O momento dos Sessenta: nem apolíneo, nem dionisíaco
Devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudança social ou como sintomas de dinâmicas já em andamento? Ou devem ser tomados antes como um momento de reforço do conservadorismo, não de ruptura? São muitas as questões que ainda hoje se encontram por responder. As respostas, quaisquer que sejam, devem decorrer do estudo de contextos sociais e históricos específicos, não da celebração acrítica ou da crítica infundada.
Uma “geração expresso”?
Em Israel, os anos Sessenta foram marcados pela “Guerra dos Seis Dias”, não por expressões de protesto juvenil ou profundas transformações sociais. A geração que é invocada, ainda hoje, é a de 67, não a de 68. A guerra ocupa e agita a memória colectiva e o modo como os Sessenta são interrogados. Não são os aspectos frequentemente associados às dinâmicas transformadoras dos sixties que estão no centro dessa interrogação. Tanto ali como nos países árabes envolvidos mais directamente no conflito – Síria, Egipto e Jordânia –, a década foi marcada por outros acontecimentos e deixou outros legados. Mas, apesar disso, há certos aspectos comuns que podem ser identificados. Por exemplo, no que diz respeito a formas de criativa expressão política e cultural.
O acontecimento militar não deixou de motivar agendas pacifistas. Abie Nathan, conhecido activista israelita, falhou a missão de paz na sua viagem, não autorizada, ao Egipto em 1966, pilotando o seu avião Shalom 1 (“Paz 1”). Foi deportado por Nasser e preso à chegada a Israel. Não obstante, persistiu. Num país que apenas viu uma segunda estação de rádio ser permitida em 1960, fundou a rádio-pirata Voz da Paz em 1973, transmitindo desde o Navio da Paz, que comprou com a ajuda de John Lennon. Apenas deixou de transmitir a sua mistura de música pop com mensagens pacifistas, em árabe, hebraico e inglês, em 1993. Em 1977, organizou o enterro de brinquedos militares que previamente destruiu, alguns num programa de televisão. Terá gastado 4 mil dólares (3,4 mil euros) a comprá-los. Em 1978 iniciou a sua primeira greve de fome, em oposição aos colonatos israelitas. Ao longo dos anos, participou activamente no apoio a vítimas de guerra e desastres ambientais, do Biafra à Nicarágua.
Num outro sentido, o compromisso juvenil com o projecto sionista foi sendo objecto de questionamento crítico activo. O investimento na doutrinação dos jovens por parte das autoridades israelitas e as correspondentes expectativas de alinhamento ideológico e normativo, de forte cariz nacionalista, foram confrontados com vigor. A “geração expresso”, apodo de Arthur Koestler que Yizhar Smilanski, escritor e político israelita, colou depreciativamente aos jovens israelitas em 1960, não parecia responder aos mesmos incentivos. Para S. Yizhar (nom de plume) eles queriam algo “forte, rápido e barato”. O seu ataque aos “poetas da anexação” envolvia disputas literárias. Mas era muito mais que isso: era uma denúncia do aparente desinteresse pela defesa intransigente do colectivo “nacional”. Em 1961, por ocasião de dois encontros entre David Ben-Gurion e vários jovens intelectuais dos kibutz, entre os quais Amos Oz, o corte geracional no que dizia respeito à relação entre missão nacional e desenvolvimento pessoal era notório.
A “geração de 48”, a que participou na “guerra da independência”, era vista como não tendo sucessora à altura. Para Ben-Gurion, era preciso “dizer-lhes como é”. Mas a resposta, dada pelo historiador Muki Tsur, era clara: “Por vezes ignoramos o facto que uma sociedade com a sua própria vida, as suas experiências, os seus próprios desejos, está a emergir nesta terra”. Era preciso dar-lhe voz. Contudo, em 1967, outros clamores se ouviram, parecendo anunciar uma nova geração, capaz, finalmente, de honrar a de 1948.
Tal não impediu, claro, que expressões de descontentamento furassem o tom celebratório e vitorioso que predominava em Israel. A publicação do livro Siach Lochamim (“O sétimo dia”), três meses depois do fim da guerra, foi talvez o exemplo mais importante. Composto por inúmeros testemunhos de jovens, da “geração de 67”, reflectindo sobre os efeitos da guerra, o livro tornou-se um best-seller. Foi traduzido para várias línguas. Em 2015 tornou-se um documentário, que resultou de mais de 200 horas de gravações, Censored Voices. Ambos revelam o pulsar de uma sociedade em (relativa) transformação, marcada por inúmeras contradições, mas a dialogar, de modo crescente, com outros contextos.
Sim, os Beatles foram impedidos de visitar o país em 1965, por não corresponderem aos critérios artísticos e culturais vigentes. Mas, em 1966, o governo liderado por Levi Eshkol aboliu o regime de conscrição e organização militar que vigorava desde 1948. Movimentos políticos de contestação como o socialista Matzpen começavam a ter alguma projecção pública. 1968 viu o surgimento de um primeiro canal de televisão, ainda que controlado pelo governo. No mesmo ano, Hanoch Levin, um dos mais importantes poetas e encenadores israelitas dirigiu uma peça de cabaré em Telavive: You, I and the Next War. Esta ecoava Brecht, escarnecia do nacionalismo jingoísta e do ethos militarista e lamentava a glorificação da morte. Veiculava ainda uma contestação às orientações colectivistas predominantes. O individualismo era valorizado, em detrimento do sacrifício em nome de um destino colectivo futuro. Um ano mais tarde, Yaakov Rotblit escrevia o hino do movimento pacifista israelita, Shir LaShalom (“Uma canção para a paz”). Em 1971, emergia uma organização de protesto em Jerusalém intitulada Black Panthers, composta por imigrantes judeus de segunda-geração provenientes do Norte de África e do Médio-Oriente. Com óbvia inspiração transatlântica e com alguma capacidade de recrutamento e projecção pública, denunciava as dinâmicas de desigualdade sócio-económica, de notória raiz étnica, que atravessavam a sociedade israelita, condenando os judeus Mizrahim (ou “orientais”) a posições de subalternidade, sobretudo face aos Asquenazes.
Todos estes exemplos não significam, longe disso, o sucesso do movimento pacifista ou o gradual, mas imparável, efeito das energias transformadoras dos sixties ou de “68” na sociedade israelita. O pacifismo foi marginal. O feminismo também: as mulheres parecem ter tido um lugar residual nos movimentos de protesto de então. O questionamento do nacionalismo foi igualmente pouco saliente. A Nova Esquerda era olhada com enorme desconfiança. Nem os elogios de alguma esquerda aos kibutz era vista como aliciante. De facto, a mesma desconfiança era dirigida a todos os argumentários que propalavam qualquer espécie de comunitarismo: muita da juventude israelita lutava contra tendências colectivistas e privilegiava a realização pessoal. A fractura geracional foi, também, pouco significativa. Numa palavra: houve e não houve “1968” em Israel. Esta é a história a contar, uma que resiste a operações de simplificação histórica ou memorial.
“Auto-crítica depois da derrota”
Ressalvando as numerosas diferenças, análises semelhantes podem ser feitas a respeito do Egipto, dos territórios da Palestina, da Síria ou do Líbano. Inúmeras ambiguidades, consequências inesperadas ou improvisações podem ser identificadas. Vários realinhamentos ideológicos e políticos ocorreram, nem sempre de leitura clara. Todas estas dinâmicas foram em parte estimuladas pela guerra. Mas foram decerto condicionadas, e muito, por circunstâncias locais, algumas de longa gestação. Por exemplo, nestas sociedades, questões associadas às relações de género e à sexualidade emergiram com algum vigor no debate político, em parte em razão de tentativas de compreender o desfecho negativo de 1967. O caso do polémico livro de Sadiq Jalal al-Azm, Al-Nakd al-Dhati Ba’da al-Hazima (“Auto-crítica depois da derrota”), publicado no rescaldo do conflito (1968), é particularmente revelador.
O conflito criou um espaço de mobilização crítica considerável, que partilhava alguns tópicos comummente associados aos sixties de outras paragens. Sadiq Jalal al-Azm propunha visões secularistas e a igualdade de género como sendo fundamentais para a transformação significativa do “mundo árabe”. Ao mesmo tempo oferecia um diagnóstico crítico das causas da derrota (hazima). Os bloqueios vários das respectivas sociedades, a começar pela questão das mentalidades, eram, no seu entender, as verdadeiras causas da hazima. Não é de estranhar que, anos mais tarde, tenha sido um dos críticos mais ferozes do Orientalismo de Edward Said.
No Líbano, a “libertação sexual” acompanhou o retrocesso da moralidade conservadora, parcialmente decorrente da agenda modernizadora e secularizadora que, de modo diverso, percorria o “mundo árabe” nos sessenta e, de modo mais evidente, após 1967. Mais uma vez, o processo deveu mais aos efeitos do conflito do que propriamente à difusão de uma onda global de contestação. Mais, a dita “libertação” decorreu, em parte, à custa de uma degradação da condição da mulher, ainda presa numa sociedade patriarcal e de privilégio masculino.
A vincada desigualdade de género filtrou a mudança de valores, gerando consequências para alguns inesperadas, por muitos (homens) aproveitadas. Por vezes, a “libertação” de uns acarreta apenas a redefinição do que aprisiona outros. Essa mesma sociedade que, em razão das notórias dificuldades financeiras e dos persistentes condicionalismos religiosos e morais, não oferecia estruturas médicas capazes de responder ao acréscimo de abortos com um mínimo de condições. E, tal como no “ocidente”, ao contrário da vulgata que a romantiza ou a diaboliza, a “revolução sexual”, grande parte das vezes decorrente sobretudo de formas legalistas de “emancipação”, teve um impacto muito desigual, em função de diferentes universos sociais, culturais e económicos. Quem tinha acesso privilegiado às tecnologias contraceptivas? Quem as podia pagar?
Outras manifestações críticas ocorreram nestas sociedades, revelando a dificuldade em destrinçar o sentido de certos fenómenos sociais. A “geração Nakba”, na Palestina, foi questionada, de modo recorrente e crescentemente organizado. A criação da Frente Nacional para a Libertação da Palestina e da Frente Democrática para a Libertação da Palestina são apenas dois exemplos. Esta última teve os sírios Sadiq Jalal al-Azm e Saadallah Wannous como fundadores. Wannous, famoso dramaturgo, foi responsável pelo chamado teatro de politização, que visava torná-lo num instrumento de mudança social e política comprometido, resgatando-o, ao mesmo tempo, ao que considerava ser uma letargia criativa. Um pouco por toda a Síria (e o “mundo árabe”), o campo artístico foi afectado por novos olhares e vozes. O mesmo sucedeu com a multiplicação de tendências modernizadoras no campo político e social.
No Egipto, ao lado de revoltas estudantis, beneficiárias das consequências políticas da revolução de 1952 e depreciadoras da dimensão política e militar do envolvimento do país, a revista iconoclasta Galliri 68 (“Galeria 68”) congregava visões críticas, políticas e artísticas, em resposta, sobretudo, ao desfecho de 1967. Motivações políticas, artísticas, sexuais, estéticas, sociais, ideológicas, económicas e até pessoais interagiam. Não podem ser reduzidos nem à guerra, nem à apropriação linear de ventos externos de mudança. É a sua combinação variável e o seu contexto que contam.
Que significado tiveram os sessenta e 1968 para quem estava num dos campos de refugiados – por exemplo os de Wadi Dlails ou Baquar, na Jordânia – após o conflito de 1967? O que significou para os milhares de refugiados a visita de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beuavoir a Gaza, em Março de 1967? Que fizeram eles com termos como “alienação” ou “conflito de gerações”? Talvez as respostas a estas perguntas sejam bem mais importantes do que enclausurar a história dos sessenta entre o preto e o branco, ou entre leituras que neles tudo ou nada vêem. Entre a mitologia e a memorialização.
Os “sessenta” e o saber psiquiátrico
O que significaram os “sessentas” é uma pergunta que se pode colocar tendo por referencial múltiplas geografias e temas. Feita a pergunta a um “ocidental”, esta seria a década em que a psiquiatria se viu fundamentalmente abalada nos seus alicerces. Simbolizada pela aglomeração de pacientes em unidades de dimensões consideráveis e pela utilização de técnicas como a lobotomia e a aplicação de electro-choques, a psiquiatria viu a sua legitimidade posta em causa. Intelectuais como Michel Foucault ou praticantes como Ronald Laing forçaram o repensar profundo das noções de saúde e doença mental e do que era, de facto, o “normal”. Contribuíram para o que outro psiquiatra cunhou vagamente como anti-psiquiatria. Resultado de tendências várias de desconfiança em relação à obediência cega à autoridade, de combate à coerção e ao controlo, o movimento desenvolveu-se um pouco por todo o mundo “ocidental”.
Olhando para a icónica figura do hospício como um aparato de disciplina social, espelho de uma sociedade que visava, de forma insidiosa e rotineira, controlar não só a esfera pública como também a privada, figuras como Laing questionaram concepções estabelecidas sobre doenças como a esquizofrenia. Denunciaram os mecanismos de construção social que estavam associadas ao seu diagnóstico e ao seu putativo tratamento. Propuseram ainda hipóteses alternativas de lidar com o sofrimento psíquico. Livros como One Flew Over the Cuckoo's Nest (1962) de Ken Kesey (que participou em estudos governamentais envolvendo drogas alucinogénias) ou o relato do percurso biográfico da irmã de John F. Kennedy, que sofrera uma lobotomia que a deixaria institucionalizada para o resto da vida, são apenas dois exemplos de episódios que espelham os desafios que a psiquiatria enfrentou. Este é, em traços largos, um possível resumo da história da psiquiatria enquanto objecto de debate público nos anos sessenta. Ela promove uma ideia de ruptura e crítica de consensos vigentes. Mas esta é uma história incompleta.
Noutras latitudes, o questionamento da psiquiatria seguiu outros caminhos. Em 1961, a Primeira Conferência Psiquiátrica Pan-Africana decorreu em Abeokuta (Nigéria), tendo como um dos principais organizadores Thomas Adeoye Lambo. Lambo foi o primeiro nigeriano a receber formação em psiquiatria e, mais tarde, ocupou o cargo de director-geral adjunto da Organização Mundial da Saúde. A conferência visava olhar para o impacto das importantes transformações sociais e económicas que marcavam a generalidade do continente, resultado em parte dos esforços do colonialismo tardio, e prosseguido pelos Estados pós-coloniais, de “modernizar” as sociedades africanas.
Mas a descolonização plena era o que estava em jogo. Não se tratava apenas da criação de um novo hino e de uma nova bandeira. O trabalho dos chamados “etnopsiquiatras” coloniais tinha contribuído para o reforço de um conjunto de categorizações sobre a mente e a saúde mental dos africanos. Postulava que a esquizofrenia seria mais prevalecente entre os africanos dado o seu carácter “primitivo”, logo infantil. Entre estes, os chamados “destribalizados”, ou seja, os que tinham abandonado as suas comunidades “tradicionais”, constituíam um caso de particular preocupação. Situados num limbo entre “tradição” e “modernidade”, aparentavam ser presas fáceis. Em sentido contrário, a depressão, asseverava-se, era menos frequente em africanos por força do seu carácter pouco dado à auto-reflexividade. A explicação colonial para a situação mental dos “africanos” fundava-se numa crença da importância dos factores culturais face à saúde psíquica de grupos humanos diferenciados. O que Lambo e outros procuraram fazer foi abanar as bases deste princípio.
Por exemplo, o facto de nos poucos hospícios existentes na Nigéria colonial não haver praticamente espaço para tratamento – estes eram essencialmente espaços de repressão – fazia com que todos aqueles que tivessem um comportamento “desadequado” ou violento fossem classificados como esquizofrénicos. Eram esses que maioritariamente eram internados e, logo, entravam nas estatísticas, aumentando de forma extraordinária, e errada, as taxas de prevalência da esquizofrenia nas sociedades africanas. Ao mesmo tempo, dado que a depressão não apresentava necessariamente um perigo para a ordem pública, raramente era registada. Os dados coloniais a partir dos quais estes problemas eram interpretados eram mais que questionáveis. Lambo e outros procuraram “universalizar” a doença mental, negando uma especificidade africana. Através de estudos baseados numa psiquiatria transcultural, envolvendo casos das mais diversas partes do mundo, procuraram demonstrar que a doença mental era, e é, parte integrante da natureza humana, a sua incidência e prevalência não sendo essencialmente afectadas por factores raciais (culturais ou biológicos).
Mais do que debater a fiabilidade dos estudos feitos por estes psiquiatras nigerianos que, reforce-se, estavam plenamente integrados em redes transnacionais de especialistas, os seus esforços são uma importante janela para uma visão poliédrica sobre a forma como os anos 60 podem ou não ser pensados como época de ruptura, e sobre que tipo de ruptura.
“Depois de a década ter morrido, reemergiu de novo como religião”
Estes casos demostram vários aspectos fundamentais para a compreensão dos problemas que o estudo dos sixties e de 1968 suscitam, finalmente a ser interrogados com um módico de rigor. Através da inquirição de múltiplas fontes e não sobretudo ou apenas dos testemunhos dos diretamente envolvidos ou interessados na gestão do seu significado. As novas investigações lidam melhor com a espessa retórica política e ideológica, pública e publicitada, de então e de hoje. Como afirmou Gerry DeGroot, “depois da década ter morrido, reemergiu de novo como religião”. Os Sessentas têm sido mais rigorosamente contextualizados, por relação com processos históricos contemporâneos como as dinâmicas de emancipação do dito “terceiro mundo” ou a competição bipolar entre modelos de modernidade. As suas cronologias e principais manifestações têm sido revisitadas. Tornam mais fácil resistir à dramatização, glorificação, ou singularização do ano ou da década.
Alguns destes aspectos foram tratados, com originalidade e propriedade, por Arthur Marwick, no seu The Sixties. Cultural Revolution in Britain, France, Italy, and the United States, 1958-1974 (1998). Apesar do foco em dinâmicas culturais, arriscando com isso a parcial despolitização do período, o seu livro sublinhou dois aspectos importantes. Reiterou os benefícios da comparação, método correctivo de discursos de excepcionalidade, tão importantes na mitologização e memorialização enquanto instrumentos para formação e preservação de identidades sociopolíticas ou geracionais. Demonstrou ainda a necessidade de redefinição dos enquadramentos cronológico e social a partir dos quais a “revolução cultural” pode ser escrutinada.
Como a propósito da “libertação sexual” no Líbano, uma reflexão sobre as transformações culturais do período tem de interrogar todo o campo sociocultural, não apenas os espaços restritos da vanguarda ou das elites. Marwick perscruta o quotidiano de quatro sociedades, identifica temporalidades distintas, mobiliza diferentes observatórios sociais, aborda diversas práticas culturais. Transformou, de modo decisivo, o estudo dos sixties, chamando a atenção para a centralidade dos símbolos, rituais e performatividade do protesto, das estratégias comunicacionais, das disputas identitárias. Talvez tenha falhado na capacidade de alargar a análise a outros contextos que não os “ocidentais”, mas resgatou os sessenta da alta-cultura, da alta-política (mesmo a protagonizada por pretensos “subalternos”), do grande acontecimento. Mutações nas normas sociais e práticas culturais ou nos padrões de consumo foram tão ou mais decisivas na definição dos “longos sessenta”.
Indo um pouco mais longe: devem os sessenta e “1968” ser tomados como catalisadores de mudanças societais ou como sintomas de dinâmicas já em laboração? Ou, como alguns argumentam, um momento de intensificação conservadora? Ou devem ser antes escrutinados a partir do estudo do confronto político e social entre as forças da mudança e as do status quo? As respostas, quaisquer que sejam, decorrem necessariamente dos contextos sociais e históricos precisos sob análise.
Por exemplo, nos EUA, 1968 é também o ano da morte de Martin Luther King e de Robert Kennedy, ou do “cerco de Chicago”, que captou a atenção de Norman Mailer. Sucedendo a The Armies of the Night, que um ano antes se debruçara sobre o movimento contra a guerra no Vietname, o seu Miami and the Siege of Chicago lançava um olhar crítico sobre a sociedade, interpelando esta a partir do rico observatório das convenções democratas e republicanas no Verão de 1968. E a década começou com a criação da Young Americans for Freedom, vincadamente conservadora, guiada pelos princípios consagrados pelo Sharon Statement, lavrados em casa de William F. Buckley em 1960. Buckley, cuja fulgurante projecção pública muito deveu à série de confrontações televisivas e literárias com Gore Vidal, popularizou a combinação entre conservadorismo social, liberalismo económico e anti-comunismo que pautaria o pensamento republicano até aos anos 80. Da África do Sul à Grécia, a repressão foi a norma, não a excepção. No plano da sexualidade, os motins do Stonewall Inn (1969), em Greenwich Village, Nova Iorque, foram um evento relevante na demorada conquista de direitos civis e sexuais pela comunidade homossexual. Mas o seu impacto não foi imediato. Não beneficiou todos igualmente. E muito menos foi global.
Mesmo se nos ativermos aos grupos sociais normalmente enunciados como sendo as forças motrizes dos sixties, como as mulheres e os estudantes, reconsiderações e matizações talvez sejam necessárias. Como interpretar, por exemplo, o poderoso movimento de mulheres que surgiu no Brasil no início dos anos 60 tendo por fim contestar o governo reformista de João Goulart? Movimentos como a Campanha da Mulher pela Democracia multiplicaram-se um pouco por todo o Brasil, tendo por padrão partilhado a participação política de mulheres que se apresentavam como cristãs, como mães de família, e da nação, ou seja, reforçando papéis de género conservadores, contra o ateísmo comunista. Poucos dias antes do golpe de 1964, uma série destas organizações, de São Paulo a Curitiba, convocou uma poderosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, descentralizada, agrupando centenas de milhares de mulheres que protestavam contra o governo. Construíram as suas próprias redes transnacionais de protesto. Em 1967, realizaram o I Congresso Sul-Americano da Mulher pela Democracia, no Rio de Janeiro. Gravações, panfletos e técnicas usadas pelas activistas brasileiras foram partilhados com as suas congéneres chilenas, que lhes deram bom uso, como é sabido, nas manifestações contra Salvador Allende, mais tarde.
E que dizer da Frente de Acção de Estudantes Anti-Comunista da Indonésia que preparou o terreno para a repressão brutal (meio milhão de mortos) que se seguiu à tentativa de golpe de 1965? Antes, envolveram-se em rixas contra o poderoso Partido Comunista da Indonésia, ao mesmo tempo que levavam a cabo iniciativas que visavam boicotar produtos culturais estrangeiros. Depois, prestaram-se não poucas vezes ao trabalho sujo de repressão que os militares lhes delegavam.
Donde, só se pode concluir que reduzir a década à iniciativa de uns ou de outros é miopia. Compreender as tensas e por vezes ambivalentes relações entre o poder estabelecido, qualquer que ele fosse, mais ou menos conservador, e as forças de contestação e protesto tem-se tornado um ponto central na literatura. Mais, de que modo causas globais (como o movimento contra a guerra no Vietname) se articularam com reivindicações mais específicas, relativas a dissensões locais, com uma outra história e significado? Ou, ainda, como é que dinâmicas locais se apropriaram, negociaram o sentido prático, deram uso instrumental aos ventos de mudança do exterior?
As respostas as estas questões mostrarão certamente a variedade de cronologias e dinâmicas de contestação ou preservação de uma dada “ordem social”. Relativizarão grandes narrativas e explicações supostamente claras. Dificultarão ainda a recorrência de perspectivas difusionistas. A tendência para homogeneizar dinâmicas de protesto político, cujas motivações e sentidos são frequentemente interpretadas como elementos de uma contestação global contra as sociedades capitalistas, tem de ser devidamente calibrada. A defesa de uma relação significativa óbvia entre acontecimentos importantes que ocorreram em 1968 – da “Primavera de Praga” ao “massacre de Tlatelolco” no México, passando pela afirmação do Black Consciousness Movement na África do Sul – tem que ser matizada.
O mesmo sucede com a consideração desse ano como o ano de todas as consumações: a sobrevalorização de acontecimentos, sobretudo os publicamente marcantes, impede a compreensão dos processos que lhes estão associados, ainda que menos visíveis. Até porque a memória, amiúde, sobrepõe-se à compreensão histórica do sentido e peso dos acontecimentos. Investigações recentes no Brasil, por exemplo, demonstram como o ano de 1968, marcado por importantes protestos estudantis (e que coincidiu com o endurecimento da ditadura através do Ato Institucional Número 5), foi inscrito na vaga de protestos globais desse ano, ainda que a importância dessas articulações tenha decorrido em grande parte de memórias construídas posteriormente e menos de uma experiência quotidiana de interacção transnacional. Em contraste, a recordação do papel das mulheres conservadoras na criação e consolidação da ditadura tem desaparecido parcialmente da memória, processo desde logo operado pelas próprias protagonistas.
Como escrevemos acima, a maior parte destes casos revela que é na compreensão da combinação variável entre ideias e repertórios de acção, de proveniência vária, que se encontra o desafio. A compreensão do modo como os tópicos dos sessenta foram globalizados e nacionalizados ao mesmo tempo requer outros instrumentos de análise.