. No dois dias finais a Luna quase não comeu, ou porque as refeições tinha azedado ou porque as enjoou. Nem sequer tocou na ração, que vinha como reserva alimentar. Comeu uns restos de baguete que ia roubando ao pequeno-almoço. Terei que ter cuidado nas estações de serviço por causa dos roubos, não poderei usar o comando das portas porque pode haver alguém a gravar as ondas hertzianas e a abrir o carro sem outros danos, terei de ser rápido a ir à casa-de-banho e tenho de passear a Luna sempre com o carro à vista, mas estas são precauções habituais de quem anda na estrada.
Não me sentirei sozinho. Afinal de contas, viajarei com a minha melhor amiga e vou falar pelos cotovelos para não adormecer ao volante. Já viste aquele doido! Olha, aqui passa o meridiano de Greenwich, os Pirenéus, são tão bonitos, não são? Bolas, parece-me que já fui apanhado em excesso de velocidade. Estamos a chegar. Estás cansada, Luna? Também eu, ficamos aqui. Comeremos juntos e já sei que gostamos das mesmas músicas.
Há uns quatro anos, quando fiz esta viagem sozinho, tive também um animal por companhia, um tubarão-martelo de peluche azul-bebé. O meu filho tinha-se esquecido dele em Lisboa e eu levei-lho atado com cinto de segurança no lugar do morto. Desta vez levo três animais — duas baleias (mãe e filha) de peluche, que um miúdo se esqueceu em Lisboa, e a Luna. Do mesmo modo que os outros viajantes têm vindo a sorrir para a Luna nesta viagem, também se riam quando viam um tubarão sentado ao meu lado. Os animais são sempre uma boa e convivial companhia.