O Museu das Ex-Descobertas
Parece que como o mar já existia, não descobrimos nada, e portanto não temos nada de que nos orgulhar nem lembrar no Museu das Descobertas. Eu pensava que sim.
Não sei como alguém teve a ideia de chamar Museu das Descobertas a um museu sobre as Descobertas, que parece que afinal não descobrimos, pois quem estava nos sítios que nós descobrimos já se tinha descoberto. Não é caso único. Lembro-me, quando se preparava o bicentenário da descoberta da América pelo Colombo, de ver na televisão um mexicano, loiro de olhos azuis, a dizer que a América não tinha sido descoberta, porque eles já estavam na América e por isso não precisavam de ser descobertos. Como chegaram loiros de olhos azuis ao México, antes do tonto do Colombo chegar à América, a pensar que tinha chegado à Índia, ele não explicou.
Mas não é por isso que acho mal chamar Museu das Descobertas ao Museu das Descobertas. É por razões comerciais. Como todos sabem, o dinheiro é o único valor, repito, único, da nossa sociedade. Ora, qualquer pessoa que por estes tempos mais quentes passeie por Lisboa verificará, facilmente, que Lisboa é um verdadeiro Museu das Descobertas ao ar livre. Ele há-as velhas, novas, altas, baixas, gordas, magras, loiras, morenas, ruivas, chinesas, italianas. Até portuguesas. Lisboa está cheia de descobertas fantásticas. Para que é que alguém, podendo ver as descobertas ao ar livre e sem pagar, há-de entrar num prédio e pagar bilhetes para ver descobertas? Só se for para apanhar um bocado de ar condicionado. Porém, se o ar condicionado estiver muito frio, as descobertas cobrem-se e o visitante, além de pagar, vê as descobertas cobertas, o que não tem graça nenhuma.
Acresce que aquilo que nós achamos que foi a nossa glória, a expansão, o encontro de outras terras, o cruzamento com outros povos e costumes, onde deixámos a nossa marca e trouxemos as deles, foi uma coisa horrenda pela qual temos de pedir desculpa. É verdade que andamos a cortar narizes pelo Índico, a bombardear inocentes, a impor a nossa fé e a traficar escravos. Mas, infelizmente, a normalidade da maior parte da vida da humanidade foi mais próxima do que hoje se passa na Síria do que na Suíça. A História mostra-nos que estropiar e matar gratuitamente era o desporto favorito da maioria das “ditas” civilizações de todos os quadrantes e de todas as religiões e que se tratava de façanhas laureadas e não condenadas. A escravatura é, e era, hedionda. Mas era praticada por todos os povos e nós tanto escravizávamos, como éramos escravizados. Fernão Mendes Pinto sete vezes foi cativo. E cativo queria dizer escravo, no tempo em que ele escreveu. E tudo isso ocorreu antes de haver o conceito de Direitos Humanos, ou mesmo de Direitos, e não faz sentido interpretar esses tempos, reconhecidamente bárbaros, à luz dos valores do nosso também bárbaro, e por isso mais repreensível, tempo.
O nosso passado esclavagista é vergonhoso e revoltante, sobretudo no período em que mantivemos o tráfico quando já era uma prática reprovável. Mas antes disso, como confirma o único relato existente de um escravo africano levado para os Estados Unidos, os escravos não eram capturados pelos europeus, mas pelas tribos africanas que os vendiam aos chamados negreiros. E não era melhor a sorte dos que não eram vendidos, como testemunham relatos da época.
Parece então que quando se descobre uma coisa, não se descobre, porque essa coisa já existia, embora nós não soubéssemos que ela existia. Ora eu pensava justamente que descobrir era encontrar o que não sabíamos que existia. Pensava que tínhamos descoberto a Madeira, que ninguém sabia que existia e onde não havia ninguém. Mas afinal havia as cagarras que descobriram a Madeira antes de nós. Como pensava que tínhamos descoberto o Brasil, que afinal já tinha sido descoberto pelos índios que lá viviam, que nos descobriram quando nos viram, pois não se davam com mais ninguém, e ainda hoje não devem ter descoberto porque lhes chamam índios, que são os povos da índia que o papalvo do Colombo pensava que era nas Caraíbas.
A Índia, essa sim, já sabíamos que existia e onde era, mas queríamos descobrir como se chegava lá por mar, porque não nos dávamos com os que estavam no caminho por terra, que não nos deixavam passar.
Agora parece que como o mar já existia, não descobrimos nada, e portanto não temos nada de que nos orgulhar nem lembrar no Museu das Descobertas. Eu pensava que sim, pois até historiadores estrangeiros, e todos sabem como é perfeito o tal estrangeiro, achavam ímpares os nossos extraordinários feitos, como o americano Boorstin, librarian da Biblioteca do Congresso, um dos mais prestigiados cargos do país, que considerou a saga da procura do caminho marítimo para a Índia como o primeiro empreendimento científico moderno, que marcou o Mundo para sempre, ou o inglês Toynbee, por muitos considerado o maior historiador do século XX, que dividia o mundo entre a época pré-gamica e pós-gamica, ou seja, antes e depois da viagem do Gama. Viagem que, como é óbvio, deu ao Ocidente cinco séculos de domínio do Mundo, que os Estados Unidos estão a destruir com afinco e os chineses, que sabem de História, querem marcar o termo com a simbólica viagem inversa da nova rota da seda. Mas é claro que o prestígio do Boorstin e de Toynbee caiu a pique em Portugal, por atribuírem mérito a Portugal e aos portugueses, o que é por cá muito mal visto.
Mas lá que andámos por todo o lado e por todo o lado deixámos monumentos, orações, comércio, tradições e comunidades com ligações a Portugal, da foz do Amazonas às ilhas das Flores, lá isso é verdade. Para não falar da língua, a quinta mais falada do Mundo, num país continente e em todos os continentes. Proeza só equiparável à das então três maiores potências europeias e sem paralelo em países da nossa dimensão. Fizemos o impossível. Por isso o melhor é chamar ao Museu das Descobertas Museu da Descoberta de Portugal. Porque só percebe Portugal quem conheça essa nossa História.