Emprego científico: boas intenções e pecados fatais
O atual programa de “emprego científico” fundamenta-se numa boa intenção e incorre em quatro pecados fatais.
As instituições de ensino superior portuguesas são um fenómeno de resiliência e adaptação a condições hostis. Apesar da persistente instabilidade de um modelo de financiamento que nem acerta no orçamento do ano anterior, apesar da rigidez de um estatuto de carreira docente que induz envelhecimento e endogamia, apesar do assédio governamental que corrói as veleidades de autonomia estratégica, elas aí estão, a cumprir a sua missão com prestígio nacional e internacional.
Ao longo dos anos, o Estado investiu fortemente, e com sucesso, na criação de um tecido científico, sempre com algumas reservas mentais face às universidades e procurando manter uma barreira higiénica entre a ciência e a universidade.
O atual programa de “emprego científico” (que de decreto 57/2016 passou a lei 57/2017) é a iniciativa do momento. Fundamenta-se numa boa intenção e incorre em quatro pecados fatais.
A boa intenção é ir ao encontro dos legítimos anseios de uns milhares de bolseiros de pós-doutoramento por maior estabilidade de emprego. Depois de uns dois anos a criar expectativas, com esses milhares de bolseiros à beira de uma crise de nervos, é no mínimo uma questão de decência cumprir o prometido. Esta promessa decente é também o resultado de uma acumulação de erros passados e criará um disparate para o futuro.
Em primeiro lugar, a criação de um programa de “emprego” científico é um erro nos próprios termos. O que deveríamos procurar é um programa de “trabalho” científico. Se houver trabalho científico é bem capaz de haver emprego. Se não há trabalho, o emprego não deve durar muito. E o trabalho científico, numa sociedade moderna como a nossa, existe na sociedade e na economia, seja no setor público, seja no setor privado, em organizações e não na óptica da profissão liberal.
O setor privado aumenta a sua capacidade científica e tecnológica na medida da economia aberta que somos e acelerado por alguns incentivos públicos. O setor público, quando se fala de capacidade científica, não são as universidades. As universidades criam capacidade científica e intelectual através da investigação enquanto parceira do ensino. As universidades por si só não têm objectivos de base científica – como ir à Lua, ir à Índia por mar, inventar o telescópio, curar o cancro, acabar com os incêndios, mudar de energias, ensinar matemática a crianças, integrar imigrantes ou ganhar prémios Nobel da Literatura. Mais ainda, as universidades devem ser lugares de passagem e aceleração, não de fixação de mão-de-obra.
O setor público (que não universidades) está estagnado na sua capacidade científica e tecnológica. O desmantelamento da capacidade de I&D do Estado levou (Fonte: Pordata, Investimento em I&D por sector de execução) a valores risíveis para esse esforço de I&D (em %PIB e comparativamente). Temos provavelmente um dos Estados com menos inteligência do mundo, o que é decerto um fator de bloqueio ao desenvolvimento. Aí se deveria criar trabalho científico. Estranho é que nem um Governo inclinado à esquerda compreenda isto.
Em segundo lugar, este programa de emprego científico é mais uma etapa, porventura a final, de um esquema de pirâmide, tipo Ponzi ou, na versão nacional, Dona Branca. Nos anos 90 atribuiram-se bolsas de doutoramento. De 2000 em diante atribuiram-se bolsas de pós-doutoramento. Agora atribuem-se empregos. No entanto, Portugal doutora mais de 2000 pessoas por ano (2322 em 2015/16 – Fonte: DGEEC). Portugal tem cerca de 83% dos doutorados empregados no Ensino Superior (Fonte: DGEEC/Doutorados (CDH)). Este programa empregará, no final e na melhor das expetativas, uns 1000 a 2000. Conclusão, a bolha existe e rebentará a breve prazo. Apenas servirá para 2019 (!) e os “lesados” do programa serão os próximos, que já não terão lugar num sistema cristalizado e esgotado.
Em terceiro lugar, este programa de emprego científico perpetua a impotência da estratégia científica própria das universidades. Os futuros investigadores contratados são aqueles a quem a FCT, em tempos, atribuiu bolsas, num processo sempre exógeno à direção das universidades. A distribuição dos perfis científicos dos investigadores (p.e. Tecnologias, Ciências da Vida, Economia e Gestão, Ciências Sociais) não tem, intencionalmente, nada que ver com opções de desenvolvimento das instituições. Resulta da escassez ou fartura de emprego na economia e das anteriores boas intenções da FCT na distribuição de bolsas. Quando centenas ou milhares de concursos (públicos) são abertos para programas de investigação que se ajustam, cada um deles, a uma pessoa bem identificada, não é de crer que tenha ocorrido alguma escolha estratégica.
Finalmente, o programa de emprego científico prenuncia mais um problema de financiamento das universidades. Em termos teóricos, a FCT financiará os investigadores através de um contrato-programa. Mas quem gere universidades sabe que a probabilidade de isso acontecer é escassa e que o padrão não é esse. Há muitos anos, os investigadores do ex-INIC foram para as universidades – integraram os quadros. Há menos anos, investigadores de laboratórios de Estado (p.e. LNETI) foram para as universidades (o Governo pagava o extra) – integraram os quadros. Agora a FCT irá pagar (quando pagar) os custos dos contratos, para o ano o orçamento das universidades vai aumentar para acomodar estes custos (calha bem porque assim se poderá dizer que o orçamento do ES aumentou) – e nos anos seguintes, estes investigadores estão na folha de salários, para sempre, e os saldos que aguentem.
Em resumo, uma boa intenção e quatro pecados fatais levam-nos provavelmente ao inferno, um lugar que apesar de tudo é aprazível para quem está do lado bom. O lado mau é onde ficam as gerações futuras e os desperdícios em investimento não reprodutivo ditados por oportunidades políticas.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico