A fábrica de fitas que está presa por um fio
A história da Francisco Soares da Silva não chega para lhe garantir um futuro. Fundada em 1840, a empresa que fabrica as fitas de seda para as medalhas e condecorações do Estado português, começou a definhar com a concorrência dos produtos chineses e agora luta por manter-se à tona.
Longe vão os tempos em que “choviam encomendas” e a Francisco Soares da Silva “tinha mais de 40 operários e sustentava três famílias”. Instalada desde 1840 à beira do Jardim das Amoreiras, na freguesia lisboeta de Santo António (antiga freguesia de S. Mamede), onde o metro quadrado vale hoje cerca de quatro mil euros, é a única fábrica de fitas, elásticos, cordões e galões de Lisboa, de onde saem, por exemplo, as fitas de seda para medalhas e condecorações atribuídas pelo Governo e pelo Presidente da República. É uma empresa mais do que centenária, que já viveu dias mais felizes.
“Enquanto eu for vivo, a fábrica não fecha, mas levamos uma luta tremenda contra os chineses, que estão a fechar os nossos clientes todos”, queixa-se Carlos Manteigas, que tem 90 anos e desde há 30 lidera a empresa. Chegou à Francisco Soares da Silva porque era “amigo da filha do último administrador, ainda da família do fundador”, o próprio Francisco Soares da Silva.
Veio para ajudar com as contas e os balancetes e acabou por ficar e converter-se no sócio maioritário, abrindo, entretanto, o capital a parceiros (como gravadores de medalhas), clientes (os armazéns de revenda e as retrosarias de norte a sul do país) e colaboradores. “A base da empresa eram as fitas, eu é que a levei para o caminho da importação”, conta ao PÚBLICO. Durante anos, a Francisco Soares da Silva forneceu retrosarias de Portugal inteiro com fechos, botões, velcros e os artigos mais variados (“Chegámos a ser o maior centro de compras do país”). O negócio ia de vento em popa e, a dada altura, a importação ultrapassou a produção na facturação da empresa. Mas há dez anos, tudo mudou: chegou a concorrência chinesa e, com ela, “metade do negócio foi ao ar”.
Se antes a facturação anual rondava os 2,5 milhões de euros, agora anda em torno do milhão de euros, diz Artur Ricardo, responsável de vendas da empresa, que gostava de ver um novo accionista, “com uma visão mais moderna e abrangente”, a assumir as rédeas da Francisco Soares da Silva. “Precisamos de uma lufada de ar fresco e sangue novo”, diz.
Mas Carlos Manteigas, o patrão, garante que a empresa não anda à procura de um investidor: “Procurámos em tempos e vieram para cá pessoas que não tinham competência.” Por isso, agora, o que o líder da administração ambiciona é “encontrar pessoas que queiram trabalhar”, que percebam de gestão industrial, que saibam o que a empresa produz e como “despachar” os produtos de importação armazenados num edifício do outro lado da rua. Pôs um anúncio no jornal e deposita esperança nos candidatos “que vêm no fim do mês” a entrevistas. “Isto tem potencial, mas comigo tem poucas possibilidades, dada a minha idade”, lamenta o gestor, que continua a chegar ao escritório todos os dias às oito da manhã.
Uma “benessezita”
Certo é que os desafios da Francisco Soares da Silva estão longe de se esgotar na necessidade de encontrar alguém que assegure a gestão no futuro. Nos últimos anos, fecharam várias retrosarias e as que continuam de porta aberta também encomendam cada vez menos. Carlos Manteigas reconhece que o problema se transformou numa espécie de pescadinha de rabo na boca. Os vendedores, que ganham à comissão, “começaram a sair”— com isso, a empresa também deixou de ter uma força de vendas capaz de chegar a potenciais clientes e gerar negócio. E, “se não houver vendas, não há nada”, nem ordenados, nem dinheiro para pagar as dívidas, que entre a banca e o Estado (fisco e Segurança Social) já somam 400 mil euros. “Se o Estado desse uma benessezita... mas não vai dar. Aos grandes perdoam dívidas, aos pequeninos esfolam-nos vivos”, queixa-se. Felizmente, “as máquinas estão todas amortizadas”.
Se antes “não se faziam esforços e as encomendas apareciam”, agora a Francisco Soares da Silva tem de fazer o possível para retirar o máximo dos produtos em que é especialista. “As condecorações do Governo, como são um exclusivo nosso, têm uma boa margem de lucro. Mas isso não chega para aguentar a firma.” Outra aposta são as fitas universitárias. A empresa já trabalha directamente com várias universidades em Portugal, mas Artur Ricardo, que diz que “cada aluno que se forma precisa de 20 metros de fita”, não esconde a ambição de elevar a fasquia e aponta a mira ao gigantesco mercado universitário norte-americano. Assim o novo accionista o quisesse.
Enquanto não chega a tal lufada de ar fresco, a empresa (que tem cerca de uma dezena de funcionários) vai procurando agarrar-se a oportunidades de negócio, seja na produção, seja para escoar o material que tem em armazém (muito do qual, ironia do destino, importado da China, e com “qualidade muito superior” aos produtos que inundam o mercado).
Agora tem a expectativa de fechar um grande contrato com a Inditex, a dona da Zara, para vender fechos éclair que estão em armazém e outro com a TAP, neste caso para fornecer os elásticos para as cabeceiras dos assentos dos aviões, conta o responsável de vendas.
“Estamos sempre a visitar as feiras nacionais e internacionais para estar a par das cores e das tendências”, diz Artur Ricardo. Explica que este ano a moda deu uma mãozinha a um dos produtos que a empresa tem em catálogo: as faixas de gorgorão (as faixas laterais) que enfeitam as calças de senhora em várias colecções de vestuário. “A moda vai e vem e há sempre lugar para os nossos produtos; houve uma altura em que eram os vestidos de praia com as rendas nas bainhas e agora os galões bordados antigos também se estão a ver muito”, explica.
No pulso dos festivaleiros
O desaparecimento dos clientes tradicionais também obrigou a empresa a “diversificar muito à base das parcerias, como, por exemplo, com a indústria gráfica”. A Francisco Soares da Silva fabrica as fitas de tecido que adornam os pulsos de muitos festivaleiros por esse país fora (as gráficas ganham os contratos com os promotores dos festivais de Verão e encomendam as pulseiras onde depois imprimem os nomes dos eventos).
Se a localização no centro de capital dá à Francisco Soares da Silva condições privilegiadas para distribuir os seus produtos por todo o país, também tem um senão, reconhece Artur Ricardo. Esse é o da distância face aos principais centros de formação, que dificultam a tarefa de encontrar pessoal especializado. “Os cursos técnicos estão todos da Covilhã para cima”, porque o coração da indústria têxtil continua a estar no Norte do país.
“A rapaziada jovem não quer saber disto”, resume D. Olívia, enquanto se desdobra em cuidados com uma fita de embaixador, “que chega a levar mais de mil fios” de seda (importados do Japão, de Espanha, ou de Itália), colocados um a um nos vários teares da marca suíça Muller. A tecedeira, que chegou à fábrica em 1961, quando “tinha 14, 15 anos”, na companhia de duas irmãs que, entretanto, mudaram de vida, é a única que se orienta hoje no meio das várias máquinas, que estão na maioria paradas. Confessa que se lhe “aperta o coração” quando pensa que a fábrica pode fechar. Diz que ainda tem “mãos eléctricas”, do mais rápido que há “a torcer fio”, capazes de “fazer em três dias 600 metros de fitas” para medalhas. E reconhece que o seu maior desejo era ter a quem ensinar “o ofício mais lindo do mundo”.
A Francisco Soares da Silva faz parte do lote restrito de Lojas com História (um projecto da Câmara Municipal de Lisboa) e tem o compromisso de preservar a estrutura do edifício (que já recuperou), e a maquinaria, como o gigantesco tear mecânico da Muller, com 140 anos. “Só existe o nosso e um outro que está na fabricante, na Suíça”, diz Artur Ricardo. O tear centenário disputa o protagonismo com a muito mais discreta “máquina de moiré, inventada em Portugal ainda no tempo do fundador”.
Fabricada na metalúrgica Nery, de Torres Novas, é com ela (e com outra, de fabrico mais recente) que a Francisco Soares da Silva aplica a técnica francesa que imprime um efeito marmoreado às fitas e que a distingue de todos os outros fabricantes. Sem o efeito moiré “o Estado nem aceita”, diz Artur Ricardo.
A empresa instalou-se na Praça das Amoreiras precisamente porque foi aqui que o Marquês de Pombal mandou construir o jardim onde se plantaram as 331 amoreiras destinadas a dinamizar a indústria da seda e alimentar a antiga Fábrica de Tecidos de Seda, que hoje acolhe a Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva (paredes meias com a Francisco Soares da Silva).
Teve como vizinhas um conjunto de pequenas fábricas (de lenços, botões, pentes, louças e chapéus, entre outras) e é a única que resiste. “Somos a mais antiga e a única a sul do país e temos artigos que mais ninguém sabe fazer no mundo”, garante Carlos Manteigas.
“A minha vida está feita, não tenho medo da morte, agora não queria que isto fechasse”, afirma o empresário, que, entre apelos “a que alguém ajude” a Francisco Soares da Silva, também diz ter “a impressão de que, quando chegar a hora da verdade, o Estado não vai deixar cair isto”.