A arte da retórica na Bienal de Arquitectura
Uma das propostas menos evidentes na relação com o tema Freespace foi a do pavilhão da Suíça, que acabou por ganhar o Leão de Ouro para a melhor participação nacional, com uma proposta que explora a percepção quotidiana da escala do espaço doméstico
A Bienal de Arquitectura de Veneza é um desafio à capacidade comunicativa dos arquitectos e dos seus agentes culturais. No meio da cacofonia, os arquitectos tentam comunicar as suas ideias e os seus argumentos através da produção de exposições, debates, catálogos e textos. O discurso é individual e colectivo, sobreposto e coincidente, ingénuo e pragmático, com posicionamentos e estratégias curatoriais para todos os gostos e feitios.
As exposições internacionais de arquitectura da Bienal de Veneza são férteis em exercícios retóricos, começando desde logo pelos títulos gerais em forma de slogan que marcam cada edição: desde o título A Presença do Passado da primeira edição da Exposição Internacional de Arquitectura da Bienal de Veneza, em 1980, sob a direcção de Paolo Portoghese, até ao Menos Estética, Mais Ética, da bienal de 2000 dirigida por Massimiliano Fuksas. A retórica, enquanto arte de comunicar um pensamento através de uma linguagem persuasiva e eloquente, tem na ironia uma das suas figuras de estilo mais interessantes, um artifício retórico complexo através do qual se pretende dar a entender precisamente o contrário do que se pensa. Associado a um certo tipo de humor, a ironia permite explorar as relações oblíquas entre um sentido mais literal e um sentido mais figurado.
Nesta 16.ª edição, com o tema Freespace/Espaço Livre proposto pelas curadoras irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara, podemos dizer que a ironia acabou por assumir um papel fundamental. Perante um tema tão amplo e livre, no qual as curadoras sublinharam a generosidade da capacidade dos arquitectos em criarem espaço público para além da encomenda original, as propostas dos pavilhões nacionais oscilaram entre as respostas mais directas e as menos evidentes. Curiosamente, as propostas marcadas por um vinco mais irónico foram as mais reconhecidas pelo júri, com a atribuição de prémios ou menções especiais.
Uma das propostas menos evidentes na relação com o tema Freespace foi a do pavilhão da Suíça, que acabou por ganhar o Leão de Ouro para a melhor participação nacional, com uma proposta que explora a percepção quotidiana da escala do espaço doméstico. Num exercício arquitectónico simultaneamente lúdico e metódico, o pavilhão helvético manipula espacialmente os elementos convencionais que compõem um apartamento, com o aumento e diminuição das dimensões standard das portas, puxadores, janelas, rodapés, pés-direitos, soalhos de parquet ou tomadas de electricidade. Os visitantes são então convidados a descobrir as diferentes escalas do pavilhão e a percorrer uma sucessão de espaços genéricos, de paredes brancas, através de portas gigantes e minúsculas, ao longo de corredores longos e apertados, numa experiência arquitectónica intensa e inesquecível. Com esta instalação, a proposta helvética pretendeu também, para além da vertente descontraída e bem-humorada, apresentar uma reflexão crítica em torno das soluções genéricas da habitação contemporânea que ironicamente dominam o imaginário imobiliário e arquitectónico actual, com os seus espaços vazios e uniformes pontuados por materialidades neutras.
Com uma menção especial atribuída pelo júri, o pavilhão britânico surpreendeu com a proposta Island do atelier Caruso St. John e do artista Marcus Taylor. O edifício neoclássico da Grã-Bretanha, localizado no topo de uma das principais alamedas dos Giardini, foi deixado vazio, num dramático freespace aberto à apropriação informal, reflexão e livre interpretação dos visitantes. No exterior do pavilhão, uma enorme estrutura em andaimes permite o acesso à cobertura através de umas escadas que nos elevam numa experiência única em torno da clarabóia central do edifício, até uma plataforma com uma vista inesperada sobre a laguna de Veneza e dos Giardini. Através da manipulação arquitectónica, num gesto eloquente, Island constrói e propõe um espaço-manifesto como resposta ao isolamento europeu imposto pelo Brexit.
A capela que Eduardo Souto de Moura desenhou para a representação do Vaticano também explora as contradições da encomenda. A construção de um edifício efémero no contexto dos seis meses da bienal, para depois ser transportado para uma das aldeias afectadas pelos terramotos em Itália, é subvertido com a utilização de grandes e pesadas pedras de calcário. A ironia do gesto, de construir um projecto efémero com pedra, teve o seu culminar com o cunho temporal do musgo assinalado pela presidente do júri, Sofia von Ellrichshausen. Podemos ainda identificar uma subtil ironia na radicalidade da proposta de Souto de Moura no Arsenale, com a apresentação das duas fotografias aéreas do complexo turístico de São Lourenço do Barrocal, que mereceu a atribuição do Leão de Ouro para a melhor participação da exposição Freespace. Num “gesto contra o folclore e o espectáculo”, Souto de Moura apresenta uma instalação que liberta o espaço (freespace) e obriga o visitante a deter-se nas fotografias, com tempo, e atenção ao detalhe.
Sem pavilhão nos Giardini nem no Arsenale, a representação portuguesa, comissariada por Nuno Brandão Costa e Sérgio Mah, apresenta-se no Palácio Giustinian Lolin, junto à Ponte da Academia, com uma exposição de 12 projectos de obra pública concluídos entre 2007 e 2017. Através do título Public Without Rhetoric, a exposição pretende contrariar o “discurso político e ideológico contra a obra pública, identificada como um mal e uma deriva despesista acessória e nefasta.” Nesse sentido, o pavilhão de Portugal procura responder ao tema do Freespace através de uma reflexão e chamada de atenção para a importância da intervenção do Estado no delineamento de novas obras públicas. Nas quatro salas do primeiro piso, de forma pragmática, cada um dos 12 projectos é apresentado através de uma planta, uma maquete e um conjunto de fotografias. E em baixo, no corredor que liga o pátio interior do palacete ao Canal Grande, são exibidos filmes sobre cada uma das obras seleccionadas, realizados por André Cepeda, Catarina Mourão, Nuno Cera e Salomé Lamas.
Com mais ou menos retórica, mais ou menos folclore, o espectáculo que Veneza nos proporciona de dois em dois anos continua a provocar o debate e a motivar a reflexão. É uma forma da própria arquitectura, nos seus vários campos e trincheiras, olhar-se no espelho e confrontar-se com os reflexos do seu próprio tempo.
Texto corrigido dia 11/7: onde se lê arquitecto Caruso St. John leia-se atelier Caruso St. John