Os contornos éticos das pensões milionárias
Uma pensão pode ser milionária sem ser obscena e pode ser obscena sem ser milionária.
Foi recentemente divulgado que há vários anos o ex-banqueiro Jardim Gonçalves usufrui de uma pensão mensal de 165.000 euros e que, na sequência de uma decisão nesse sentido do Tribunal de Sintra, continuará a usufruir de tal pensão. A resposta à notícia foi de escândalo generalizado, tendo vários comentadores, como por exemplo Marques Mendes, notavelmente apelidado esta pensão de ‘obscena’, chegando mesmo a sugerir que Jardim Gonçalves devesse voluntariamente aceitar a sua redução.
Ora bem, não sendo sobre o caso desta pensão, em particular, este artigo de opinião não deixa de ter sido por ela motivado. Não é sobre este caso pois a pensão em causa está muito longe de ser uma pensão típica de um sistema público de segurança social e terá um número de idiossincrasias e especificidades que desconheço e muito sinceramente pouco interessam. Como tal, não pretendo pronunciar-me especificamente sobre o caso da pensão de Jardim Gonçalves. Uma pensão com esta dimensão, contudo, evoca sempre o fenómeno das pensões de valor muito elevado, chamemos-lhes pensões milionárias, que possam existir num sistema público de segurança social e faz-nos pensar sobre os seus contornos éticos. E, sobre estes casos de pensões milionárias, muito mais do que uma reacção emocional, por mais compreensível que seja, precisamos de fazer uma reflexão cuidada sobre como as entender – em termos éticos – e sobre as eventuais obrigações éticas de quem delas usufruem.
Comecemos com o primeiro ponto deste artigo, a questão do que deverá ser do meu ponto de vista a definição ética de uma pensão obscena. Eu considero obscena uma pensão pública que satisfaça duas condições. Primeiro, deverá ter um valor bem superior a um valor mínimo de sobrevivência, compatível com a nossa visão do que é a dignidade de todo e qualquer cidadão. Segundo, deverá ter um valor maior que o valor actualizado das contribuições feitas pelo beneficiário. Se estas duas condições forem satisfeitas, então teremos uma pensão pública entendida como ‘obscena’. Com a primeira condição, salvaguarda-se o caso de pensões de solidariedade social. Com a segunda define-se o que é obsceno.
As implicações práticas desta definição são importantes. Uma pensão não precisa de ser de 165.000 euros por mês para ser obscena. Pode ser de 3000 euros por mês e já o ser, desde que esteja acima do que o beneficiário na realidade contribuiu. Neste caso, representa um encargo para o país. Representa um benefício inaceitável para um, financiado por todos os contribuintes.
O ponto fundamental que aqui é feito é que uma pensão pode ser milionária sem ser obscena e pode ser obscena sem ser milionária. Para ilustrar este ponto, considere-se o seguinte exemplo usando valores aproximados. Consideremos um beneficiário que tem em termos de esperança média de vida dez anos de reforma a receber e que contribuiu para o sistema durante cinquenta anos. Suponhamos que este beneficiário recebe uma pensão pública de 165.000 por mês. Se durante os cinquenta anos de vida contributiva tiver contribuído em média 30.000 euros por mês para a segurança social esta pensão de 165.000 euros mensais será certamente milionária, mas não obscena. Isto porque é actuarialmente justa. Por outro lado, se a mesma pessoa usufruir de uma pensão mensal de apenas 1650 euros, mas as suas contribuições mensais forem em média inferiores a 300 euros então usufruirá de uma pensão que não sendo milionária é ainda assim obscena de acordo com esta definição. Não é actuarialmente justa.
Isto leva-nos directamente ao segundo ponto deste artigo. Qual é a obrigação ética de quem usufrui de uma pensão obscena assim definida independentemente de ser ou não milionária? A implicação é muito clara, deveria prescindir do remanescente entre o que usufruirá dada a sua esperança média de vida e o valor actuarialmente justo dada a sua carreira contributiva. Usando uma vez mais os exemplos numéricos acima apresentados, quem usufrui durante dez anos de uma pensão mensal de 165.000 euros, mas contribuiu durante cinquenta anos uma média de 30.000 euros por mês não tem obrigação moral de prescindir de nada. Por seu lado a mesma pessoa se receber 1650 por mês e ter contribuído menos de 300 por mês deveria prescindir do remanescente de modo a ter uma pensão em linha com as suas contribuições.
Claro está que estas considerações são manifestamente desconfortáveis e levantam questões inconvenientes. Como é possível um sistema ter pensões milionárias que não são obscenas? Como é possível um sistema ter pensões obscenas que não são milionárias? A resposta a esta segunda questão ficará para uma outra oportunidade.
A resposta à primeira questão sobre a existência de pensões milionárias que ainda assim não são obscenas está no conceito prevalente de que o sistema público de pensões deve ser o pilar principal do sistema de pensões em Portugal com a consequente subalternização de sistemas complementares público ou privados. Se quisermos olhar para a coisa de outro modo, o que torna possível estas situações de pensões milionárias que podem muito bem não ser obscenas é a não existência de um plafonamento das pensões. Ou seja, a não existência de um limite máximo na pensão que pode ser atribuída.
E se o plafonamento das pensões a receber pode não ser uma ideia controversa em muitos círculos políticos, a sua contrapartida necessária – o plafonamento das contribuições – certamente que o é. Mas repare-se que, a menos de políticas meramente confiscatórias, a oposição ao plafonamento das contribuições significa directamente um apoio à existência de pensões milionárias ainda que não necessariamente obscenas. Do meu ponto de vista, quem está contra o plafonamento não pode com completa coerência atacar pensões milionárias apenas porque são milionárias, mas apenas se e quando forem obscenas. E neste caso, deveria estar contra todas as pensões que são obscenas e não apenas as que, sendo obscenas, são também milionárias.
Afinal, o que tudo isto significa é que há muito a ponderar como sociedade civil sobre o modo como o nosso sistema de segurança social está desenhado. Isto mesmo para lá de questões da sua sustentabilidade financeira. Que sistema de segurança social queremos? Queremos mesmo um sistema que permita pensões milionárias obscenas? Queremos mesmo um sistema que permita pensões milionárias, mesmo não sendo obscenas? Como redesenhar o sistema para evitar estas situações claramente indesejáveis? Estas são apenas algumas das questões mais pertinentes.
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