Soalheiro

Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa.

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A manhã era de neblina, fresca, baça, fria, de uma luminosidade difusa, de luta. O dia ganha-se ou perde-se aí, consoante o sol consegue tornar o nevoeiro ralo, desfazendo-o em pedaços volantes, ou é obnubilado por ele até à manhã seguinte, em que, de novo, medirão forças. Se chove, é dia ganho na horta, nos campos de batatas, nos pomares, mas nas almas dos tristes, é perdido. Não só o dia, mas o mundo todo, cujo trânsito fica suspenso, cristalizado, já que, no caso particular do céu, o azul ou o cinzento não são só cores, são vidas: umas que correm, outras que param: as que podem voar no tom sem limites e as que chocam contra o tecto escuro e constrangedor (a história do cinzento é não ter futuro nem esperança. É a cor da cinza. E cinza é um processo concluído, extinto, de que não fomos partes, testemunhas ou beneficiários. É uma pena de prisão para inocentes).

Mas não precisam de se preocupar com isso agora, que o sol venceu as nuvens altas e as rasteiras, trespassando-as e vindo ter connosco a esta cozinha rústica, antiga, escura, que eu observo agora. No chão, uma lareira com grandes panelas de ferro com três pés, pesadas, pretas. Umas réstias de cavacos, carvões e cinzas. A meio, um forno que subjaz à enorme panela metálica embebida nos tijolos refractários, para aquecer água; ao lado, o forno de lenha de assar cabritos e pão, com uma porta que, a seu tempo, se tapa e destapa.

A luz entra pela porta de duas jambas, de que só uma se abre, a não ser em dias em que tem de se tirar a masseira para lavar e secar no quintal. Mas quando o sol bate nos dois postigos da cozinha protegidos por grades feitas à mão no ferreiro, à antiga, e se coa para dentro, e acontece de se estar o começar um lume com palhinhas secas, pauzinhos, raminhos e galhos, que se há-de pegar aos cavacos, o fumozinho dali resultante sobe e materializa os raios de luz que, antes, sem alvo, não víamos. Aquelas barras de sol tornam-se tão sólidas e concretas como as dos ferros das grades; tão reais que o cão, o gato ou a criança mais espertos tentam apanhá-las com patas e mãozinhas, reconhecendo a transcendência daquela aparição de além-mundo. Tal como quando a electricidade se vê numa faísca de curto-circuito, num arco voltaico que salta de um eléctrodo de carvão para outro, ou, muito mais majestaticamente, com grandiosidade fenomenal, nos raios dançantes de estalos ameaçadores das colossais bobinas que esse génio esquecido Nicola Tesla concebeu. Só ele nos poderia ter deixado também um dispositivo que tornasse as almas fluorescentes ou, mais importante ainda, que fizesse um olhar de devoção riscar a noite mais escura. Isso sim.

E quando estou embalado neste fervor poético, entra-me o Galhardo na sala (o meu mordomo Galhardo, como saberão os fiéis seguidores destas homilias) e, depois de anunciar o almoço que vai ser servido, chama-me à parte e pergunta-me – como que adivinhando o tema em que eu mentalmente discorria – se pôr do Sol tem hífen (neste caso, hífenes), para resolver uma divergência de pontos de vista com a recém-contratada governanta que veio substituir a que – como se recordarão – veio a ser presa em antipático episódio nesta rubrica aludido.

“Sentemo-nos”, digo, indicando-lhe o sofá de couro bem polido naquele estilo que sugere múltiplos umbigos, com botões a distâncias regulares, metidos para dentro. Mas ele, por deformação profissional, habituado a estar de pé e com pouca prática de estar sentado, escorregou no couro com a parte menos gasta das calças, até dar por si no chão, em queda em boa hora amortecida pelo velho tapete de Arraiolos que me acompanha desde o meu quarto de criança.

“Atentemos às particularidades do problema”, disse eu, muito retoricamente, do fundo da minha poltrona de veludo amarelo, a condizer com os reposteiros que os meus leitores bem conhecem, desde a origem, com os olhos postos no tecto, para dar tempo ao bom Galhardo de disfarçar aquele passo em falso e recuperar a compostura digna de um servidor do castelo centenário – milenário – em que, pela força do destino, habito, medro e governo. E, já agora, aos que, vencidos pelo monstro de olhos verdes que se chama inveja, estão mortinhos por me chamarem burguês, a coberto do seu anonimato, peço-lhes que, em vez disso, me chamem nobre. É mais rigoroso e contextualiza.

Voltando ao Sol:    

 “Meu bom Galhardo” – levantei-me e chamei-o para o meu lado, entrando na galeria dos quadros, actualizando a minha forma de preleccionar pelo que de mais moderno se faz nos EUA, que é ter reuniões e até resolver casos policiais enquanto se anda ao longo de corredores, em grupo, atendendo ao que se vê na série “CSI” e quejandos – “o Sol é o nosso astro-rei, tal como o nosso bolo-rei é o nosso bolo-rei. Mas os nomes dos astros escrevem-se com inicial maiúscula. Ora, tanto o nascer do Sol como o pôr do Sol são momentos de um movimento aparente em arco que faz aparecer e desaparecer do nosso campo de visão, em cada dia, essa fonte de vida e de melanomas, a estrela em si. De modo diferente, quando o sentido é o da luz que a estrela emite, a claridade, o dia, então a palavra escreve-se com letra minúscula: ‘de sol a sol’, ‘estar ao sol’, ‘um lugar ao sol’.”

“Mas, sr. Procurador, a D. Guiomar, que é uma governanta moderna e entendida nessas coisas de computadores e telefones com muita inteligência, diz-me que há uns correctores automáticos de palavras que dizem que tanto está certo escrever pôr do Sol como pôr-do-sol...”

“Por favor”, irrompi. “Não falemos de correctores ortográficos automáticos antes de almoço, que fico já cloridricamente acidulado e deveras impreparado para acolher no seio digestivo as meigas vitualhas que saem daquelas mãos de fada da nossa cozinheira, sr.ª Deolinda. Simplifiquemos: existe pôr do Sol, como contrário de nascer do Sol, e existe pôr-do-sol, mas com um significado completamente diferente: o de uma refeição dos cristãos primitivos tomada ao pôr do Sol, sendo sinónimo, nesta acepção, de ágape. Portanto, peço encarecidamente: nada de confusões!”

A refeição correu muito bem. Tão bem, de facto, que me coibirei de a descrever em pormenores que poderiam ser dolorosos para aqueles que imaginam que é em restaurantes caros que se come bem. Levantarei apenas o embargo em relação à sobremesa, que encontrei sob a forma de um pudim abade de Priscos de uma macieza tão rara que o fazia escorregar pelas goelas do comensal sem necessidade de qualquer concurso consciente por parte do próprio. No meu caso, com o grato acrescento de selar tão completamente a minha já ancilosada úlcera duodenal que, finalmente aliviado desta dor crónica, ganho espaço para comportar um pouco melhor as dores do coração. Evito o café “expresso” e o meu fígado agradece. 

O comprimento da galeria dos quadros que no sentido inverso me tinha trazido à sala de jantar permite-me fazer meia digestão enquanto ao longo da mesma sigo, na companhia do meu amigo Nestor, para regressar ao santuário dos livros. É entre estes que tomo o reconfortante e digestivo chá de Ceilão, já que Ceilão, apesar da forma enganadora, não é masculino, mas neutro.

Olho através das portas de vidros encaixilhados e admiro as dezenas de tons de verde da relva aparada e lisa como um tapete. O amarelo-vivo dos limões do velho limoeiro cai bem neste conjunto, assim como os reflexos avermelhados das ameixas que se vão pintando. Tudo ensolarado, tudo soalheiro, tudo exposto ao sol, mas sem a conotação de soalheiro (com a variante solheiro) de espaço em que tanto nas aldeias como nas cidades se sentam pessoas a falar da vida alheia. Nada disso. Ali, na biblioteca, só se lia sobre a vida alheia, mas em recolhimento. Com os mesmos acrescentos de imaginação, mas em recolhimento e pacatez. Que privilégios!...

Correio Premente

De Anastácio Somoza, lugar de Tornaleites, freguesia de Espinhal, concelho de Penela:

“Exmo Senhor, boa tarde. Gostaria de saber qual a diferença entre percursor, precursor e percussor, pois sou percussionista amador e queijeiro profissional e pode-me dar jeito nas minhas funções”

Poderia responder pois não, mas prefiro pois sim. De facto, tem-se assistido a alguma confusão na aplicação prática dos três termos que indica, com especial incidência sobre os dois primeiros. “Percursor” designa aquele que percorre, aquele que faz um determinado percurso previamente aberto por alguém; já “precursor” é aquele que abre caminho, o pioneiro, o que inicia um percurso exploratório, seja na selva ou nas artes (uma outra forma de selva). Relacionando-os, poderíamos dizer, com alguma graça, que o precursor abre caminho aos percursores. Quanto a “percussor” (ou “percutor”, ou “percutidor”) é aquele ou aquilo que percute, que bate contra uma superfície um toque seco, tal como a baqueta na pele esticada do tambor ou no metal do prato de choque ou do gongo (instrumentos musicais de percussão), mas também a peça móvel da pistola ou revólver que bate contra o fulminante da bala. Quando o pica-pau bate no tronco da árvore onde tenciona fazer o ninho, também percute. Até o ritmo cadenciado de uma conversa inoportuna e interminável ou um gargalhar alarve, pelos seus efeitos enjoativamente repetitivos, percutem na paciência dos circunstantes. Ou então são os circunstantes que precisam urgentemente de gozar férias...

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