Um canal televisivo com nome de advérbio latino exibiu, recentemente, o interrogatório judicial a um político com nome de filósofo grego. Calma. Antes que os leitores zarpem em sobressalto com as reverberações clássicas da frase, gostaria de fazer como os presidentes da República e apelar à serenidade; embora o tema seja do foro judicial, não exige um recuo ao Tribunal dos Heliastas ou à Lei das XII Tábuas. O caso é mais prosaico: uma reportagem jornalística foi acusada de degradar a Justiça ao nível dos reality shows. E isso dá que pensar: e se…?
Os mais versados na doutrina jurídica talvez conheçam a noção de “concurso de crimes”. Em traços gerais, entende-se por concurso de crimes a situação em que, do comportamento global imputado ao agente, resulte que uma ou várias acções preencham mais do que um tipo legal de crime, ou então preencham várias vezes o mesmo tipo legal de crime. Por exemplo, se um meliante arromba a porta de uma casa alheia com o intuito de furtar sorrateiramente um trem de cozinha, mas de caminho se depara com o proprietário e o mata à queima-roupa, há um concurso de crimes do primeiro género; se um atirador furtivo se empoleira no telhado de um prédio e dispara, várias vezes, sobre os transeuntes que circulam no passeio, causando-lhes a morte enquanto dança o fandango, há um concurso de crimes do segundo género (além de um gosto musical duvidoso). Porém, nada obsta a que se faça uma interpretação literal, no seu sentido corriqueiro, do conceito de concurso de crimes: findo o segredo de justiça, estaremos perante uma Casa dos Segredos de Justiça.
Do ponto de vista logístico, a ideia não levanta problemas: seja pelas câmaras de CCTV, seja pelas câmaras da CMTV, uma parte significativa dos crimes cometidos já são filmados. Suponha-se, então, que um ex-governante era detido, preventivamente, num estabelecimento prisional, vulgo “a Casa”; e que, instaladas câmaras no recinto, o quotidiano dos reclusos passaria a ser transmitido, 24 sobre 24 horas, num canal apropriado. Aos domingos, investida na função de procuradora, a apresentadora Teresa Guilherme trocadilhava: "Ó José S., você diz que o Carlos S. lhe dava o dinheiro em envelopes. Será que… afinal… você não quer é que o Carlos S. lhe abra o envelope? Ah, ah, ah!" No final, o público, como juiz, votava no seu preferido para abandonar “a Casa". Esse era absolvido, os outros eram condenados, e ficavam na “Casa”.
E deste concurso podem derivar outros spin-off, visando colmatar lacunas na programação generalista. Esta seguia, até há pouco, um padrão há muito sedimentado: as chamadas de valor acrescentado, as dançarinas esgargaladas a bater o dente, os relatos chorosos de dramas pungentes envolvendo filhas drogadas ou maridos que perderam um dedo na linha de montagem da Lisnave. Ultimamente, porém, estes “conteúdos”, como agora se diz, foram sendo substituídos por outros que atestam a curiosidade geral pelos meandros do crime, indo desde as crónicas criminais até aos testes de polígrafo (“Será que a Soraia roubou o colar de pérolas da mãe para comprar droga?”; “Será que o Amílcar traiu a mulher com um marinheiro transformista que conheceu nas Docas?”). E esta propensão divinatória pode ter sucedâneos. Porque não replicar o programa Preço Certo e desafiar os participantes a darem palpites sobre o número de anos de pena de prisão, ou sobre o montante das coimas aplicadas aos condenados? Ou aligeirar o processo penal e permitir a confissão da prática de crimes num formato idêntico ao velhinho Perdoa-me? Ou instituir um quiz show similar ao Quem Quer Ser Milionário? (o Quem Quer Ser Presidiário?), contendo perguntas sobre reclusos célebres e seus delitos?
Assim de repente, só se vislumbra um problema: dado que quem vê muita televisão já tende a presumir a culpa de todos os suspeitos, há uma grande probabilidade de Portugal inteiro acabar preso, como o político com nome de filósofo grego. Por falar nisso, o que será feito dele? As últimas notícias que vi davam conta de que iria estar presente num almoço que pretendia homenageá-lo. E eu não quero ser agoirento, mas o último banquete em honra de um Sócrates de que me lembro acabou com o anfitrião a tomar cicuta.