Falsificando a história: da Al Jazira para os ingénuos deste mundo

E qual a posição da extrema-esquerda politicamente correcta que tem estado tão empenhada nesta questão da escravatura? Até agora nenhuma daquelas pessoas que gostam de culpabilizar os portugueses pelo seu passado escravista se insurgiu contra este acto de pura censura, cujo objectivo é o de tirar os muçulmanos desse filme e colocar todo o odioso dele nos ombros dos ocidentais

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Reuters/Naseem Zeitoon

Há uns tempos o canal francês Arte passou uma série televisiva intitulada Les routes de l’esclavage. A série retrata, em quatro episódios de cerca de uma hora cada, o tráfico de escravos africanos e as condições da sua escravidão. Les routes de l’esclavage é uma série um pouco tendenciosa e transmite algumas informações erradas, mas, tendo isso em mente, vale a pena vê-la por vários motivos, nomeadamente porque nela se dá a palavra a alguns historiadores competentes como sejam David Eltis, Vincent Brown ou Paul E. Lovejoy, por exemplo. Além disso, a série começa pelo princípio, isto é, pelo tráfico de africanos feito a larga distância e destinado ao mundo muçulmano.

O que foi esse tráfico? Desde o século VII que o mundo muçulmano começou a importar negros e negras para desempenharem funções de soldados, concubinas, guardas de harém, pescadores de pérolas, mineiros, trabalhadores rurais, etc. Fê-lo através do deserto do Sara ou por via marítima, pelo Índico e mar Vermelho. Tanto o tráfico marítimo como o terrestre se realizavam em condições muito duras. No caso do tráfico transariano, os escravos faziam a longa viagem a pé, enfrentando o cansaço e as inevitáveis carências de água, e pensa-se que tenham morrido mais pessoas escravizadas nas areias do deserto do que na travessia do Atlântico. As condições de transporte em pangaios e outras pequenas embarcações no Índico podiam ser semelhantes, ou piores, do que as verificadas nos navios negreiros ocidentais.

O primeiro dos quatro episódios da série Les routes de l’esclavage tem esse tráfico muçulmano como objecto. Mostra quais as rotas por onde era feito, refere o desprezo de que os negros eram alvo devido à cor da pele, revela que a palavra zanj (preto, em persa) começou a ser usada para designar os escravos em geral, e traz até ao espectador muitas outras informações importantes. É claro que, para que as coisas fossem equilibradas, a série não devia ter apenas um episódio dedicado ao tráfico muçulmano porque ele levou tanta gente de África como o tráfico feito pelos povos ocidentais através do Atlântico, para as Américas, e durou mais tempo, dos séculos VII a XX. Esse tráfico mereceria dois episódios da série. De todo o modo, contá-lo num episódio é melhor do que não o contar de todo e do que fingir que ele não existiu.

Ora, foi justamente isso que a Al Jazira, a mais importante rede de televisão do mundo árabe, fez. Passou a série, suprimindo o primeiro episódio, aquele que incide sobre o mundo muçulmano. E renumerou os episódios da série. O episódio 1 passou a ser aquele que é dedicado aos portugueses (e que, na série original, era o episódio 2). Para os espectadores da emissora de televisão jornalística do Catar a série começa, após uma breve introdução, com o tráfico de escravos português e com o historiador G. Ugo Nwokeji a declarar o seguinte: “no começo, (a escravatura) foi um projecto português. Os portugueses acabavam de sair das Cruzadas, durante as quais tinham levado a cabo uma guerra terrível contra os muçulmanos. Uma parte da aventura (portuguesa) em África visava, aliás, protegê-los dos muçulmanos e manter uma vantagem sobre estes.” Ou seja, quando se põe em frente do ecrã, o espectador da Al Jazira vê descrições e análises ao tráfico de escravos feito por portugueses, ingleses, franceses, etc., mas não ao que foi feito pelos mercadores muçulmanos. Para esse espectador é como se o tráfico e a escravidão de negros e negras nos territórios dos reinos islâmicos em África, na Ásia e na Europa nunca tivesse existido. Assim, a série já pode passar. Tout est bien qui commence bien.

A falsificação da informação por parte da estação de televisão do Catar é chocante e inquietante. O que toca o nome de Portugal, sobretudo quando esse nome é envolvido numa história mal contada, devia preocupar-nos a todos. Por isso eu louvo Pedro Sousa Tavares, o jornalista do DN que trouxe este assunto à baila, e deixo aqui duas perguntas:

1- A série em causa é uma coprodução na qual a RTP participou. Qual é a posição da nossa televisão estatal perante uma tão flagrante amputação feita de uma forma que é, evidentemente, um atentado à verdade histórica, e que lesa, ainda que de maneira indirecta, a imagem do nosso país? 

2- E qual a posição da extrema-esquerda politicamente correcta que tem estado tão empenhada nesta questão da escravatura? Até agora nenhuma daquelas pessoas que gostam de culpabilizar os portugueses pelo seu passado escravista se insurgiu contra este acto de pura censura, cujo objectivo é o de tirar os muçulmanos desse filme e colocar todo o odioso dele nos ombros dos ocidentais. Há muito que isto é cozinhado, há muito que o papel dos muçulmanos na história da escravatura é escandalosamente silenciado ou disfarçado, e, por isso, eu louvei e volto a louvar quem não se acanha de o trazer à tona. Mas gostaria que aqueles que, em Abril de 2017, foram lestos a atacar Marcelo Rebelo de Sousa por ter, alegadamente, feito declarações menos rigorosas sobre escravatura, sentissem agora a necessidade de comentar a deturpação grosseira e malévola praticada pela cadeia de televisão do Catar. Será de mais esperar que pelo menos quatro ou cinco desses nossos jornalistas e académicos engagés se pronunciem sobre a acção falsificadora da Al Jazira e em prol da verdade histórica? Sou todo ouvidos.

Historiador e romancista

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