A nova lei sobre a cannabis terapêutica, aprovada na sexta-feira, 15 de Junho, pode e deve ser celebrada como um símbolo do reconhecimento da Assembleia da República (AR) das potencialidades desta planta em múltiplas doenças. Mas infelizmente só pode mesmo ter um valor simbólico, pois os pormenores e idiossincrasias que encontramos no texto da lei tornam-na insuficiente para responder às necessidades de quem sofre com estas doenças.
O texto comum, encontrado após discussão com todos os partidos na Comissão de Saúde, é muito diferente dos textos inicialmente propostos pelo Bloco de Esquerda e pelo Partido Pessoas-Animais-Natureza. Ele elimina a possibilidade de o doente produzir a sua própria planta, autorizando no entanto que a indústria da cannabis a comercialize com preços definidos a seu bel-prazer. Não prevê comparticipação do Estado em nenhum destes produtos — e nós já temos em Portugal um derivado de cannabis autorizado no tratamento da Esclerose Múltipla que custa uns módicos 500 euros mensais… Já podemos imaginar o que aí virá com as restantes derivações da planta.
Mas há um detalhe nesta lei que é particularmente extraordinário: ela prevê que a prescrição de cannabis “apenas pode ser efectuada se (...) os tratamentos convencionais com medicamentos autorizados não estiverem a produzir os efeitos esperados”. Portanto, Portugal passa a ter uma lei que diz aos médicos em que momento e circunstâncias é que estes estão autorizados a tratar uma doença! Ora, limitar a utilização da cannabis a quem já tenha experimentado outras terapêuticas é ignorar várias realidades da prática médica:
- Existem, à partida, condições e indicações clínicas distintas que variam conforme a doença, o doente e a substância que utilizamos para tratar. Cada doente vive a doença de uma forma única, a intensidade e o tipo de sintomas mudam com os indivíduos e mesmo dentro do mesmo indivíduo mudam ao longo do tempo;
- Os doentes têm frequentemente outras doenças cumulativas, o que os pode colocar na situação de não serem elegíveis para outros fármacos que não a cannabis. Como ficam esses doentes? Vão ser obrigados a experimentar “primeiro” medicamentos que sabemos à partida ineficazes e/ou deletérios para poderem ter acesso à cannabis?
- Quantos medicamentos terão os médicos de prescrever antes de serem autorizados a utilizar a cannabis? Todos os que existem no mercado? Um por cada grupo farmacológico? Um por cada mecanismo de acção? Quem determina isso e quem fiscaliza?
- O tratamento da maioria dos sintomas ou patologias passa pela associação de medicamentos com mecanismos de acção diferentes, assim o é no tratamento da diabetes ou da hipertensão. Estando provada a eficácia dos canabinóides em muitas áreas da medicina, precisamente em associação com outros medicamentos, qual é o momento em que “falham” os convencionais e a associação com cannabis passa a ser legal?
Este texto comum da AR teve o contributo de discussões entre os deputados e profissionais de saúde, pelo que só posso concluir que algo falhou nesta relação. Terão sido os profissionais incompetentes na transmissão do seu conhecimento? Ou será que falou mais alto o oportunismo político de quem nunca quis esta lei?