O homem sonha. E o mundo vem pulando e avançando como a bola colorida nas mãos de uma criança. A questão é que as crianças são hoje nativos digitais e entre tablets, drones e outras recorrentes invenções tecnológicas, a já longínqua visão de separação entre o ser humano e a máquina começa a esbater-se em direcção ao que parece ser uma crescente relação de interdependência e simbiose precoce. E os primeiros passos, quer humanos, quer mecânicos, apontam no sentido de sublinhar a necessidade de antever o futuro de relacionamento e convivência num mundo onde as fronteiras entre realidade e digital começam a ser, também, dúcteis e maleáveis. É que é esta a angústia humana desde a “invenção da roda”: o medo autofágico, mas também antropocêntrico, que a cada nova descoberta, a cada novo passo e salto de fé no futuro tecnológico, estejamos mais perto da substituição do coração pelo parafuso (ou, de forma mais precisa, pelo chip?). E é esta também a realidade que transpira de décadas de produção literária e cinematográfica. Ao conceder capacidade sem alma ao mundo mecânico, o ser humano dita o seu próprio fim. Com este mundo mecanizado e mecanizável, tecnológico e robotizado, onde fica o direito daquela convivência?
O tema não é novo. Surge, amiúde, sob novas forma e vestes, latejando por entre as várias formas de produção humana, especialmente na sétima arte. Desde o HAL9000, ao desengonçado T-800 (aqui mercê da costela humana do actor que lhe dá vida), a representação da inteligência artificial (IA) tem vindo a ser corporizada na figura antagonista do robot, desprovido daquela alma, caricaturando-lhes os traços, afastando-os, nos comportamentos desviantes, do tipo humano. Diabolizando a máquina, beatificando o ser humano. A este propósito, lembro-me sempre das Três Leis da Robótica de Asimov. Embora a formulação possa funcionar como uma génese legal de abordagem ao problema de relacionamento humanos/robots, a verdade é que aqueles “founding principles” acusam o peso de 75 anos de elaboração (e previsão). Por um lado, a evolução acabou por não se coadunar exclusivamente com a visão da máquina como simples andróide, tendo havido uma multiplicação de vários tipos e formas de inteligência artificial que vão desde um espectro da matiz do drone militar até ao nanorobot cirúrgico. Por outro, essas leis partem do bias evidente que aquele relacionamento é (só pode ser) conflituoso. E, por fim, existem evidentes problemas de aplicação destes princípios que partem de um ponto de vista de racionalidade humana, e que fazem com que a sua apreensão por qualquer forma de IA esteja dependente paradoxalmente do seu desenvolvimento e evolução. Perante esta necessidade da também evolução legal para onde caminhamos?
O futuro está aqui. E se a discussão já gravitou na necessidade de construção de um guia ético para conformar a actuação de robots (robot ehtic charters, robot’s bill of rights, inter alia), o galopante desenvolvimento tecnológico acabou por extravasar as fronteiras da ficção. Existe um episódio particularmente mordaz de Black Mirror (Nosedive), já bastante badalado, em que os membros de uma sociedade distópica avaliam as suas contrapartes, estabelecendo uma espécie de status quo social baseado nesse sistema de avaliação. Mas quando se pensava que a qualidade desta série se acabava por situar no limbo daquele sentimento que resulta de cada episódio, e que é a proximidade alarmante da possibilidade de existência daquela(s) realidade(s), mas afastada pelo sentimento reconfortante que esse passo (ainda) não foi dado, surgem já indicações que alguns países tentam reproduzir este sistema de crédito social, globalmente como forma de coadunar a mobilidade e organização sociais, e, concretamente, como aferidor de perfil e de carácter dos seus indivíduos.
Isto para dizer que os desafios são enormes e, claro está, imprevisíveis. Mas o esforço de compreensão dos fenómenos pelo Direito faz com que este comece a optar por acompanhar, cum grano salis, estas novas realidades. O esforço tem que se desenvolver (leia-se concertar) em patamares complementares, por referência, também, à volatilidade de desenvolvimento do tema. Um primeiro vector que se conforma com o esforço de regulamentação já em desenvolvimento e que se relaciona, como vimos, com o tratamento jurídico das clouds, smartcities, blockchain, bitcoins, aplicações robóticas, etc. Um segundo vector que se relaciona com o inegável backlash de utilização da IA e gestão daquele medo supra-mencionado, minimizando-o com as devidas notas de ética e humanidade no âmbito das actividades sociais em que aquela seja utilizada. Um terceiro vector relacionado com a utilização da IA no trabalho, sendo que aqui, pelo óbvio interesse profissional, sublinha-se que existe já um número até elevado de ventures que tentam providenciar serviços jurídicos e que acabam por utilizar a vertente tecnológica para criar oportunidades tanto para clientes, como para os próprios advogados. Um quarto e último patamar relacionado com um vector de responsabilização da utilização desta IA em todas estas realidades. Neste último caso, é interessante referir, por e como exemplo, que será um desafio enquadrar a responsabilidade emergente de acidentes com utilização, ainda que em fase de testes, dos veículos com software de condução.
Elon Musk, o homem que colocou um roadster em órbita ao som de David Bowie, e, portanto, insuspeito nesta sede, desabafava que "I’m increasingly inclined to think that there should be some regulatory oversight (…) I mean with artificial intelligence we’re summoning the demon". E longe do medo cinematográfico, existe de facto a necessidade dos esforços legais acompanharem estas novas realidades. Temperando receios, assumindo desafios, criando oportunidades. Legislando para lá das máquinas. Com sensibilidade. Com alma.