Um país entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser
A liderança do Nobel da Paz Juan Manuel Santos está perto do fim. A Colômbia vai a votos para escolher um novo Presidente da República a 27 de Maio. Procurámos o pulsar de um país a partir do Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias e da retrospectiva dedicada ao realizador que pôs o cinema latino-americano no mapa, o brasileiro Glauber Rocha.
Bogotá é como se fosse um espaço confinado a céu aberto onde tudo pode acontecer. A cidade encontra-se cercada por montanhas escarpadas, as da cordilheira oriental dos Andes, que funcionam como muros bem altos a delimitar a arena. Prédios de 30 andares de cor cinzenta ou castanha fazem paredes-meias com casebres construídos de tijolo sem reboco amontoados entre si sem intenção de forma ou ordem, meia dúzia de arranha-céus crescem ao lado de áreas habitacionais que são autênticas aldeias, as instalações de ponta do complexo universitário privado não têm problemas com a vista que dá para o bairro da lata. A vegetação é pungente, sempre à espera de oportunidade para irromper do asfalto ou do cimento e voltar a tomar o que sempre foi dela. Existem os resquícios da colonização, da escravatura e do indigenismo por todo o lado, nas pessoas, na arquitectura, nos comportamentos. O tempo, sempre igual, é uma espécie de iminência de Verão no Inverno — ou de Inverno no Verão.
O cinema tem esta coisa. Chegamos a um sítio e é como se já o conhecêssemos porque a sensação de familiaridade com aquele lugar foi-nos dada por algum filme que nos marcou. Pode acontecer com a chegada a Tóquio por causa dos filmes de Yasujiro Ozu (1903-1963) e dos planos de câmara colocados à altura do quotidiano doméstico dos japoneses, dos silêncios necessários à comunicação, da suspensão dos corpos como se fossem segurados por um fio. E pode acontecer com a chegada a Bogotá, uma cidade da América do Sul com dez milhões de habitantes, o equivalente a toda a população de Portugal.
Uma viagem de táxi desde o Parque dos Periodistas até ao Bairro Lisboa Norte para ir conhecer a família de um jornalista do jornal El Tiempo, cuja mãe é portuguesa, permite assistir a toda esta tragédia — no sentido grego, de tensão de opostos — a partir da janela do carro, como se fosse um ecrã que dá a ver tudo a partir de um único travelling. Aquela viagem de táxi permitiu perceber a importância, e a urgência, dos filmes-acção do brasileiro Glauber Rocha, a propósito da retrospectiva que lhe iria ser feita no FICCI — Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias, que decorreu entre 28 de Fevereiro e 6 de Março.
Nunca ter vindo à América do Sul é já ter vindo à América do Sul. Graças ao cinema de Glauber Rocha.
Um circo a céu aberto
A norte, na costa do Caribe, Cartagena das Índias é a quinta maior cidade da Colômbia. Se chegarmos durante a noite ao centro da cidade velha, delimitada por muralhas com cinco séculos, o táxi larga-nos no meio de um turbilhão. O espaço das ruas não é suficiente para tudo o que está a acontecer. Vive-se um atropelo constante: de turistas a passear a pé, de turistas a passear de charrete puxada a cavalo, de carros parados a empancar o trânsito e a polícia a apitar para apressá-los a avançar. Há vendedores ambulantes de fruta fresca, doçaria, águas, sumos, adaptadores de tomadas. Há apontamentos de festa um pouco por todo o lado, no terraço de um prédio, numa praça, nos bares. Ouve-se, durante toda a noite, batidas de tambores e apitos de cornetas. Chegamos e é como se chegássemos a um circo, onde todos os actores desempenham o seu papel.
Na sessão de abertura da 58.ª edição do FICCI, quando a directora artística do festival, Diana Bustamante, enumerou no seu discurso a programação do evento e referiu a retrospectiva sobre Glauber Rocha (1939-1981), ouviu-se uma ovação, com vários assobios entusiastas à mistura, na sala do Centro de Convenciones Julio César Turbay Ayala. No dia seguinte à tarde, a sala do centro comercial Multiplex Plaza Bocagrande — um edifício envidraçado de dentro do qual se vê o azul do mar a perder-se de vista — estava praticamente cheia para ver O Leão das Sete Cabeças (1970). Trata-se do primeiro filme feito durante o exílio do realizador assumidamente subversivo do regime de ditadura militar em que o Brasil vivia na altura e que é considerado o expoente máximo do Cinema Novo brasileiro. Rocha viria a realizar mais três longas-metragens, antes de morrer aos 42 anos vítima de septicemia. Passou os últimos meses da sua vida em Sintra, onde adoeceu, dizem que errante e cheio de tristeza e dor.
Metade dos espectadores de O Leão das Sete Cabeças eram jovens. O público do festival tem na sua larga maioria menos de 30 anos. “Tomei conhecimento do Glauber Rocha aqui no festival”, contou Gabriel Bocanegra, um estudante de 22 anos de Bogotá, alto, moreno, acabado de se licenciar em Estudos Literários. “Achei o filme interessante, algumas cenas são hilariantes. A intenção política é demasiado evidente, necessitava de ser mais subtil para ser mais eficaz.” Santiago Montoya veio também de Bogotá, mas já pela segunda vez. Com o cabelo louro e comprido atado como o dos samurais, Santiago tem 20 anos e é estudante na Escuela Nacional de Cine. “Li o manifesto Uma Estética da Fome [1965] do Glauber Rocha, que me serviu de introdução ao Cinema Novo brasileiro”, referiu. “Faz uma crítica aos [norte-]americanos, que roubavam aos sul-americanos. No filme, o paralelismo é o mesmo: os europeus que roubavam aos africanos.”
Rodado no então Congo-Brazzaville (hoje República do Congo), O Leão das Sete Cabeças é uma epopeia catártica sobre o colonialismo e começa com o grande plano de um peito de mulher, de pele branca. Umas mãos de homem, também brancas, começam a aparecer no enquadramento e pairam sobre os seios, num desejo incontrolável de lhes tocar. O plano abre e os corpos do homem e da mulher entregam-se de forma animalesca, espojados no chão do mato. A câmara movimenta-se à volta deles como se fosse o terceiro elemento necessário à orgia.
Na cena seguinte, vemos Jean-Pierre Léaud (1944), o Antoine Doinel dos filmes de François Truffaut, a subir uma montanha, vestido de branco. Um profeta errático, radicaliza os mandamentos da religião junto dos outros como veículo de purga da sua própria loucura. Há também o mercenário colonizador, que olha para a câmara e faz uma resenha pelas intenções de Lincoln, Lenine e Hitler; o mercenário branco que vem ajudar o povo africano à revolução; o líder africano que apela os congéneres à necessidade da luta e da libertação; e há ainda o presidente do país, um negro que se veste à Luís XV e faz discursos em cima de um carro descapotável ao som de três saxofones. A dada altura, o povo reúne-se em protesto e essa manifestação de rua é exaltada pela câmara em delírio de Glauber Rocha, que sobrevive sempre das tensões entre carne e espírito, fé e razão, opressor e oprimido. Num cartaz empunhado pelos manifestantes, pode ler-se: “Contra o paternalismo neocolonialista.” Glauber entendeu a essência do neocolonialismo: reside no olhar. Reside na forma como continuamos a ver o outro, a ocupar o lugar do outro e a insistir em considerar o outro “exótico”. O neocolonialismo resiste pela condescendência.
Durante a Guerra do Ultramar, os soldados portugueses destacados nas colónias portuguesas traziam muitas vezes fotografias suas a posar para a câmara, o olhar e o sorriso divididos entre o matreiro e o fascinado, e seguravam numa das mãos o seio de uma indígena demasiado descaído para os parâmetros ocidentais. Na Calle de Ayos, uma das artérias principais da cidade velha de Cartagena, repleta de casas de estilo colonial em obras de remodelação, uma jovem palenquera estava sentada na soleira de uma porta. Os palenqueros são oriundos de Palenque de São Basílio e as palenqueras usam vestidos e lenços na cabeça com cores muito vivas. Esta estava vestida com um fato novo, feito de largas faixas horizontais azuis, amarelas e vermelhas — as cores da bandeira colombiana. À semelhança dos artistas de rua, parecia estar disponível para tirar fotografias com os turistas, a troco de uma gratificação. A sua postura solene incluía um olhar vago de quem evita cruzar-se com olhos alheios. Um olhar de quem preferia não.
A violência e a beleza
“Dentro dos muros da cidade velha não se tem problemas, pode andar-se à vontade”, “dentro dos muros está-se seguro porque o Governo fez de Cartagena o porta-estandarte do turismo seguro no país”, “é só sair dos muros e é uma cidade muito perigosa e violenta”. Estas são as advertências mais comuns dadas a quem está de visita a Cartagena das Índias. Sair das muralhas só de táxi: o táxi leva, o táxi deixa à porta, o táxi traz. Com os taxistas, experienciamos a lógica da condescendência, vinda do lado de lá: a de que qualquer não local será mais endinheirado do que eles próprios e por isso podem dar elasticidade aos valores que cobram pelos seus serviços.
Durante o festival, e dentro de muros, encontramo-nos num viveiro que nos mantém protegidos das potenciais agruras do mar alto que é a violência. Apenas pequenos dispositivos nos vão lembrando da iminência dessa hostilidade. É o caso dos detectores de metais existentes à entrada das instituições abertas ao público. Quando passamos pelo edifício dos Despachos Judiciales de Cartagena — Cuartel del Fijo, na Carrera 5, o detector de metais está em primeiro plano e tem colada uma folha A4 com a fotografia de uma arma por cima da qual está desenhado um sinal vermelho de proibição.
“Somos um país violento”, disse Laura Mora numa conferência de imprensa do FICCI ligada a actividades académicas. Laura Mora é autora de Matar a Jésus (2017), um filme estreado no festival sobre uma jovem de Medellín cujo pai é assassinado, tal como foi, em 2002, o pai da própria realizadora. Laura referiu que uma vez, numa conversa em que participou, perguntou se por acaso também tinham assassinado o pai a alguém. Das 15 pessoas que estavam presentes, oito responderam que sim. “Ainda não falámos o suficiente sobre isso. Acho que por termos vergonha de o admitir perante o mundo. A violência e a beleza são as duas coisas mais democráticas que temos na Colômbia.”
A violência é a forma que o corpo encontra para expurgar toda a tensão que a miséria acumula, diz-nos Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). E veicula-se sob muitos pretextos, entre eles a religião. Deus e o Diabo… é o segundo filme realizado pelo brasileiro e é considerado um marco do Cinema Novo sul-americano. Foi exibido às dez da manhã de sábado no belíssimo Teatro Adolfo Mejía, na Plaza de la Merced; a sala estava composta. Manoel é um vaqueiro pobre caído em desgraça, e a fome, a injustiça e o desespero conduzem-no ao delírio. Encontra na fé o reduto último para a salvação, para o sentido de tanto sofrimento. Junta-se a uma seita religiosa, que profetiza o paraíso sob a forma de uma ilha, e depois a um lampião, uma espécie de Robin Hood do sertão chamado Corisco, que se encontra desviado dos seus propósitos mais nobres. Este lampião diz que Manoel é um anjo — este questiona-se porque é que não se pode fazer justiça sem derramar sangue — e rebaptiza-o como Satanás. As influências formais e estéticas da vanguarda soviética são claras neste filme a preto e branco: grandes planos de personagens a olhar para o vazio, o som emudecido; como se aquele momento de pausa servisse para interiorizarmos o que vemos.
“O filme mostra-nos uma violência que nasce a partir da religião. É a origem da violência também na Colômbia”, disse à saída David Suloaga, 21 anos, estudante de Filosofia em Bogotá, cabelo louro com rastas e olhos muito verdes, escondidos por detrás de óculos de massa de tartaruga. “Eu diria que o cinema do Glauber Rocha é muito importante, permite-nos olhar para nós mesmos, permite que nos vejamos ao espelho. Nós vivemos actualmente com a violência. Não é apenas uma memória.”
“Este país não vai mudar”
A Colômbia parece viver numa tensão constante entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser. Existem duas realidades opostas que traçam percursos paralelos na vida do país: a realidade do país de Terceiro Mundo e a realidade do país de Primeiro Mundo.
À saída da cidade velha de Cartagena, na direcção do mercado local, onde fica situado o centro comercial Multiplex Caribe Plaza, passa-se pela zona de Getsemaní através da Calle de la Media Luna. A imagem é a de um bairro igual ao da cidade velha, mas sem tratamento de Photoshop. As casas de estilo colonial estão velhas, a luz do sol parece baça e as ruas encontram-se vazias, à excepção de dois ou três vendedores ambulantes erráticos. O táxi passou pela igreja de Santa Cruz de la Popa, que tinha um cartaz à entrada a dizer “Oremos pelo fim do aborto”, e depois por uma zona habitacional de casas brancas geminadas, com pequenos jardins em frente. Cada rua tinha um portão no início, como se fossem pequenos condomínios.
“Não acredito nos políticos”, dizia o taxista durante o caminho, simpático e prestável, a assumir a atitude de um operador turístico, mas a explicar a situação política do país. Júnior España tem 34 anos e fez parte do Exército entre 1997 e 1999 que, juntamente com os paramilitares, “encurralaram, as FARC, graças à acção de pulso de Álvaro Uribe” Vélez, o Presidente que antecedeu o actual, Juan Manuel Santos. As FARC, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — Exército do Povo, são uma organização guerrilheira de inspiração marxista-leninista. “As eleições vão ser ganhas por [Gustavo] Petro. Os jovens gostam todos dele. Como é que é possível um homem que já foi guerrilheiro ir ocupar um cargo político?” Gustavo Petro fez parte de um movimento armado da esquerda intelectual da Colômbia, chamado M19, que surgiu no início dos anos 70. As sondagens colocam-no à frente, nas intenções de voto. “O problema é que este país tem uma mentalidade comunista revolucionária. Não vai mudar.”
As sessões do 58.º FICCI abriram sempre com o trailer promocional do festival. O vídeo estava ao nível do que está a ser feito pelas melhores agências criativas do mundo, tanto técnica como conceptualmente. A inspiração é clara: uma das primeiras cenas do filme A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha, que foi exibido no Caribe Plaza naquela tarde de domingo, dia 4 de Março. Uma estética tropicalista higienizada, vemos grandes planos de folhas de plantas e de flores, que formam uma mancha de verde-escuro sobre um fundo negro. As letras brancas são contornadas por uma mancha fina que lhes confere o efeito de lâmpadas acesas. Seguiu-se uma promoção à rede de distribuição de cinema junto das zonas mais carenciadas do país e uma outra ao Audiovisual Bogotá, uma plataforma de serviços que alicia produções estrangeiras a virem filmar para a Colômbia.
“Desconfiem das pessoas que não gostam de cinema.” Juan Manuel Santos cessa funções após as eleições de 27 de Maio, depois de dois mandatos de presidência da República. No discurso que fez na sessão de abertura do FICCI, aproveitou para enfatizar o legado que considera deixar ao país e realçou a importância do crescimento do turismo e do cinema. “Hoje, vemos que a paz segue o seu caminho — com dificuldades, com contratempos, mas sem se deter — e que as FARC são agora um partido político que procura nas praças e nas urnas o que costumava procurar através da violência e das armas”, referiu. “Alguns não gostam disso. Devo dizer que — e sei que muitos dos presentes me acompanham nesta convicção — nada me dá mais alegria do que ver o triunfo da democracia e da civilidade sobre a guerra e a barbárie.”
Para ver A Idade da Terra no Plaza, o filme derradeiro de Glauber Rocha e o mais polémico, a sala estava a dois terços. Uma influência do realizador italiano Pier Paolo Pasolini em termos formais e narrativos, a dança é — nas suas diversas manifestações ritualísticas — o fio condutor dos discursos dos políticos que se apresentam em campanha. Há o americano debochado, há o preto indígena, há o branco galã vestido de smoking — todos eles são animais políticos sedentos de sexo. A dada altura, o galã repete, várias vezes, para a sua audiência: “A independência, a proclamação da República, a abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até à morte. Mesmo quando eu exerço a violência.” Glauber Rocha faz questão de tornar visível o teatro das operações. Intercala ambientes reais com ambientes criados em estúdio, como é o caso de uma sala preta com uma mesa ao centro que tem em cima, dourada, uma árvore de Natal — aquela altura do ano em que decidimos suspender a maldade do mundo.
“A intenção daquela repetição é criar uma consciência”, disse, à saída da sessão, a estudante de cinema em Santa Marta, Keina Martinez, de 21 anos. “De tanto repetir, o espectador já sabe dizer também o discurso.” Muitas pessoas foram saindo da sala ao longo do filme, os espectadores ficaram reduzidos a um quinto. “Rocha representa muitas coisas que existem também na Colômbia: a corrupção, muitos políticos falsos, muitos lobos vestidos de ovelhas”, continuou Keina, os olhos castanho-escuros muito vivos. “O futuro da Colômbia está estancado pela política. Somos um país riquíssimo e só nos roubam. O Abraham do filme é o Trump”, disse por sua vez Erick Rodriguez, de 21 anos, estudante de Cinema também em Santa Marta. “As coisas vão mudar com Petro, obviamente. Acredito nele quando discursa. É muito inteligente. Não lhe sinto falsidade como vejo na cara de Santos, que não tem qualquer traço de humanidade”, contrapôs Keina, com o tipo de convicção própria da idade. “Não podemos ter medo da mudança.”
Reportagem feita no âmbito da Bolsa de Jornalismo Cultural da Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), em Cartagena das Índias, Colômbia.