Como é jantar no “restaurante” com a experiência mais cara do mundo?
Refeição multimédia, extravagância cénica tecnogastronómica ou excentricidade sensorial para milionários? E no meio de tudo isto, a comida tem relevância ou é um mero acessório? Eis o Sublimotion, em Ibiza.
Paco Roncero é um conhecido e multipremiado chef espanhol. Além do talento para a cozinha, tem uma veia criativa apurada com a passagem pela escola elBulli, de Ferran Adrià. Há dez anos, em Madrid, onde é chef do La Terraza del Casino (com duas estrelas Michelin), começou a pensar num pequeno lugar onde pudesse oferecer a um número restrito de convivas uma experiência que fosse muito além de um jantar de alta cozinha. “Como cozinheiro, o que me interessa é o que está no prato. Porém, porque não explorar o que está ao redor do mesmo? Os amigos, a mesa, a música e a envolvente de uma forma mais sensorial.” Segundo Roncero, “em qualquer lugar a comida é o essencial, enquanto que o ambiente é o sal e a pimenta”. Todavia, neste conceito a proporção é diferente: “É mais 50/50.”
No espaço de Madrid, a que chamou Paco Roncero Taller, criou então, com uma equipa multimédia, uma experiência gastronómica encenada, com projecções, música e uma série de artefactos tecnológicos. Porém, ao transpor a ideia para Ibiza, uma espécie parque de diversões frenético para adultos, o projecto tornou-se mais ambicioso. A cena passa-se agora num antigo armazém, junto ao Hard Rock Hotel (seu parceiro no local), e não numa sala de restaurante. Isto permitiu definir um plano de raiz mais grandioso e com uma equipa maior. O grupo contempla agora, além da equipa de cozinha, um director musical, um ilustrador, um figurinista, actores, um ilusionista e um produtor/DJ (Wally López).
De igual modo, o novo espaço permitiu pensar num sistema de projecção com imagens 360° nas paredes e, além disso, de temporada para temporada, o projecto foi-se completando, ganhando novas camadas. Na parte gastronómica, por exemplo, aos conhecidos chefs espanhóis que colaboraram em edições anteriores, como Dani García, Diego Guerrero, Toño Pérez ou o chef pasteleiro Paco Torreblanca, juntou-se agora, nesta quinta temporada, o norte-americano David Chang (ao todo perfazem um total de dez estrelas Michelin). Na parte da interpretação, a actriz espanhola Iris Lezcano é este ano a condutora do espectáculo e em termos tecnológicos há um novo momento apelidado de “realidade híbrida” em que cada comensal, imerso num ambiente virtual, pode interagir e saborear uma série de pratos de forma real.
Um cliente chamado Cristiano Ronaldo
Para participar neste mundo paralelo, cuja temporada vai 1 de Junho a 30 Setembro e apenas comporta 12 lugares por noite, cada cliente tem de desembolsar mais de 1500 euros [mais precisamente 1650€ em 2019], com champanhe D. Pérignon e um ou outro vinho topo de gama espanhol à discrição. Roncero afirma que o preço “não é estranho, em Ibiza”, e quando lhe perguntamos se sente a responsabilidade de servir a refeição com o acesso mais caro do mundo, diz que “sim, claro”, mas que “até hoje ninguém se queixou de que não valeu a pena”. Antes de subirem a cortina, quisemos ainda saber quem são habitualmente os clientes. Adivinhando os que iríamos mencionar, o chef madrileno antecipa-se. “Há vida para além dos milionários árabes, russos e jogadores de futebol. Há também muitas celebridades e clientes americanos, holandeses, mexicanos, brasileiros e espanhóis”. Já portugueses... “nem por isso”. “Ah!, claro, o Cristiano Ronaldo esteve cá no ano passado. Fechou o espaço para ele e mais cinco pessoas.”
Num comboio sem travões
O Sublimotion tem um endereço definido e até uma placa a indicá-lo. Porém, a fachada é totalmente branca, apenas com uma porta, por onde entramos. A encenação começa nesse hall de acesso, que lembra a recepção de um pequeno hotel de época, com papel de parede às flores. É aqui que servem os primeiros snacks e onde cumprimentamos a equipa, que surge de repente, quando se acende uma luz por detrás de um espelho.
Passamos a uma outra antecâmara. Uma espécie de túnel... um elevador. Ou talvez não. “Alguém tem problemas cardíacos?”, pergunta uma das hostesses, vestida como uma antiga hospedeira da Pan Am. “Hey ho, let’s go!” Os Ramones, com o volume no máximo, dão o sinal. O elevador velho e barulhento range e parece descer, mas tudo não passa de um simulacro. Agora sim, chegamos ao destino, a uma sala minimalista em tons de vermelho: quatro paredes, uma mesa longa e seis cadeiras com rodas (daquelas de design moderno de escritório) alinhadas de cada lado. Na verdade, todos os elementos são brancos e o que vemos são projecções de luzes e imagens. Neste caso, projectam umas cortinas de teatro em redor da mesa que, quando sobem, já depois de estarmos sentados, dão lugar a uma orquestra. Uns minutos depois a imagem muda. A nossa mesa é neste momento um areal e temos 360° de praias nas paredes.
Apagam-se as luzes e um foco incide sobre Iris Lezcano, real e deslumbrante. A mestre de cerimónias deixa uns enigmas no ar sobre o que se vai passar, mas apenas fixo a expressão “comboio sem travões”. Venha ele. Começa-se a ouvir “poc”. Descem umas garrafas de champanhe e tudo vira imagem do líquido e suas pequenas bolhas. Previsível? Sim, mas ainda estamos no aquecimento.
O espectáculo continua. O cenário vira um fundo do oceano, enquanto as hospedeiras vão adornando a mesa com redes e outros objectos ao mar. Chega o primeiro prato dentro de uma ostra enorme. É um gaspacho feito com pimento amarelo assado e berbigão. Para o momento seguinte a sala escurece e, quando esperamos que alguém traga o próximo prato, doze taças de vidro com uma “horta” comestível descem do tecto. Acendem-se as luzes e uma floresta com vários rochedos a flutuar é projectada nas paredes. Impressiona, de facto. A sala fica escura de novo. “Esta cápsula tecnológica 2.0 permite-nos viajar no tempo”, explica-nos Iris, antes de ordenar: “Virem as cadeiras!”. Nas paredes surge A Quimera do Ouro, de Chaplin, enquanto recebemos um pacote com pipocas geladas fumegantes. Desfrutamos a sessão de cinema por uns minutos e quando nos viramos de novo para a mesa temos um prato na forma da famosa bota do Charlot a servir de suporte a um tártaro de vaca velha sobre uma base de tempura com tinta de choco.
A sessão está afinada e bem montada e inclui momentos para que se possa conversar. Num deles, Paco Roncero explica como tudo funciona sem falhas. “Trabalhamos o conceito e os pratos em Madrid, durante seis meses, e depois chegamos cá e aplicamos. Repetimos, repetimos, repetimos até sair tudo bem.” O espanhol refere-nos que gostaria de fazer este espectáculo para umas 100 pessoas, por um valor muito mais baixo. O projecto existe e houve conversações com a Disney nesse sentido, “mas as coisas estão um pouco paradas”.
Partimos para Nova Iorque. A sala transforma-se no Central Park e todos recebem um saco de piquenique: vieiras com kimchi é a proposta de David Chang, uma das novidades da temporada. Após esse instante trazem-nos uns óculos de realidade virtual e entre tarefas e uns pequenos snacks entramos em queda livre e chegamos ao Havai. Quando nos retiram os óculos estamos em pequenas mesas de dois junto à parede, onde nos é servido outro prato. Entretanto, a mesa do meio transforma-se num cabaret e um ilusionista, ou melhor, a sua imagem, figura na parede. Interage, dá-nos uma tarefa com cartas e propõe-nos um desafio daqueles que geram a habitual questão, “como é que ele fez aquilo?”
Voltamos à mesa central, mas desta vez alinhados uns atrás dos outros. Trazem um tabuleiro, descem umas cortinas... estamos agora num avião e na bandeja surgem várias propostas, entre elas um linguado com puré de batata e caviar.
“Que tal a viagem? Preparados para aterrar?” Cai o pano e desta vez somos transportados para uma projecção da Tailândia com carrinhos de comida de rua reais. Cada um levanta-se e vai pedir a sua comida como se estivesse numa esquina de Banguecoque. Ainda há mais um momento D.Pérignon e um outro a simular uma cena meio diabólica, tipo Eyes wide shut, em que um cozinheiro, qual Lucifer, vai cortando um naco de carne, ou melhor, de barriga de atum que prepara ao momento. A música? Highway to hell, dos AC/DC, pois claro. Esperem, mas não acabou. É impossível não mencionar a cena burlesca com uma mulher sem dorso a empurrar um carrinho, ou a sobremesa “multimédia” empratada (e transformada) na mesa com a ajuda de imagens. A despedida faz-se em tons psicadélicos e notas sincopadas de uma batida techno com refrão dos Eurythmics: “Sweet dreams are made of this. Who am I to disagree?”
No final, a boa disposição é visível nos rostos. Assim contado, parece que tudo se passa de forma desenfreada, mas na verdade o ritmo é perfeito e nem se dá pelas cerca de três horas que dura. Em termos gastronómicos, não é um daqueles momentos arrasadores, mas essa componente é essencial ao espectáculo, está bem pensada e é executada sem falhas, como tudo o resto. Em termos globais, no fundo, este é um exercício pop divertido para usufruir sem grandes reflexões. Todavia, como explica Paco Roncero, “é muito difícil contar às pessoas como é, tens de o sentir”.
A Fugas viajou a convite do Sublimotion Ibiza