O país dos arquitectos na Bienal de Veneza
Com o Leão de Ouro atribuído a Souto de Moura, Portugal regressa vencedor da Bienal de Veneza. Prova-se que somos um país em que a arquitectura é uma actividade de excelência, apesar da troika, apesar da crise. Mas falta ainda um apoio mais claro do Estado na divulgação da arquitectura nos fóruns internacionais. Sem isso, é também difícil que os arquitectos portugueses entrem em territórios mais arriscados.
Freespace/Espaço Público é o título do Manifesto lançado pelas irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, do colectivo Grafton Architects, curadoras da 16ª edição da Bienal de Arquitectura de Veneza (até final de Novembro). Dos 71 arquitectos convidados para a exposição principal do Arsenale, três são portugueses: Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura e Inês Lobo. Foi deste grupo que saiu o Leão de Ouro atribuído a Souto de Moura a 26 de Maio com Vol de Jour, instalação composta por duas fotografias aéreas do projecto de reconversão em empreendimento turístico da antiga herdade de São Lourenço do Barrocal, da fotógrafa italiana Alessandra Chemolo.
Não são — para lá dos 12 projectos que compõem o Pavilhão de Portugal comissariado por Nuno Brandão Costa e Sérgio Mah no Palazzo Giustinian Lolin — os únicos portugueses na mostra oficial. Em The Practise of Teaching, convite dirigido a professores da escola de arquitectura da Accademia di Mendrisio, Suíça, também com curadoria das Grafton, os arquitectos Manuel e Francisco Aires Mateus (Aires Mateus) participam com a instalação Field, enquanto os arquitectos paisagistas João Gomes da Silva (Global) e João Nunes (PROAP) propõem Spazio Pubblico — continuità e fragilità.
Paulo Providência e novamente Siza mostram desenhos na sala comissariada por Elizabeth Hatz no Pavilhão Central do Giardini, onde se encontra a maioria dos pavilhões permanentes da Biennale.
Souto de Moura, prémio de carreira
Sofia von Ellrichshausen, a presidente do júri que deu o Leão de Ouro a Eduardo Souto de Moura, viu as três obras do arquitecto do Porto na Bienal. Além do Arsenale, onde estava o monte alentejano reconvertido em hotel que foi premiado, a chilena passou também pelos pavilhões de Portugal, em que Souto de Moura mostra uma estação de Metro em Nápoles (em parceria com Álvaro Siza e Tiago Figueiredo), e da Santa Sé, para onde construiu uma capela em pedra, ao lado de uma dezena de outros arquitectos internacionais.
Situado na ilha de San Giorgio Maggiore, na primeira vez em que a Santa Sé se fez representar em Veneza desde que a Bienal de Arquitectura começou a ser autónoma, em 1980, o pavilhão da igreja, Capelas do Vaticano, transformou-se no acontecimento mais mediático desta edição. Na conversa que teve com o PÚBLICO no dia da atribuição do Leão de Ouro, Sofia von Ellrichshausen recordou um pormenor que lhe chamara a atenção: o facto de as pedras do pequeno templo de Souto de Moura já terem musgo passados poucos dias. Ou seja, os dois projectos, a capela e o monte em São Lourenço do Barrocal, serão sobre a relação essencial “entre arquitectura, tempo e lugar”, como escreveu o júri a propósito da recuperação feita no Alentejo. Os dois projectos falam do interesse de Souto de Moura por uma arquitectura intemporal, com as subtilezas ou as pequenas ironias tão caras ao arquitecto. Se há o musgo verde na capela, como apontado por Sofia von Ellrichshausen, também há o novo no Alentejo que é quase melhor do que o original, a pedir que se ponha à porta de São Lourenço uma tabuleta a dizer “Fabricam-se antiguidades”, como ironizou o arquitecto no dia em que ganhou o prémio.
As duas fotografias aéreas com o antes e o depois no Alentejo, um oásis de simplicidade no meio da cacofonia da bienal, constroem outra das ironias de Souto de Moura. Espaço Livre, o tema escolhido pelas comissárias, é o que não falta em São Lourenço do Barrocal e o que também não ficou a faltar nos metros quadrados que Souto de Moura teve à sua disposição para apresentar o projecto no Arsenale.
Quem já conhece bem Eduardo Souto de Moura é a Bienal de Arquitectura, pois o português está pela sétima vez em Veneza desde 1985, ano em que participou com um projecto para uma ponte junto à Academia, edição que teve a direcção de Aldo Rossi. O Leão de Ouro para o projecto apresentado no Arsenale não deixa de ser, também, um prémio carreira e não foi por acaso que muitos dos arquitectos portugueses com quem falámos começaram por destacar a capela desenhada para o Pavilhão da Santa Sé como uma das melhores coisas que Souto de Moura tinha feito ultimamente. I.S.
O banco-anel de Inês Lobo
Perante a ambiguidade do desafio de Freespace e de um manifesto cheio de lugares-comuns (como “Freespace celebra a capacidade da arquitectura em encontrar, em cada projecto, uma generosidade adicional e inesperada...”), o escritório lisboeta de Inês Lobo respondeu com One bench, a free space for one hundred people. Trata-se do projecto de um espaço público construído na cidade italiana de Bergamo e inaugurado em 2015 que Inês Lobo escolheu entre as diversas encomendas públicas que o escritório tem realizado.
Não entrando em detalhes sobre o conceito que está na raiz do projecto, a peça apresenta-se como um elemento plástico e de forte carácter gráfico, enigmático até na citação que usa de Peter Brook: “Posso pegar em qualquer espaço vazio e chamar-lhe palco vazio...” É esse palco vazio que se representa de modo assombrosamente eficaz, através de um conjunto de peças dispostas de forma abstracta como fragmentos de maquetas. Comprova-se a centralidade que o trabalho de Inês Lobo tem vindo a assumir na arquitectura europeia.
Mas o banco da Piazza Marconi em Bergamo é mais do que o que se expõe. É um exemplo do modo como as cidades europeias (com economias ricas e em crescimento) têm usado a arquitectura no seu permanente desejo de qualificação e, porque não dizê-lo, de competição por novas atracções.
Tratava-se aqui de “neutralizar” uma construção recente que o município considerava uma operação falhada. Inês Lobo foi assim chamada a atenuar a presença de um desenho já implantado de um pavimento — através do mínimo de alterações e demolições —, o que fez de forma inteligente ao recorrer à introdução de um banco corrido seguindo uma geometria rígida e clara (a circunferência), montado a partir de elegantes peças pré-fabricadas de betão branco. É esse formato abstracto e puro o que se retém em Veneza. A.V.M.
Siza e o círculo como representação de liberdade
Recorrendo igualmente à circunferência como figura geométrica de implantação, Evasão, de Álvaro Siza, é o desenho de um vazio também circunscrito por um círculo. A simplicidade do dispositivo é aparente. A instalação compõe-se de três elementos em tensão: um banco em calcário veneziano, uma escultura em mármore de Estremoz, uma parede curva em gesso cartonado pintada de branco.
É desconcertante no modo como combina três materiais que, em arquitectura, pressupõem hierarquias diferentes de uso e de aplicação, na escala e na própria relação entre eles. Há uma aparente rudeza no tratamento dado ao muro em gesso cartonado em oposição à sofisticação de acabamentos tanto do banco como da escultura e que tem lançado alguma curiosidade quanto à sua execução. (Existem, por exemplo, imagens do arquitecto suíço Mario Botta inspeccionando a execução da peça, captadas nos dias que anteciparam a inauguração pública da Biennale).
Siza joga aqui a sua veia mais escultórica, desenhando um dispositivo que, contudo, alude quer a funções de convivialidade quer de contemplação, como uma “escultura habitada”. Trata-se de celebrar o lado mais objectual da arquitectura através de uma peça que explora a fronteira entre a arquitectura e a escultura e onde, a exemplo dos velhos artistas do século XX, a chave está no título. Ao contrário do banco de Inês Lobo que se mostra de forma abstracta — iludindo qualquer realismo ou funcionalidade — Siza dá existência real e arquitectónica a uma peça conceptualmente abstracta. A.V.M.
A experiência bug de Aires Mateus
Uma imersão num mundo sensorial é a proposta de Field dos irmãos Aires Mateus para a secção The Practise of Teaching, partilhada por mais 12 professores da Accademia di Mendrisio, a convite da dupla Farrell/McNamara, que é também a instituição onde as curadoras ensinam.
A peça desenhada pelos portugueses em aço pintado de preto está elevada do chão e, exteriormente, aparenta uma volumetria disforme, um bug. Colocada a cabeça dentro da peça, após subir a um plinto, o visitante alheia-se do Arsenale e vislumbra paisagens que os autores têm descrito como “oníricas”. Propõe-se uma experiência de luz, cheiro e som (existe um botão que acciona uma caixa de música que se ouve dentro do dispositivo). Os arquitectos pediram aos seus alunos da escola suíça para produzirem algumas soluções, mas na verdade aproveitaram a oportunidade do convite para estarem em Veneza e exporem parte dos domínios da realidade que têm vindo a explorar nos projectos que chegam ao escritório.
A pesquisa de desenho passa por trabalhar diferentes matérias — texturas, sonoridades, aromas, luminosidades — e é isso que pretendem recriar em Field, transformando o visitante num fruidor de “um breve momento de concentração, silêncio e beleza” — como escreveram a propósito da sua instalação —, uma excepção em eventos deste tipo. Ao exigirem tempos de maior abstracção, também correm mais riscos, demonstrando outro nível de ambição, mais em linha com outras práticas internacionais, distanciando-se do que habitualmente se associa aos representantes nacionais. A.V.M.
O espaço líquido de João Nunes e Gomes da Silva
Nesta secção dedicada à relação entre o trabalho desenvolvido nos ateliers e o ensino, estão também os arquitectos paisagistas João Gomes da Silva (atelier Global) e João Nunes (atelier PROAP), igualmente professores em Mendrisio. Numa proposta intitulada Espaço Público — Continuidade e Fragilidade, os alunos partiram da ideia de que os oceanos e os mares têm um papel predominante no espaço público que se constrói à escala global. Em Veneza, na cidade líquida por excelência, debruçaram-se sobre um projecto para a ilha da Certosa (Cartuxa), que fica no meio da laguna em frente ao Arsenale, investigando o espaço público na sua fronteira entre água e terra, entre líquido e sólido, e potenciando-o muito além da ideia de rua, praça e “campo”, este último um espaço tipicamente veneziano. O exercício parte da hipótese de construir um grande parque público, uma marina e um hotel, integrando os vestígios da Cartuxa e da instalação militar do tempo de Napoleão. I.S.
Siza e Paulo Providência na sala de desenho
Siza encontra-se igualmente na mostra oficial através de um grupo de desenhos do conjunto residencial da Bouça, Porto, que integra Line, Light, Locus de Elizabeth Hatz. A curadoria partiu da colecção Drawing Matter, a instituição que adquiriu a instalação que o arquitecto do Porto montou em 2014 no pátio da Royal Academy em Londres para a exposição Sensing Spaces: Architecture Reimagined e que pode ser colocada na mesma série da de Evasão, ao tratar de forma escultórica alguns dos temas mais arcaicos da arquitectura. Os desenhos incluem a parede que Hatz identificou como Ground Floor, e onde, segundo a sua descrição, os desenhos de menores dimensões — como os de Siza — “proporcionam mais íntimos e prolongados encontros”.
A mesma secção alberga ainda uma planta e um corte do Lavadouro e Balneário de S. Nicolau, também na cidade do Porto, desenhos de 1991 de Paulo Providência. Trata-se de registos da fase de projecto de execução, uma raridade entre as opções presentes nesta sala dedicada ao desenho de arquitectura, onde o desenho livre (de preferência a carvão) domina. Os desenhos de Providência representam um tempo em que o desenho rigoroso e técnico saía ainda das mãos dos arquitectos (e dos desenhadores) e não de programas gráficos de computadores. Na sala, curiosamente, a sua aparência é quase a de um artefacto remoto. A.V.M.
Pavilhão de Portugal: uma grande nação de arquitectura?
Entre os 63 pavilhões nacionais representados na bienal, a revista de arquitectura Domus pôs o pavilhão português nos cinco a não perder. A publicação italiana começa por notar que Portugal é “das poucas grandes nações europeias” a não dispor de pavilhão próprio nos Giardini, onde se concentram as representações nacionais. E sem querermos empolar nem o significado da escolha, nem a curiosa associação de “grande nação” a “arquitectura portuguesa”, é preciso ainda sublinhar que a exposição Público sem Retórica, que mostra 12 obras construídas durante a década de crise (2007-2017), foi posta de pé em menos de seis meses pelos dois comissários Nuno Brandão Costa e Sérgio Mah. Um feito.
Resultado de um concurso por convites feito pela Direcção-Geral das Artes (DGArtes) que é preciso saudar porque significa um avanço em relação a práticas anteriores, não faz sentido, no entanto, que no final de Dezembro os resultados ainda não tivessem sido oficialmente anunciados para um pavilhão que tinha que inaugurar em Maio. Pelo meio, os comissários souberam ainda que a exposição iria ocupar um novo lugar, o Palácio Giustinian Lolin, sítio bem mais central do que no ano passado, mas com um layout diferente do espaço posto a concurso. A verdade é que por mais original e estimulante que seja o embrulho — e desta vez era a cidade construída pelos edifícios públicos e a defesa em contraciclo, como notou a Domus, do welfare state e do investimento público —, não é possível pensar com ambição em tão escasso período de tempo.
Sem que a DGArtes crie condições para que Portugal se possa apresentar como uma grande nação da arquitectura — passe o ridículo, ou não, da expressão — corremos o risco de estar quase sempre a fazer a mesma exposição, com mais Álvaro Siza ou menos Álvaro Siza, com mais filmes ou menos filmes, a da arquitectura portuguesa como um lugar de resistência.
No Pavilhão do Brasil, por exemplo, que recebeu 289 candidaturas num concurso aberto, é possível encontrar ao lado dos 17 projectos seleccionados mapas que mostram as transformações territoriais do Brasil em diferentes escalas, do globo ao edifício, ao muro. E num deles, em que se explora a abertura das várias regiões do país aos imigrantes, um tema tão actual, descobrimos que entre 2000 e 2016 chegaram 36.225 portugueses, alguns deles resultado dos tais anos da troika que delapidaram a arquitectura portuguesa.
À imagem do Pavilhão do Brasil, interrogamo-nos se a exposição Público sem Retórica não poderia ter apostado também numa contextualização da encomenda pública portuguesa na década da crise que não deixasse o retrato quase todo nas mãos da arquitectura. Qual o peso do programa Parque Escolar e das suas centenas de escolas? O que é que deixou de ser construído com a retórica da troika?
É pena que não haja dinheiro e tempo para fazer de uma bela exposição um excelente pavilhão, porque boa arquitectura não é o que nos falta. I.S.