Dois pesos e duas medidas
Não me recordo de António Costa alguma vez ter dito que o odioso tráfico transatlântico de escravos foi uma obra conjunta de portugueses e africanos.
Quando se debate o tráfico transatlântico de escravos — que foi, desde o início, o resultado de uma inter-relação voluntária entre chefes negros e comerciantes brancos —, há muitas pessoas que se esfalfam e se esfolam para tentar demonstrar que a culpa dessa barbaridade foi toda dos brancos, e dos portugueses, em primeiro lugar, pois, afirmam ou deixam subentendido, teria sido deles a iniciativa, a perversão, o engodo. Na visão dessas pessoas, os negros teriam sido vítimas inocentes e substancialmente passivas de uma pérfida engrenagem ocidental.
Mas assim que o foco da conversa deixa de estar na escravatura e passa a estar, por exemplo, na abertura dos mundos operada nos séculos XV e XVI, a perspectiva dessas pessoas roda 180 graus e os que antes acusavam os portugueses de terem tido toda a iniciativa, recusam agora o termo “Descobrimentos” porque, alegam, ele conferiria toda a iniciativa aos portugueses (e outros ocidentais). As pessoas de que falo preferem usar expressões e palavras como “encontro de culturas”, “interculturalidade” ou ainda não decidiram exactamente o que preferem. De qualquer forma, o ponto é que, quando se trata de evocar já não a escravatura, mas os aspectos benéficos do contacto dos povos, os que, nas coisas malignas, atribuíam toda a responsabilidade aos europeus, passam a querer demonstrar que os africanos e os asiáticos não foram nada passivos e tiveram importantes contributos nessa história. Há, até, quem sugira que, no século XV, com um pouco mais de persistência, os chineses que navegaram para ocidente teriam chegado até à Europa e feito o que os persistentes portugueses fizeram alguns anos mais tarde, navegando para oriente. Fica implícito que os Descobrimentos portugueses teriam sido apenas uma questão de alguma sorte e de good timing.
Em suma, no que toca aos aspectos negativos e cruéis da expansão, como é o caso do tráfico transatlântico de escravos, a iniciativa é exclusivamente dos portugueses (e outros povos ocidentais); no que toca aos aspectos benéficos, inventivos, geradores de aproximações entre os povos, a iniciativa é de todos e não pode de modo algum esquecer-se ou minorar-se o papel desempenhado pelos não-europeus. Por estranho que pareça, há muita gente a pensar assim. Ainda há dias, o primeiro-Ministro António Costa sentiu necessidade de afirmar, numa entrevista ao PÚBLICO, que “é preciso descolonizar os Descobrimentos (...). Porque esse processo histórico não foi unilateral — descobrimo-nos uns aos outros”. O que, em certo sentido, é verdade. Mas não me recordo de António Costa alguma vez ter dito que o odioso tráfico transatlântico de escravos foi uma obra conjunta de portugueses e africanos e o resultado de se terem descoberto uns aos outros.
Porquê dois pesos e duas medidas? De onde vem esta inclinação para atribuir o mal e a violência apenas aos europeus (portugueses, no caso) e querer à viva força dividir o bem, os avanços, os sucessos, por todos os envolvidos, incluindo aqueles que, no minuto antes, imaginávamos completamente passivos, inertes e crédulos como crianças? As palavras que explicam isso são “compensação” e “inclusão”, palavras cujas motivações políticas e ideológicas são óbvias. Por um lado, e à laia de compensação, procura-se dar aos descendentes dos militarmente mais fracos, dos vencidos, dos ocupados, o orgulho póstumo de terem tido uma participação activa nos mais importantes acontecimentos da história do mundo. Por outro lado, e uma vez que as actuais sociedades ocidentais se esforçam, e bem, por integrar toda a gente, venha de onde vier, tenha as convicções que tiver, há quem queira criar um reflexo retroactivo dessa integração, uma projecção disso, no passado. Ou seja, há quem queira pôr toda a gente nas fotografias mais risonhas da História — as fotografias antipáticas continuam a ficar exclusivamente para os brancos.
O método é simples: se no passado o papel dos antepassados do povo 'A' ou 'B' foi limitado ou pouco relevante num determinado processo histórico, os historiadores engagés de agora engrandecem-no, insuflam-no. Todavia, esse esforço de ampliação e de enchimento deforma as coisas a tal ponto que aquilo que começara por ser uma ideia voluntarista rapidamente se converte em farsa e em injustiça pela simples razão de que não cabe toda a gente nos degraus positivos da História. Houve abolição da escravatura? Dantes atribuía-se isso a pessoas como Wilberforce, Schoelcher, Lincoln e, à nossa pequena escala, Sá da Bandeira. Agora diz-se — erradamente, claro, mas diz-se — que foram os escravos que, com as suas rebeliões e resistências, forçaram os países ocidentais a abolir, e, em consequência, são os escravos revoltosos que tomam a primazia no processo e os abolicionistas brancos passam para a última fila ou desaparecem da imagem e da memória. Outro exemplo. Habituámo-nos, e muito adequadamente, a atribuir o 25 de Abril à revolta armada de capitães e outros oficiais portugueses. Agora diz-se que a responsabilidade primeira foi dos movimentos de libertação africanos que, através do combate e da resistência, levaram esses oficiais a fazer um golpe de Estado. Amílcar Cabral fica em primeiro plano, Salgueiro Maia esbate-se na terceira ou quarta fila e qualquer dia sairá de cena.
Ora, é preciso que os que foram protagonistas não sejam retirados da imagem nem fiquem nas filas de trás. Os Descobrimentos e a subsequente expansão deram-se porque houve gente que se meteu em navios e foi procurar mundo. Esta verdade simples e óbvia precisa de ser fortemente sublinhada, mil vezes se tal for preciso. Essa acção de ir procurar, enfrentar perigos e encontrar tem de ser assinalada e valorizada face a quem ficou estático no seu torrão. Quero com isto dizer que os portugueses são especiais, únicos? Nada disso. Todos os homens têm as potencialidades inerentes ao humano. Mas, por razões que a História explica, certos homens descobriram o caminho marítimo para a Índia enquanto outros permaneceram nas suas florestas tropicais, nas suas cidades ou nos seus desertos. Certas sociedades avançaram no sentido da complexidade e da sofisticação política e tecnológica — com tudo o que isso tem de bom e de mau —, enquanto outras rejeitaram esse caminho. Em teoria, todos teriam capacidade potencial para descobrir mares e continentes. Porém, o que é historicamente importante não é que todos os homens tenham potencialidades idênticas mas que apenas alguns as tenham exercido e desenvolvido de determinada maneira, o que, num mundo competitivo como é o nosso, lhes deu uma vantagem relativa crescente. Se o Ocidente dominou o mundo num determinado período tal não decorre de o homem branco ser superior ao de qualquer outra cor, mas sim do facto de ter havido entre os brancos desse período um fervilhar de iniciativas e de esforços, de acasos e de necessidades, que foi canalizado num certo sentido.
Essa é que é a verdadeira fotografia da História, uma fotografia onde não haja ampliações forçadas nem dois pesos e duas medidas. A História não tem de ser politicamente correcta. Tem apenas de ser História, isto é, uma narrativa de acontecimentos verdadeiros assente numa avaliação do passado feita com um só peso e uma só medida.