Bullying sobre a democracia italiana
O falhado “golpe constitucional” de Matarella foi uma advertência sobre até onde certos poderes na União estão dispostos a ir.
“A minha preocupação e esperança é a de que nas próximas semanas os mercados, os títulos da dívida pública e a evolução da economia da Itália possam dar um sinal aos eleitores para não votarem nos partidos populistas de direita ou de esquerda.” Esta frase carregada de ameaças, que poderia ser atribuída a um banqueiro internacional, espumando de fúria e desdém em face da nova coligação eurocética italiana, foi proferida, nada menos, do que por Oettinger, membro da Comissão Europeia com o pelouro orçamental.
Tão soberba advertência, feita sintomaticamente por um comissário alemão, tendo sido duramente condenada pelos principais partidos italianos e, também, de forma tépida e tardia, pelos presidentes do Conselho, Comissão e Parlamento Europeus, reflete contudo o “ethos” do círculo do poder político e económico que dirige a União Europeia.
Democracia ao estilo Henry Ford. Para a elite burocrática do establishment executivo da União, apoiada nas lideranças aparelhísticas dos blocos socialista e democrata-cristão e nos grandes grupos financeiros, a Democracia nos Estados-membros deve assentar em três pressupostos: i) Os eleitores podem escolher o partido e o Governo do seu agrado desde que oriundo dos partidos do “mainstream” neo-federalista (Ford dizia que “o cliente pode escolher a cor do carro desde que esta seja o preto”); ii) No caso de vencerem partidos anti-federalistas, outras instituições dos Estados devem travar a posse do novo governo ou vetar candidatos a ministro visados como “personae non gratae” pelos poderes da União; iii) Se o novo Governo tomar posse, as agências de rating e os “mercados” devem fazer disparar os títulos da dívida pública e afundar a economia de modo a ensinar os eleitores a votarem, futuramente, nos partidos “politicamente corretos”.
Por muito menos, em razão de “blagues” marginais e politicamente incorretas em matéria de género ou orientação sexual, já foi travada a designação de diversos candidatos à Comissão Europeia. A razão pela qual Guenther Oettinger, que escarneceu dos eleitores de um Estado-membro fundador e parodiou o próprio conceito de Democracia, não foi liminarmente forçado à demissão deveu-se, apenas, ao facto de ter dito publicamente aquilo que o ziguezagueante eixo franco-alemão pensa, mas não tem a coragem de dizer. Definitivamente, na lógica aristotélica, o poder “aristocrático” da União deu um passo de gigante em direção à oligarquia, pondo em risco a democracia competitiva nos Estados-membros.
Matarella: uma comédia à italiana. Em face da oposição dos poderes informais da União ao governo eurocético de maioria absoluta entre a Liga Itália (direita radical) e o Cinco Estrelas (populistas do centro), o velho Presidente Matarella, uma notabilidade da Primeira República que ainda flutua no século XXI, decidiu vetar o nome do professor Savona para ministro da Economia, pois tinha ousado escrever há anos que a Itália teria de pensar num plano B caso tivesse que sair do euro. O resultado foi uma recusa do primeiro-ministro indigitado em formar Governo, apelos ao impeachment do Presidente e exigência de eleições antecipadas que, a crer nas sondagens, dariam aos dois partidos referidos, se aliados, 90% dos lugares nos círculos eleitorais maioritários. A liderança da União, que nunca levou a sério a democracia italiana, adora governos tecnocráticos de iniciativa presidencial. Matarella tentou criar um, mas este morreu no berço por falta de apoio parlamentar. A contragosto teve de ceder e acabar por deglutir um governo maioritário da Liga e do Cinco Estrelas com o estigmatizado professor Savona nos... Assuntos Europeus!
No plano constitucional, os poderes por detrás de Matarella não hesitaram em pressionar o Presidente a exorbitar as suas competências vetando um ministro. Pese o carimbo favorável a Matarella do habitual “clube” dos constitucionalistas de Florença, a mesma opinião não foi partilhada por incontornáveis “pesos pesados” do Direito Constitucional. Assim, Lorenza Carlassare e Valerio Onida sublinharam que o sistema político italiano não é presidencialista (ou semipresidencial) mas parlamentar e o Presidente empossa um Governo que não é seu mas sim da confiança do Parlamento. O Presidente, que não tem poderes de direção política, só poderia ter obstado à nomeação de um ministro proposto por uma maioria absoluta, por razões objetivas, como criminais ou de idoneidade pessoal e nunca por fundamentos políticos. O falhado “golpe constitucional” de Matarella acabou por ter um efeito de “boomerang”, mas foi uma advertência sobre até onde certos poderes na União, e as suas correias de transmissão, estão dispostos a ir, para travar os opositores ao seu projeto federalizante de pequenos passos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico