Dieta Mediterrânica ou por que é que bens culturais não são caixas de cereais
Sem um Estado fortemente empenhado torna-se difícil não depender dos produtores de alimentos para proteger uma maneira de comer e viver.
Parece semântica, mas faz toda a diferença. E também se compreenderá no final deste texto por que razão deveria ser o Ministério da Saúde ou da Cultura a proteger (também) a Dieta Mediterrânica e não apenas o Ministério da Agricultura. Mas vamos por partes.
O vocábulo “dieta”, derivado do grego diaita, encontra a sua aceção mais antiga em Esopo, na fábula do corvo e do cisne. Na tentativa de alcançar um esplendor semelhante ao da plumagem do cisne, o corvo passa a viver e a banhar-se nas mesmas águas que aquele, deixando as árvores. A esperança de alcançar a beleza desta forma traduziu-se na modificação de um determinado estilo de vida, isto é, de uma dieta.
Dieta ou a Dieta do Mediterrâneo pode assim assumir a condição original de uma maneira de viver na região do mediterrâneo. Que associando à alimentação se pode traduzir numa maneira de preparar os alimentos conforme a época do ano, de cozinhar tendo a água por base (sopas, ensopados, jardineiras, cozidos...), de comer em convívio e de escolher produtos frescos, locais, maioritariamente de origem vegetal. O que no seu todo originam uma forma de comer saudável para o corpo e para o cérebro que o médico fisiologista norte-americano Ancel Keys estudou e cunhou na década de 60. E que se tornou depois no padrão alimentar mais estudado e admirado em todo o mundo.
Sendo este modo de nos relacionarmos com os alimentos tão admirável, do ponto de vista ambiental e de saúde, valeria a pena mantê-lo e preservá-lo. Contudo, um padrão de comer e viver que tinha por base a proximidade à produção agrícola, um mundo onde os filhos falavam com os pais à volta da mesa e onde as mães tinham tempo para ensinar as filhas e os filhos a cozinhar, já não pode existir numa sociedade de correria, onde saber manejar um telemóvel é mais determinante do que saber fazer comida ou estar à mesa.
Foi este mundo em extinção, estes saberes milenares, de produzir alimentos, conservar, cozinhar e estar à mesa, transmitidos de geração para geração, que a UNESCO quis preservar ao atribuir à “Dieta Mediterrânica” em Portugal a menção de património imaterial da Humanidade. Património cultural, imaterial, ou seja, não visível, que necessita de ser catalogado, estudado e depois incentivado para não se perder. Trabalho para a antropologia cultural e para gerações de professores, para programadores culturais, para as autarquias, mas também para nutricionistas com tempo e sabedoria, para médicos que vão além da aspirina e, acima de tudo, para os divulgadores da gastronomia que hoje são autênticos líderes de opinião nos templos das redes sociais e televisão.
Este é um trabalho de estratégia que implica organização, inteligência, cultura, mundo, defesa da produção local sem nacionalismos e, acima de tudo, tolerância para com o outro porque o mediterrâneo tanto é a terra quente transmontana onde se produz grande parte da nossa amêndoa e azeite como a da tangine do Magrebe, uma versão nossa do cozido com grão e borrego algarvio das nossas avós árabes.
No meio desta falta de organização, capacidade e conhecimento para proteger um bem cultural de grande relevância para a nossa identidade, têm sido os alimentos do mediterrâneo que se têm vindo a associar e a destacar na defesa da Dieta Mediterrânica. Em concreto, têm sido os grandes produtores de azeite, de vinho ou de massas a lutar por esta causa, à sua maneira, salvaguardando os investimentos que fazem nesta proteção. Ou, ainda, algumas cadeias de restaurantes ou até alguns cozinheiros do Norte da Europa (veja o caso paradigmático, para o bem e para o mal, de Jamie Oliver).
O percurso dos países do Sul é errático em função dos interesses do momento e debaixo da proteção dos Ministérios da Agricultura locais e interesses agrícolas mais ou menos ocasionais. Sem que exista uma verba própria destinada para este efeito e criando uma teia de conflitos de interesses vários, é natural que a Organização Mundial da Saúde (OMS) comece a olhar de lado para os supostos “protetores” da Dieta Mediterrânica aqui ao Sul. Sem um Estado fortemente empenhado, capaz de proteger os seus bens culturais e o seu património mais nobre e dependendo de defensores que sabem de cultura de cereais, mas não necessariamente de bens culturais, torna-se difícil não depender dos produtores de alimentos para proteger uma maneira de comer e viver. O que, convenhamos, é pouco, muito pouco mesmo, para um país que faz do turismo uma forma de estar na vida, ou seja, um estilo de vida.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico