Seria a Terra redonda em 1500?
O mais antigo episódio histórico que ilustra a relevância técnica e estratégica da curvatura e do tamanho da Terra é a proposta apresentada por Cristóvão Colombo aos reis católicos de Espanha, em 1486, de chegar à Índia navegando para ocidente.
Sabe-se que a Terra é redonda desde a antiguidade. Os gregos, não só reconheceram a forma esférica da Terra desde, pelo menos, o século III a.C., mas também fizeram várias estimativas do seu tamanho. A mais antiga referência que conhecemos é de Arquimedes (287 – 212 a.C.), segundo o qual o perímetro da Terra pode ser estimado através da distância entre dois lugares situados no mesmo meridiano e da respectiva diferença de latitudes.
Mas a mais célebre determinação foi a realizada pelo geógrafo Eratóstenes (276-196 a.C.), que terá comparado a inclinação dos raios solares ao meio-dia, em dois lugares situados no mesmo meridiano para, juntamente com a distância entre eles, deduzir o valor do raio da Terra. O princípio do processo, muito simples, é idêntico ao de Arquimedes e a exactidão do resultado só depende da qualidade das observações. Se dois lugares situados no mesmo meridiano estão à distância d entre si e têm uma diferença de latitudes α, então o perímetro da Terra é a quantidade p = d x (360°/α) e o seu raio será R = p/(2 π). Eratóstenes estimou o raio da Terra em 5000 estádios, valor considerado pelos historiadores como uma excelente aproximação. No entanto, para se saber quão próximo estaria do valor correcto seria necessário conhecer a medida do estádio utilizado, matéria ainda hoje objecto de discussão. Passados cerca de 300 anos, Ptolomeu de Alexandria escreveu o seu importante manual Geografia, onde não só a Terra é apresentada como uma esfera, mas também se mostra como a representar no plano, através das coordenadas geográficas dos seus lugares e de três projecções cartográficas criadas por si. Na época de Ptolomeu, o mundo conhecido era composto por três continentes – a Europa, a África e a Ásia – que ocupavam, segundo a Geografia, cerca de um quarto da superfície terrestre. Tudo o resto era desconhecido dos ocidentais e objecto de especulação. No entanto, a importância prática da forma da Terra era nula e a única razão que levava académicos como Ptolomeu a ocuparem-se da matéria era pura curiosidade intelectual.
Durante a Idade Média, grande parte do conhecimento geográfico dos antigos foi esquecido, incluindo o contributo de Ptolomeu. Contudo, e contrariamente ao que por vezes se supõe, o conhecimento sobre a redondeza da Terra foi preservado entre as pessoas cultas, e até ilustrado em iluminuras medievais. Tal não significa que o facto tivesse qualquer relevância para a vida do dia-a-dia. Nem mesmo quando as primeiras cartas náuticas foram construídas, em data incerta dos séculos XII ou XIII, a verdadeira forma da Terra foi tida em conta. Pelo contrário, essas cartas eram desenhadas transferindo directamente para o plano os rumos e as distâncias observados à superfície, ignorando que as medições tinham sido feitas sobre uma superfície esférica. Contudo, as distorções resultantes de tal processo eram pequenas, quando comparadas com os erros associados aos métodos de navegação então usados.
Mesmo depois do renascimento da cartografia científica europeia, durante o século XV, que se seguiu à redescoberta e tradução para latim da Geografia de Ptolomeu, as cartas náuticas continuaram a ser construídas como antes. Não devido à ignorância de pilotos e cartógrafos, mas porque esta solução era a que melhor se adequava aos métodos de navegação da época, ainda baseados em rumos da bússola e distâncias estimadas.
Com o advento das grandes viagens oceânicas, a partir de meados do século XV, iniciou-se uma lenta revolução na forma como o nosso planeta passou a ser imaginado, percorrido e representado. A relativa pequenez do Mediterrâneo e da Europa Ocidental deu lugar aos grandes espaços marítimos, nos quais a curvatura e tamanho da Terra assumiram relevância técnica e estratégica crítica. O mais antigo episódio histórico que ilustra tal relevância é, porventura, a proposta apresentada por Cristóvão Colombo aos reis católicos de Espanha, em 1486, de chegar à Índia navegando para ocidente.
Como sabemos, o usual caminho marítimo para a Índia, inaugurado por Vasco da Gama em 1497-99, estava interdito aos navegadores espanhóis pelos termos do Tratado de Tordesilhas. A alternativa seria navegar para ocidente, tirando partido da esfericidade da Terra e da sua assumida navigabilidade. Mas tal só seria viável se a distância a percorrer não fosse demasiado grande. Colombo lidou habilmente com o problema. Em vez de utilizar os modelos da Terra então conhecidos, cujas dimensões não favoreciam as suas teses, propôs uma Terra substancialmente menor, em que o caminho pelo ocidente parecia mais curto do que o caminho para oriente. Sabemos que Colombo se enganou: não só no tamanho da Terra, bastante superior ao esperado, mas também no facto de não ter alcançado a Índia. Tal não impediu que o fruto desse enorme engano, a descoberta do Novo Mundo, tivesse uma importância transcendente para a civilização ocidental.
Contemporâneo da primeira viagem de Colombo é o globo terrestre construído pelo comerciante e humanista alemão Martin Behaim, cerca de 1492, o mais antigo que chegou aos nossos dias, a que ele chamou Erdapfel (o mundo-maçã). Não tendo ainda conhecimento daquela viagem, Behaim representou o Atlântico de acordo com as convicções da época, isto é, com a Europa e África a oriente, e a China (Mangi) e o Japão (Cipangu) a ocidente.
Martin Behaim estabeleceu-se em Portugal a partir de 1484 e aí casou e permaneceu até à sua morte (1506), tendo participado numa das missões de exploração de Diogo Cão. O seu célebre globo foi construído quando se deslocou a Nuremberga, e estabelece a transição entre os conhecimentos clássico e moderno do mundo, tendo-se baseado numa grande multiplicidade de fontes, tradicionais e contemporâneas. O mapa-mundo construído em cerca de 1489 pelo seu compatriota Henricus Martellus Germanus, o qual já reflecte os resultados da viagem de exploração realizada por Bartolomeu Dias, em 1487-88, terá sido provavelmente uma dessas fontes.
Uma proposta semelhante à de Colombo foi apresentada por Fernão de Magalhães cerca de 25 anos mais tarde, ao rei Carlos I de Espanha. Fernão de Magalhães propunha-se alcançar as ilhas Molucas, fonte do valioso cravo, navegando mais uma vez para ocidente, e provar que estas ilhas se situavam no hemisfério espanhol. Tendo em conta que uma Terra pequena favorecia a sua tese, não é certamente por acaso que o tamanho do Pacífico tenha sido substancialmente encurtado no mapa que Magalhães terá usado para convencer o rei, o planisfério anónimo de Kunstmann IV (cerca de 1519). Hoje sabemos que os espanhóis não tinham razão na alegação de que as Molucas se situavam no seu hemisfério, embora fosse muito difícil de o provar naquela época.
Com o início das viagens oceânicas, as técnicas tradicionais de navegação, baseadas na estimação das distâncias percorridas, foram complementadas pelos novos métodos astronómicos, com que se passou a determinar a latitude no mar. Uma vez que esses métodos pressupunham uma Terra esférica, poderíamos pensar que tal conceito se reflectiu imediatamente na cartografia náutica. Mas não foi assim que aconteceu. Mais uma vez, não por ignorância de pilotos e cartógrafos, mas devido às limitações dos métodos de navegação, que ainda não permitiam a determinação da longitude no mar. Somente na segunda metade do século XVIII, quando o problema da longitude foi resolvido, foi possível ultrapassar aquele obstáculo e fazer reflectir plenamente nas cartas náuticas a redondeza da Terra. Por essa altura, já a projecção de Mercator, baseada nas latitudes e longitudes dos lugares, aguardava há quase 200 anos a adopção pelos navegadores. Mas essa é outra história fascinante para se contar depois!
Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História das Ciências e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação