Bernard Lewis, o historiador que ressuscitou o "choque de civilizações", morreu aos 101 anos
Trabalho académico de Lewis alterou profundamente a visão do Ocidente relativamente ao Médio Oriente. Foi conselheiro de Dick Cheney (presidência de Geoege W. Bush) e defendia que, no Médio Oriente, só uma política funciona: "Ser duro".
Bernard Lewis, um eminente académico da História do Médio Oriente cujo trabalho alterou profundamente a visão do Ocidente relativamente àquela região – incluindo quanto aos receios de um “choque de civilizações” – mas que também teve críticos que consideravam as suas opiniões elitistas e que favoreciam as intervenções militares, morreu no dia 19 de Maio numa instituição de cuidados de assistência em Voorhees, New Jersey. Tinha 101 anos.
A morte foi confirmada pela sua parceira e muitas vezes co-autora, Buntzie Churchill, que não especificou as causas.
Os prolíficos estudos de Lewis – que incluem mais de 30 livros e centenas de artigos; sabia pelo menos uma dúzia de línguas – traçaram as linhas que definem o Médio Oriente moderno, como divisões sectárias, a ascensão dos islamitas radicais e de ditaduras, algumas apoiadas pelo Ocidente.
Ao longo da sua carreira, Lews obteve muitas vezes um ponto de vista privilegiado estando na região em momentos históricos durante uma vida que abrangeu a era de T. E. Lawrence, descobertas de petróleo na Arábia e a luta contra o Daesh.
Ele percorreu ruas e ruelas ao serviço da secreta britânica durante a II Guerra Mundial; tomou chá na cozinha de Golda Meir em homenagem ao seu fervoroso apoio a Israel; jantou com o Papa João Paulo II, e foi recebido no famoso Trono do Pavão do antigo xá do Irão.
Natural de Londres, Lewis construiu também uma reputação paralela que se estendeu muito além da academia. Reputação que o levou para junto de intermediários políticos em Washington depois da sua mudança para a Universidade de Princeton, em 1974.
Assim começou um período de trajectórias contrastantes, que se desenrolaram ao longo de décadas e que, em muitos aspectos, forjaram uma imagem respeitada por uns e denegrida por outros.
A amizade de Lewis – e a afinindade ideológica – ao falcão da Guerra Fria e apoiante de Israel, o senador Henry “Scoop” Jackson, abriu-lhe portas importantes em Washington, dando-lhe um estatuto privilegiado entre os principais estrategas da Casa Branca e do Pentágono antes da invasão ao Iraque, em 2003.
Ao mesmo tempo, a posição de Lewis estava debaixo do ataque de rivais na academia, especialmente durante as consequências políticas da guerra de 1973 que levou à derrota dos exércitos árabes na luta contra Israel. Lewis – que era judeu – tornou-se cada vez mais alvo de detractores que o ridicularizaram apresentando-o como a encarnação da arrogância ocidental e das tentativas do Ocidente de continuar a ser o irmão mais velho do Médio Oriente.
Mesmo a partir de meados dos anos de 1990, enquanto mantinha um ritmo surpreendente de escrita e de entrevistas, era frequentemente atacado devido aos seus laços com os arquitectos da invasão do Iraque, incluindo do então vice-presidente Dick Cheney e dois dos protegidos de Jackson, o vice-secretário da Defesa, Paulo Wolfowitz, e o conselheiro para a Segurança, Richard Perle.
Bernard Lewis não hesitava quanto à necessidade de os EUA terem políticas duras quanto ao Médio Oriente. "Sê duro ou sai", disse certa vez, uma síntese do que muitos consideraram a "Doutrina Lewis". Negou repetidamente ter apoiado a invasão do Iraque, afirmando que defendia uma maior ajuda aos aliados curdos do Norte do Iraque como contrapeso ao regime de Bagdad.
“Para alguns, sou um génio imponente”, disse Lewis em 2010 ao jornal Chronicle of Higher Education. “Para outros, sou a encarnação do diabo.”
Mas para muitos, o que se destacou, especialmente numa época de violência sem fronteiras, foi a premissa de Lewis sobre o inevitável conflito entre os mundos islâmico e ocidental – particularmente quando são os militantes islâmicos e outros grupos quem mais influência exerce nas regiões. Ele ressuscitou a sua frase “choque de civilizações” no artigo As raízes da raiva muçulmana, em 1990, dois anos antes de ser popularizada pelo professor de Harvard, Samuel Huntington.
Lewis argumentou mais tarde que os problemas do Médio Oriente eram na sua maioria auto-infligidos e não simplesmente doenças herdadas do colonialismo ou da ingerência externa. Elogiou o Islão como uma grande fé, mas afirmou que estava a ser sequestrada pela intolerância e pela raiva.
“Lewis deu estrutura intelectual à crença de que algo está muito errado nas sociedades árabes” e que o apoio dos EUA a Israel deve permanecer, disse Jacob Heilbrunn, autor do livro They Knew They Were Right: The Rise of the Neocons (Eles sabiam que tinham razão: a ascensão dos neoconservadores), à revista judaico-americana Moment, em 2011.
Além dos argumentos polarizadores para que foi arrastado, Lews era um homem de amplos apetites intelectuais.
Mergulhou em tópicos tão variados como a poesia mística sufi e as complexidades da lei islâmica. Passo a passo, criou um estilo que combinava a gravitas de professor, a sagacidade de um especialista e a confiança de um patrício, apesar de ter sido educado fora de Inglaterra como filho de um modesto mas bem-sucedido agente imobiliário judeu e de uma dona de casa.
E, como os seus temas e prosa, Lewis desafiou a definição fácil.
Foi, por vezes, um investigador académico, sendo um estudioso de volumes árabes antigos, folheando arquivos abandonados na Turquia. Mas mudava rapidamente para se tornar comentador de temas da actualidade, como a Irmandade Muçulmana do Egipto (“perigosa”), aspectos da marca salafista da Arábia Saudita (“extremista e fanática”) e a teocracia do Irão (“encoraja a resistência”).
Nos seus trabalhos – incluindo os bestsellers publicados depois do 11 de Setembro O Que Correu Mal (2002) e A Crise do Islão (2003) – Lewis cortejava cada vez mais uma audiência de massas. Tentou explicar os pontos de vista muçulmanos, mas também repreendeu líderes ocidentais por não compreenderem o alcance de grupos como a Al-Qaeda.
“Osama Bin Laden fez-me famoso”, gracejou uma vez.
O seu tom tornou-se mais sério nos anos seguintes, ao advertir que o Médio Oriente pode, cada vez mais, gerar radicalismo e fervor anti-ocidental. “Ou lhes trazemos liberdade ou eles destroem-nos”, escreveu no seu livro de 2010 Fé e Poder.
Batalha com Edward Said
Tais comentários foram achas na fogueira de uma das maiores disputas públicas da academia.
Outro mestre dos assuntos relacionais com o Médio Oriente, Edward Said (que morreu em 2003), descreveu Lewis como um vendedor ambulante de ditames da velha escola sobre a necessidade de uma mão pesada orientadora na região.
Said, professor de Humanidades na Universidade de Columbia, cujo livro de 1978 Orientalismo ajudou a estabelecer o campo académico de estudos pós-coloniais, descreveu Lewis como um “cientista político activo, lobista e propagandista”, num artigo publicado em 1982 na New York Review of Books.
Respondendo, Lewis acusou Said de cuspir uma “mistura repugnante de escárnio e difamação, insultos e insinuações”.
As opiniões de Said ganharam apoio principalmente nos círculos académicos, deixando Lewis ofuscado nos programas universitários. Mas ele não se rendeu. Em resposta à convicção de Said de que apenas os estudiosos árabes podem entender a mente árabe, Lews deu uma resposta amplamente citada: se os ocidentais não podem estudar outra cultura, só os peixes podem estudar biologia marinha.
Lewis resistiu também às críticas sobre a sua posição de que o massacre dos arménios iniciado em 1915 não atendeu à definição estrita de “genocídio”. Ele reconheceu a enorme perda de vidas entre os arménios no Império Otomano, mas insistiu que não existiam provas suficientes ligando-o directamente a ordens de governantes otomanos. As estimativas variam muito, mas entre 300 mil a 1,5 milhões de arménios morreram neste período.
Imad Salamey, professor de Ciência Polícia e Relações Internacionais da Universidade Americana em Beirute, no Líbano, disse que Lewis considerava o mundo árabe incapaz de se livrar do poder dos monarcas e homens fortes. “A maioria dos árabes não aceita esta perspectiva – de todo”, disse Salamey.
Lewis tinha muitos defensores, alguns dos quais citaram o artigo de 1976, O Regresso do Islão, onde previu com precisão a expansão do poder dos movimentos e militantes islamistas.
“O que quer que se pense sobre as políticas defendidas por Lewis – e ele realmente não era um fervoroso defensor da política – não pode ser negado que ele mapeou a trajectória do Médio Oriente actual com antecedência”, diz Martin Kramer, professor na Universidade Shalem em Jerusalém e antigo aluno de Lewis em Princeton.
Espião
Bernard Lewis nasceu no dia 31 de Maio de 1916, no auge da I Guerra Mundial, cujo desfecho incluiu um novo desenho no Médio Oriente a partir dos antigos territórios otomanos.
Aquando do seu bar mitzvah, ficou fascinado com História e línguas, pedindo para continuar com as suas aulas de hebraico. Já tinha aprendido latim e francês e aprendeu italiano com o pai, que era um admirador de ópera.
Conquistou um posto na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos na Universidade de Londres (SOAS, na sigla em inglês), alcançando o bacharelato em 1936 e o doutoramento três anos depois. Neste período, fez a sua primeira viagem ao Médio Oritente, chegando de barco a Alexandria, no Egipto.
Durante a II Guerra Mundal, Lewis foi convocado para uma unidade de tanques. “Não fiquei lá muito tempo”, disse sobre o corpo de blindados. “Fosse por causa da minha aptidão para idiomas ou pela minha inépcia com tanques”.
Foi transferido para as unidades de inteligência antes de ser destacado no Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Depois da guerra foi nomeado para presidir a um novo departamento dedicado ao Médio Oriente na SOAS.
Lewis deixou pouco tempo depois a SOAS para aceitar uma posição em Princeton. Adquiriu nacionalidade norte-americana em 1982.
Enquanto estava em Istambul, em 1950, foi-lhe concedido o seu primeiro grande privilégio: foi o primeiro ocidental a ter acesso aos arquivos otomanos.
A fundação do Estado de Israel, em 1948, rapidamente levantou barreiras noutros lugares. Os governos árabes ficaram profundamente desconfiados de todos os judeus, até mesmo dos ocidentais, e os vistos eram escassos, impedindo-o de investigar em primeira mão durante décadas em vários locais.
Ms isso não fez parar a sua caneta. Os Árabes na História (1950) e O Médio Oriente e o Ocidente (1964) ajudaram-no a consolidar uma posição académica. O seu livro publicado em 1961, O Surgimento da Turquia Moderna, é ainda considerado um padrão de excelência sobre o assunto.
Este ano, o Governo israelita nomeou Lewis um dos 70 “grandes americanos que contribuíram para a relação entre EUA e Israel” durante as cerimónias do 70.º aniversário do Estado israelita.
O seu casamento com Ruth Hélène Oppenhejm terminou em divórcio. Lewis tinha dois filhos, sete netos e três bisnetos.
Na década de 1970 – no meio da guerra civil no Líbano e da iminente revolução islâmica no Irão – Lewis voltou-se cada vez mais para o estudo sobre o islamismo militante.
Em 1986, quando chegou à idade obrigatória da reforma em Princeton, os 70 anos, tornou-se professor emérito.
No livro da consagração, Notas sobre um Século (2012), a sólida convicção de optimismo que tinha sobre o futuro do mundo árabe e a capacidade do Ocidente em estimular a reestruturação ficou abalada.
“O nosso dinheiro e o nosso armamento são bem vindos [no Médio Oriente], mas as nossas políticas e diplomacia não” disse Bernard Lewis ao jornal pan-árabe Asharq al-Awsat depois da publicação do livro”.
Com Hugh Naylor, em Beirute
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post