A universalização do particular, a particularização do universal
Christopher Bayly reflecte sobre a globalização em The Birth of the Modern World e dá inúmeros exemplos de como se criou uma uniformização, à escala global, de hábitos e costumes, do vestuário à alimentação. Mas “uniformidade não é o mesmo que homogeneidade”, alerta o investigador.
Entre 1732 e 1796, 17 cientistas, apóstolos tutorados pelo naturalista sueco Carl Linnaeus, circularam por 50 países em busca de todo o tipo de informação sobre tradições de produção têxtil e culturas de vestuário. Linnaeus a todos entregou um conjunto de instruções. A sua taxonomia globalizou-se e os seus discípulos também. Eram homens, jovens e solteiros. Foram cobiçados e alguns atraídos por outros patronos, incluindo por James Cook. Sete deles pereceram em missão, incluindo o primeiro apóstolo, Christopher Tärnström, que morreu na ilha de Poulo Condor, a caminho da China, em 1746. Mantiveram diários de viagem, documentaram costumes locais e recolheram todo o tipo de naturalia, espécimes botânicos e etnográficos. Têxteis e indumentárias foram reunidos, sempre acompanhados de descrições sobre os contextos históricos de manufactura e de uso.
Um dos propósitos era de clara natureza económica: reduzir a dependência sueca das importações, desde o algodão até à seda, produtos tradicionalmente caros. A viagem de Tärnström à China, que tinha por um dos objectivos a recolha de sementes e folhas de amoreira, é um excelente exemplo, apesar de as suas colecções nunca terem chegado às mãos de Linnaeus. Pehr Kalm, o segundo apóstolo, partiu para a América do Norte, entre 1748 e 1751, à procura do mesmo, desapontando-se com o escasso interesse local em sericultura. Tärnström foi capelão da East India Company sueca, criada em 1731 para coordenar as relações comerciais com o oriente, a partir dos modelos britânicos e holandeses, num contexto de significativa transformação da sociedade sueca. Após uma entrada complicada no século XVIII – com a Grande Guerra do Norte, entre 1700 e 1721, que opôs o império sueco ao Reino da Dinamarca e da Noruega e ao czarado da Rússia, entre outros –, sobreveio uma “era da liberdade”. A companhia foi um dos exemplos do programa mercantilista promovido. Outro exemplo da novas energias sociais consistiu na fundação da Academia Real das Ciências sueca em 1739, atreita a princípios de utilidade. Outro apóstolo, um dos mais zelosos e bem-sucedidos, Pher Osbeck, também foi capelão de um dos navios da companhia. Enviou a Linnaeus um dos mais completos herbários, aproveitando as possibilidades abertas pelas 132 expedições da companhia à Ásia. Recolher informações sobre seda e algodão tornara-se um objectivo nacional óbvio, nomeadamente nos circuitos económicos (que incluíam actores estrangeiros).
Todavia, o empreendimento não pode ser reduzido a uma única ou sobredeterminante motivação económica e comercial, sob a pena de se empobrecer significativamente a capacidade de compreender a multiplicidade de actores, comportamentos e interesses em jogo, a sua interdependência e contingência. A dimensão política estava também presente, não obstante a ausência de programas coloniais stricto sensu. A ciência era patriótica, e devia ser útil. A política queria-se científica, e devia ser progressista. A curiosidade cultural e etnográfica também desempenharam um papel, não sendo necessária e completamente subordináveis a outros interesses. A procura da porcelana, da seda ou da naturalia, do negócio e da mais-valia, foi sempre acompanhada pela vontade em documentar e compreender e, eventualmente, adoptar, formas de vestir, métodos agrícolas, rituais sociais ou expressões artísticas várias. Não é fácil contar histórias como esta sem cair em reducionismos de estirpe variada: cronológicos, temáticos, geográficos. Mas é importante tentar. A interrogação rigorosa das histórias plurais da “globalização” assim o exige.
Para uma história das “uniformidades globais”
Em finais do século XVIII, o leque de vestimentas usadas globalmente pelas elites em cerimónias públicas era amplo. Dos robes dos mandarins chineses à sobrecasaca francesa, passando por inúmeras formas de (quase) nudez (codificada e ritualizada), a variedade imperava. Transportava-se uma identidade distinta, cristalizada no tecido, no corte, na combinação de cores, e na respectiva expressão e, por vezes, restrição corporais. Por volta de 1900, o cenário era bem diferente. Nas cerimónias internacionais, pejadas de homens (com algumas excepções notáveis), o repertório de trajes era bem mais pobre. O fato preto e a cartola, associados a uma moral sóbria e rigorosa, à ponderação e à privacidade, tornaram-se a norma. As projecções puristas e purificadoras do revivalismo cristão anglo-saxónico, sobretudo visível nos EUA, alcançaram outros terrenos, e porventura outros usos. Assim ilustrou o recentemente falecido Christopher Bayly um dos mais importantes argumentos do seu The Birth of the Modern World: a multiplicação de “uniformidades globais” no “longo século XIX”. A obra de Bayly constitui uma das referências fundamentais para se pensar a história a uma escala global e a globalização de um ponto de vista histórico.
A par de outros casos, como a cronometria, os pesos e as medidas, o desporto ou a alimentação, um dos exemplos mais reveladores desta dinâmica de uniformização global residiu precisamente nas formas de vestir e nas posturas e práticas corporais. No modo como nos vestimos, comemos, nos exprimimos e relacionamos. Não que a riqueza da Textilia Linnaeana e do seus plurais contextos tenha desaparecido, como é óbvio. Mas contraiu-se, como uma qualquer viagem aos espólios fotográficos das conferências Pan-Africana e de Paz, ambas realizadas em Paris em 1919, revela. O mesmo sucedeu com a indumentária militar. O que aconteceu aos trajes dos samurais ou dos janízaros otomanos? Não que as lógicas de distinção e hierarquização social e simbólica, associadas e expressas através dos modos de vestir, não persistam. Mas na sua maioria são variações de uma norma, quando comparadas com um passado não muito longínquo.
O reconhecimento destas semelhanças não acarreta a imediata asserção de uma partilha absoluta de mundividências, formas de pensar, interesses ou propósitos. As aparências, de facto, iludem. Nem autoriza argumentos que privilegiam uma homogeneização maciça e forçada de ideias e práticas sociais, com uma origem, uma direcção e um destino. Antes, sinaliza a persistência de apropriações selectivas ou míopes, modelações decorrentes de desentendimentos ou usos instrumentais, sincretismos e hibridismos com múltiplas causas e sentidos, decerto condicionados por inúmeras assimetrias de poder. Por exemplo, em contextos coloniais, onde a tendência para a uniformização e “ocidentalização” de formas de vestir do operariado – em nome da disciplina, da hierarquização, da higiene e da produtividade – coexistiu com pressões para a preservação dos “trajes locais”, para que a demarcação simbólica e prática entre “civilizado” e “indígena” não deixasse de ser facilmente discernível.
Como escreve Bayly, “uniformidade não é o mesmo que homogeneidade”. Mas a similitude de postura e indumentária não deixa de revelar um impulso em direcção a uma aparência pública reconhecível e partilhável. E o processo de tendencial uniformização – em muito estimulado pela dinâmica do capitalismo, da publicidade e do consumo, mas também envolvendo o cada vez mais elaborado e uniformizante cardápio de protocolos burocráticos e os condicionamentos religiosos – não decorreu apenas de formas “ocidentais”, que teriam suplantado outras. “Uniformidades análogas” manifestaram-se no interior de tradições “não-ocidentais” de vestir. A standardização das formas de expressão pública e das associadas codificação e regulação sociais da vida quotidiana ocorreram um pouco por todo o lado, com causas, trajectórias e intensidades diversas, com (in)sucessos variáveis. E com resistências incontornáveis.
Em 1930, o distinto psicólogo inglês John Carl Flugel publicou The Psychology of Clothes, no qual argumentava que, desde o século XVIII, os homens tinham renunciado a “formas mais claras, mais elaboradas e variadas de ornamentação”. Tinham abandonado a pretensão de serem “bonitos”, apenas queriam ser “úteis”. A isto chamou a “grande renúncia masculina”, resultante das revoluções políticas e económicas dos séculos anteriores. O predomínio da “modéstia” era o resultado, com nefastas consequências psicológicas. Precisavam de ser libertados das amarras da estética da sobriedade. Deviam seguir a saudável diversificação ornamental das mulheres, também elas protagonizando movimentos reformistas semelhantes, como, por exemplo, aquele associado à figura de Amelia Bloomer e do vestido homónimo. Flugel foi uma das vozes que contribuiu para politizar esta aspiração. Fez parte do Men's Dress Reform Party (1929), movimento que procurou transformar o modo como os homens se vestiam, por razões higiénicas e médicas, políticas e económicas, estéticas e ideológicas.
De entre as mudanças sugeridas, veiculadas pelo seu primeiro relatório e pela sugestiva revista Sunlight, os chapéus apenas deviam ser usados como protecção do sol ou da chuva. A roupa interior devia ser larga. Os calções deviam predominar, não as calças. A expressão individual devia guiar cada homem, não o desejo de pertença grupal ou de adequação aos preceitos da sociedade industrial. Como declarava, “só através de uma escolha e variação individual serão as roupas dos homens capazes de uma evolução sadia e de uma adaptação razoável aos ideais sociais, higiénicos e estéticos progressistas”. Os efeitos da Primeira Guerra Mundial e do capitalismo industrial na homogeneização da indumentária, a militar e a civil, tinham de ser combatidos. O fundador deste movimento, o teólogo William Ralph Inge, achava que a revolução francesa era a causa da infeliz padronização do vestuário: os cavalheiros “esperavam escapar da guilhotina tentando parecer tão burgueses quanto possível”.
O movimento não teve efeitos memoráveis, apesar de um início promissor e de inúmeros esforços publicitários. Entre outras coisas, as propostas estéticas não acolheram pareceres favoráveis. A moda não pegou. Mas é um bom exemplo da gradual fossilização das formas de vestir que Bayly usa para ilustrar a multiplicação de uniformidades globais que tornou o século XIX um importantíssimo momento na história da globalização.
Tempos e trajectórias da globalização
O livro de Bayly é seminal por várias razões. Entre elas, porque permite repensar criticamente as cronologias comummente aceites para o fenómeno histórico da globalização, corrigindo a tentação da teleologia e da linearidade e recusando o seu carácter recente. A globalização é mais útil enquanto instrumento heurístico, de interrogação de dinâmicas históricas e de produção de conhecimento, do que como modo de descrição de estádios de mudança histórica. O pensamento histórico por “tipos” e por “etapas”, por “períodos” e por “regimes”, por “eras douradas” e “decadências”, gera um sem número de riscos. Não esquecendo este facto, a historiografia recente tem proposto um conjunto de configurações históricas da globalização, marcadas por sequências sobrepostas e interdependentes, incompletas e nunca absolutamente hegemónicas. São trajectórias globalizantes, não estados de globalização, que permitem redefinir as formas da sua periodização, reinventar as formas do seu estudo, corrigir instrumentalizações ideológicas.
Antes da industrialização e da emergência do “Estado-nação”, a expansão geográfica de forças sociais e de ideias, com múltiplas origens e com distintos impactos sócio-espaciais, formaram redes globalizantes, comerciais e espirituais, transfronteiriças. Os “universalismos competitivos”, como lhes chamou Frederick Cooper, protagonizados por peregrinos e viajantes expandindo o mercado global da fé, coexistiram com reis e guerreiros em busca de riqueza e honra e com comerciantes explorando oportunidades diversas. Estas redes e comunidades em movimento, incluindo diásporas e formações imperiais, estimularam a emergência ou consolidação de nós sócio-espaciais concretos, as cidades, e a gradual divisão global do trabalho. Nexos de tributação, trocas e consumos, de bens e ideias foram sendo tecidos com consistência em geografias cada vez mais vastas. As “práticas corporais” circulavam pelas crescentes redes de transporte e comunicação. Esta globalização “arcaica” apresentava assim sintomas “modernos”. Mas com limites técnicos e institucionais notórios e delimitações geográficas de monta.
Os finais do século XVIII, por outro lado, caracterizaram-se por uma renovada forma histórica da globalização, que não suplantou ou substituiu a anterior. Sobrepôs-se, modelou-a. Esta configuração foi marcada, entre outros aspectos, pelo fortalecimento da relação entre território, taxação e soberania e pelo crescimento pré-industrial de serviços, capital e produção. Este último aspecto resultava das famosas “revoluções industriosas” que fizeram germinar novas formas e valores de produção, troca e consumo. Esta forma de “proto-globalização” esteve intimamente ligada a um momento de significativa expansão de dinâmicas imperiais sensivelmente entre 1760 e 1830. De meados de oitocentos em diante, a afirmação do fiscalismo militar e a expansão imperial, muito ancorada no tráfico de escravos, foram acompanhados por uma revolução do conhecimento: a classificação do globo, dos seus recursos naturais e humanos, como exemplificámos.
A “moderna globalização” de oitocentos intensificou algumas destas tendências, não sem contradições e manifestações geográficas contrastantes. A consolidação do “Estado-nação” (e de alguns estados-império) e a crescente industrialização marcaram-na decisivamente. O sistema de plantação atlântico foi modelar de um ponto de vista organizativo, com a separação entre propriedade, finanças e administração, assente em várias formas de trabalho compelido, em que a escravatura se foi tornando gradualmente inadmissível enquanto meio de troca mas tardou em deixar de ser aceitável enquanto meio de produção. A globalização de fés organizadas ou de sistemas de conhecimento ou a emergência do chamado “novo” imperialismo foram elementos constituintes da “moderna” globalização. Os impérios foram espaços por excelência da formação de redes globalizantes, inclusive no que diz respeito à formulação e circulação de linguagens e repertórios de resistência. É o momento por excelência da politização da globalização, marcado por inúmeros esforços contraditórios de controlar o ritmo e a direcção das trocas internacionais. Foi ainda um contexto onde se congregaram tentativas diversas de domesticação do cosmopolitismo prevalecente nas configurações históricas anteriores. A elaboração de políticas restritivas do movimento coincidiram com a explosão de mobilidades humanas, internas e transoceânicas, muitas delas forçadas. Mas este foi certamente um momento decisivo na intensificação de “uniformidades globais”. Os níveis de reprodução cultural foram, em certa medida, proporcionais aos da integração económica.
Por fim, temos a “globalização pós-colonial”, profundamente moldada pelas complexas dinâmicas, interdependentes mas não redutíveis uma à outra, da descolonização e da guerra-fria. É, em certo sentido, uma globalização dividida ao meio, tecida na tensão entre energias integradoras e forças divisivas. O “choque do global” foi mais ambivalente do que se assume. Por um lado, a intensificação de tendências globalizantes decorrentes, entre outros aspectos, do papel de empresas e serviços financeiros, comerciais e informacionais transnacionais e multinacionais. Por outro, a multiplicação das expressões de conflitualidade política, étnica, social e económica a uma escala global. É inegável que foi um momento de consolidação da “globalização cultural”, embora esta seja frequentemente compreendida de modo superficial. As “uniformidades globais” nos padrões de consumo – de ideias, de estilos de vida, de símbolos, de “práticas corporais” – são inegáveis. Mas não há uma única trajectória globalizante. A “universalização do particularismo” e a “particularização do universalismo”, como há muitos anos notou Roland Robertson, são concomitantes. Com várias combinações e correlações de forças, geram inúmeras tensões, ambiguidades e intermitências que nenhuma grande narrativa pode captar. Tendências globalizantes coexistem com movimentos de-globalizantes. A globalização teve vários tempos e temporalidades, acelerações e contracções. Tem várias expressões geográficas. E certamente vários sentidos, suscitando múltiplas interrogações.
Amigos improváveis
Na leitura histórica dos vários momentos de globalização, uma das mais correntes operações de simplificação remete para a oposição entre dinâmicas globais de integração e os vários movimentos nacionalistas que marcaram a história dos últimos dois séculos. A partir de uma perspectiva macroscópica, trata-se de um período onde se combinam várias instâncias de globalização e uma gradual fragmentação política. É certo que vários destes projectos, de natureza irredentista, opuseram-se deliberadamente a dinâmicas que faziam perigar “identidades” nacionais que se queriam exclusivas. Todavia, uma boa hipótese analítica talvez passe por procurar perceber como o nacionalismo se globalizou, de um ponto de vista político e ideológico, mas explorando também os vários repertórios de acção partilhados pelas suas diversas expressões.
O século XIX testemunhou as condições que permitiram a crescente circulação de modelos de organização, ideários e dispositivos políticos e sociais que enformaram vários movimentos nacionalistas. Entre elas contaram-se o aprofundar da integração económica, a crescente facilidade de comunicação, ligada à diminuição drástica dos seus custos e ao aumento da sua velocidade de circulação, que permitiram que, por exemplo, as narrativas sobre as revoluções de 1848 ou da Comuna de Paris se espalhassem por toda a Europa e mais além, permitindo uma crescente globalização de modalidades de protesto. O desenvolvimento dos jornais reflectiu uma maior preocupação com o que se registava “fora” da nação. A expansão do número de correspondentes internacionais ilustrava este facto. O universo do imaginado, e conhecido, alargava-se, enquanto o universo do político era supostamente delimitado. A afirmação do compromisso com a “nação” obrigava a que governantes reiterassem a inspiração exclusivamente nacional de soluções políticas e administrativas, mesmo quando estas eram inspiradas por modelos estrangeiros. A uniformização coexistia com ajustamentos locais e era frequentemente negada. Mas acontecia nos mais diversos domínios, das políticas sociais à criação de instituições culturais, ou até nos domínios mais sensíveis da soberania nacional como o militar.
A tensão entre orientações exclusivistas e a formulação de projectos sociais e políticos que ultrapassavam as barreiras nacionais pode inclusivamente ser encontrada nas formas mais extremas de nacionalismo do século XX. É relativamente indisputável a centralidade da “nação” nos desígnios dos movimentos e regimes da direita radical do entre guerras. Contudo, durante demasiado tempo as importantes conexões ao nível das ideias, mundivisões e acção social foram desvalorizadas, reduzidas a simples langue de bois. É, de resto, uma opção analítica demasiado presa às auto-representações dos seus dirigentes e ideólogos. É difícil pensar a transnacionalização do nacionalismo extremo na Europa enquanto resultado apenas de um agregado de situações nacionais específicas. O pânico gerado pelo bolchevismo, o desencanto com a modorra e ineficiência da democracia liberal, o entusiasmo pela acção voluntarista e directa ou a sensação de decadência nacional e civilizacional manifestaram-se forma diferente, com resultados diversos. Mas todos estes elementos foram partilhados, em graus diversos, pelas lideranças e organizações da direita radical de então.
Não se tratava apenas de uma questão ideológica, manifestava-se também na acção política e social quotidiana. Por exemplo, nos encontros entre a Juventude Hitleriana e a Opera Nazionale Balilla italiana. A declaração de Mussolini de que o fascismo não era um produto de exportação não impediu que, na sequência da Marcha sobre Roma, se registassem mais de 40 partidos que se auto-designavam como fascistas. Solidariedades e laços estabeleceram-se, por exemplo, entre Jose Antonio Primo de Rivera e o regime italiano, depois de este visitar Roma e receber apoios financeiros para criar a sua Falange. O mesmo aconteceu com os Ustasa croatas ou com o British Fascist Party.
Estes exemplos da transnacionalização do fascismo continuam a ser subvalorizados. Esta é seguramente menos conhecida do que outros fluxos que cruzaram fronteiras estatais. Se as brigadas internacionais republicanas da Guerra Civil espanhola são amplamente conhecidas, o mesmo não se passa com os 700 camisas azuis liderados pelo irlandês Eion O’Duffy que lutaram ao lado dos nacionalistas. Os variados movimentos e regimes que compuseram esta vaga transnacional, se apontavam para o horizonte último da “nação”, também procuravam uma reorganização mais ampla. Assistia-se a “uma renovação política e espiritual do mundo”, como afirmava Mussolini. Em 1932, este anunciava que em dez anos a Europa seria “fascista ou fascizada”. Movimentos e regimes que procuraram sedimentar a unidade nacional, e a exclusão que esta obrigava, não estavam imunes a dinâmicas mais globais, que aproveitavam ou que não podiam ignorar. Por exemplo, a figura de um “Homem Novo” assumiu uma preponderância inusitada em muitos destes movimentos e regimes. Testemunhando as ansiedades com a emasculação características do final do século XIX, este “homem novo” seria viril, só se poderia regenerar numa síntese entre o individual e o colectivo (para alguns, cristalizada na experiência da guerra). Apareceu um pouco por toda a Europa: do típico homem fascista britânico, estereotipado na série Men in Fascism, publicada pela British Union of Fascists, aos projectos eugénicos italianos. Tendências transnacionais foram interpretadas e acomodadas nacionalmente e foram novamente exportadas, em processos de circulação multidireccionais. Uma abordagem que se foque nos movimentos pendulares de globalização e de-globalização dos nacionalismos radicais talvez ajude a perceber melhor as lógicas de imitação, adaptação e distanciamento neste universo, não as encerrando em debates meramente tipológicos. Porventura, propicia um melhor ajuizamento do que é realmente novo nos nacionalismos do presente.
Os limites inerentes a pensar a globalização em estádios ou de forma linear e antinómica também podem ser revelados pelo uso de unidades de análise microscópicas. Nitobe Inazo e Ishii Kikujiro foram dois altos responsáveis japoneses na Sociedade das Nações. Nitobe foi durante vários anos seu sub-secretário-geral, e Ishii, o representante japonês no Conselho e na Assembleia. Durante os anos 1920, ambos manifestaram o seu entusiasmo com o futuro da organização e com o papel do império japonês na construção de uma ordem mundial pacífica. Nitobe formara-se na John Hopkins University e fora administrador colonial em Taiwan. Mais tarde, tornar-se-ia director do prestigiado Institute of Pacific Relations. Ishii era um diplomata de carreira, tornando-se depois Presidente da Associação Japonesa da Sociedade das Nações. Ambos eram declarados internacionalistas, pelo menos a julgar pelas declarações e acções à época. Ishii chegou a afirmar que com a Sociedade das Nações (SDN) não teria havido guerra em 1914. No entanto, o incidente na Manchúria, em 1931, que levaria a uma investigação da SDN condenatória da acção japonesa, conduzindo à saída da organização, despertou em ambos um momento de autoquestionamento. Nitobe preparou um périplo pelos EUA para defender a posição do Japão, alegando que a China não tinha capacidade para actuar como um Estado soberano. Defendia, de acordo com o ar do tempo, que ao universalismo da SDN sucedesse um regionalismo onde, claro, o Japão assumiria um papel de liderança no Extremo Oriente. A China constituía uma ameaça existencial, logo havia o direito de intervir. Ishii assumiu posição semelhante. Para trás ficava o compromisso com a arbitragem internacional. Em ambos os casos, a simples oposição entre nacionalismo e internacionalismo dificulta a compreensão das trajectórias individuais. Ainda mais o faz um olhar meramente cínico. Importa antes reconhecer a precariedade de grandes narrativas sobre a globalização. Por exemplo, a natureza do internacionalismo predominante à época e que ambos perfilhavam, ainda organizado segundo linhas raciais e segundo uma lógica “civilizadora” (aplicável a locais como a Coreia ou a Manchúria) complica as antinomias simplificadas.
O caso da descolonização e posterior condução da política externa do Gana constitui um outro observatório histórico revelador, tanto da globalização de modalidades específicas de acção nacionalista como da combinação de projectos de unidade nacional e promessas de reconfiguração supranacional. Baralha ainda as cronologias estabelecidas da globalização. A multiplicação de novos estados africanos não pode deixar de ser pensada em articulação com lógicas de crescente integração global. Esta é, de resto, uma história que precede 1945. Ela é exemplificada pela trajectória de Kwame Nkrumah, o primeiro presidente após a independência, que, em 1935, partiu para os EUA para aprofundar os seus estudos. Lá, observou o funcionamento dos vários partidos, envolvendo-se em actividades políticas diversas. Aí e no Reino Unido travou conhecimento com outros importantes intelectuais e agitadores anti-racistas, de CLR James a George Padmore. O caribenho Padmore, que conheceu em 1945 em Londres, no mesmo ano do Congresso Pan-Africano de Manchester, estudara nos EUA onde se ligara ao movimento comunista internacional, seguindo depois para a União Soviética, onde rapidamente se desiludiu. Tornou-se o principal conselheiro de Nkrumah para questões pan-africanas. Antes, o próprio Nkrumah, ainda no Reino Unido, estudara a acção e método revolucionário de autores tão díspares como Lenine, Ghandi, Cromwell ou Hitler, com o objectivo de criar o seu próprio movimento político.
A solução adoptada por Nkrumah passou pela criação de um partido de massas, logo que regressou à sua terra natal. Foi coroada com sucesso, a independência alcançada precocemente, em 1957. Se Nkrumah se inspirara em outros repertórios de acção, rapidamente procurou que o seu próprio modelo se tornasse exportável. O Convention People’s Party (CPP) era um partido nacionalista africano que, ao mesmo tempo, tinha por objectivo a unidade continental. Pan-Africanismo e nacionalismo não surgiam como antitéticos, antes como complementares. No cumprimento dessa visão, Nkrumah colocou muitas das energias do novo Estado, criando instituições como o African Affairs Centre ou o Bureau of African Affairs. Organizou em 1958 a primeira conferência de Estados Africanos Independentes e, no mesmo ano, a All African Peoples’ Conference, que reuniu 167 membros de 62 partidos nacionalistas ou sindicatos africanos diferentes. O objectivo era treinar, educar e modelar os futuros dirigentes pós-coloniais bem como os diferentes elementos dos movimentos anti-coloniais. Avultadas somas foram gastas no alojamento e educação de refugiados africanos. Meios como a Radio Ghana e o jornal Voice of Africa levavam a mensagem de Nkrumah além-fronteiras, fosse directamente, fosse por intermédio dos vários dos dirigentes nacionalistas que se dirigam a Accra. Jomo Kenyatta, Holden Roberto, ou Patrice Lumumba foram alguns dos que passaram pela então capital transnacional do anticolonialismo. Partidos como o Malawi Congress Party, de Hastings Banda, copiaram a estrutura organizativa do CPP. Outros adoptaram palavras de ordem similares. Nkrumah, por sua vez, queria garantir que todos eles assumiam o verdadeiro pan-africanismo, a modalidade “correcta” de nacionalismo. Fundamental era evitar a fragmentação dita “tribal”, como sucedera na Nigéria ou no ex-Congo Belga. Como é óbvio, promover a liderança internacional de Nkrumah do movimento anti-colonial não era um objectivo de somenos importância.
Ainda que a unidade africana nunca se tenha concretizado, o projecto de Nkrumah combinava de forma ambivalente lógicas de integração política e de preservação das fronteiras ditas “nacionais”. O conhecimento do desfecho deste processo não nos deve levar a ignorar que este não se se limitou a aspectos práticos, retóricos ou organizativos. Projectos de constituição de federações, por exemplo, entre o Gana e a Guiné ou entre o Senegal e o Mali, no final dos anos 1950 e início dos 1960, concretizaram-se, de facto, e foram uma possibilidade de futuro, ainda que precária. Foram parte daquilo que alguns especialistas chamam de “momento federal”. Elas foram uma das múltiplas possibilidades não concretizadas, ambíguas, contraditórias, que marcaram a tensão permanente entre a manifestação de forças globais, globalizantes e transnacionais e as dinâmicas de acomodação às contingências locais. Confundem cronologias rígidas de “integração” e “fragmentação”. Tal como muitos dos exemplos aqui enunciados, só podem ser compreendidas se estudadas rigorosa e historicamente. Seguramente, adoptado o método, não estaremos em condições de antever o futuro. Mas deixar-nos-á suficientemente avisados sobre aqueles que o proclamam encerrado.