Janistroques

Vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

Aaron Mello/Unsplash
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Aurélio Moreira é copy editor no PÚBLICO. Aurélio é também o nome de um dicionário
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Aurélio Moreira é copy editor no PÚBLICO. Aurélio é também o nome de um dicionário

Neste convívio saboroso em que temos vivido – aqueles que se têm aproximado, por curiosidade, e eu, que os tenho desencaminhado – a partilha de palavras e histórias inter-relacionadas ou, com algum esforço, inter-relacionáveis, tem sido sempre como brisas agradáveis, como zéfiros, como virações de beijos que se sopram e que, por muito viajantes que sejam, encontram sempre quem os sinta como se fossem os seus únicos destinatários. Disso me têm dado notícia dezenas, por vezes centenas de almas nobres, d’aquém e d’além-mar, incluindo as Índias (índios, menos).

Não chega a ser espantoso o caso, se descontarmos o facto de eu não estar no negócio dos espectáculos musicais itinerantes, com letras, a um tempo, sugestivas de brejeirice muito engraçada e de pobreza de espírito muito acentuada, e com o apoio desleal de três ou quatro dançarinas avantajadas em trajos menores, que é arma capaz de rebentar com qualquer espectáculo concorrencial que decorra por perto, seja teatro, declamação de poesia, concerto de música de câmara, e que não se entende que não seja proscrita pela Convenção de Genebra.

Mas muito bem estamos todos quando o tema e o modo (convém não subestimar o modo…) se prestam a ser acompanhados por estrepitosas gargalhadas de alívio figadal, de tal modo conseguidas que amigos mais entusiastas me têm procurado convencer a enxertar retalhos destes textos uns nos outros até à duração de hora e meia e apresentar-me com esse serviço no Coliseu do Porto, metamorfoseado em comediante a solo ou solista de comédia. De acordo com a minha agente, é uma ideia que, por agora, devemos deixar “a marinar”. De acordo com o meu assessor de imagem, devemos aguardar pelo aparecimento de uma “vaga de fundo” que o justifique.

Caso muito diferente é levar os meus mais fiéis leitores a mergulhar em águas escuras e desconhecidas de um oceano glaciar e, depois de tudo isso, conservar a sua fidelidade. Mas tem de ser. Se hoje em dia há um culto de filmes de terror e de espectáculos impressionantes que, de uma forma ou de outra, sejam capazes de espicaçar a atenção de quem já é indiferente às subtilezas, às suavidades e às elegâncias, por que não observar um pouco os que, à nossa volta, sofrem muito, os que se recolhem na invisibilidade, os que não são nada?

Um dia, em que acariciava a encadernação em couro de um livro precioso no recato da minha biblioteca abençoada, fui atingido pela memória dos meus tempos de estudante e pela ideia romântica de organizar um encontro de ex-colegas do liceu para reatar relações que se tinham partido cerca de 40 anos antes. De um contacto que levou a outro, fui descobrindo o que a vida tinha reservado aos meus condiscípulos: uns tantos professores, médicos, enfermeiros, administradores, um funcionário altamente graduado do Serviço de Informações, um piloto de ralis, um vereador, um deputado-figurante na Assembleia da República, um astronauta, um dono de um restaurante vegetariano mais tarde convertido numa casa de churrascos paraguaios em Loures, um domador, uma especialista em questões de género, um construtor de alaúdes, uma poetisa, um tanoeiro, um manequim feminino.

Faltava-me um colega de quem eu tinha sido amigo, o melhor aluno da turma, a quem todos auguravam um grande futuro, a começar pelos professores. Mas o endereço que eu tinha obtido através do nosso conhecimento comum vegetariano-churrasqueiro, não prometia. Fui ver: era um prédio decrépito de uma rua triste de um bairro problemático, de porta da rua aberta com vidro rachado, escritos nas paredes, escadas sujas, elevador avariado. A campainha não tocava, bati com os nós dos dedos e atendeu-me uma figura magra, de roupão entreaberto, alguns fios de cabelo puxados para trás e olhar ausente de tudo. Não havia nele nada do meu amigo. Por isso desculpei-me pelo equívoco e virei costas, ansioso por voltar à luz.

“Aurélio? És tu?...”, ouvi dizer. Voltei-me e só no esboço do seu sorriso reconheci o meu amigo. “Há quantos anos!... Há quantos anos...”

Convidou-me para entrar. Não lhe dei o abraço que tinha imaginado porque ele não resistiria ao aperto de braços. Fechei a porta até ouvir o trinco queixar-se e acompanhei-o até à cama a que regressou devagar, deitando-se de lado, encolhido. Olhou para mim: “Estás na mesma...” Indicou-me uma cadeira. “Não me reconheceste, pois não?”. Mas já sabia a resposta: “Não...”

A mulher tinha-o abandonado. Tinha perdido o emprego, a casa, o carro, os móveis, tudo o que tinha sido comprado com empréstimos. Encarava aquela como a sua última morada. Uma vizinha fazia-lhe de comer, por caridade.

“A minha mulher precisava de mim, e eu dela. Casámos. Cresceu, cresceu, cresceu, em todas as direcções, até não precisar mais de mim. Cansou-se, fartou-se, queria variedade, queria independência. Levou-me tudo: pratas, pratos, quadros, fotografias, discos. Os livros rasgou os que pôde e ao resto pegou-lhes fogo, como última vingança, e saiu. Enquanto eu dormia, as chamas alastraram à casa e às minhas calças de pijama. À minha alma não, porque a tinha levado com ela também – certamente para a empenhar...” Riu-se sem convicção e desaguou num ataque de tosse.

“Há quanto tempo foi isso, Nestor?”

“Há cinco anos, talvez...”

Aquele corpo mirrado era o que restava do meu amigo e melhor aluno da turma. Parecia um viciado em ópio, um condenado à morte por uma daquelas doenças que roubam tudo quanto há.

“Em que te posso ajudar?”

“Nada. Não podes fazer nada. Não quero nada. Não espero nada. Mas foi bom ver-te...”

“Tens de reagir a isto, pá. Tens de te pôr de pé e de fazer planos. Tens de de voltar a ser quem és, que é muito mais do que isto. Deixa-me dar um pouco de luz à casa...”

Puxei a fita da persiana, que se partiu, fazendo cair de uma só vez, com grande estrondo, aquelas peças que se encaixavam umas nas outras por trás dos vidros. Todo aquele antro era escuridão perpétua.

Com que facilidade se passa dos poderosos perigosos aos insignificantes pacíficos. Se de uns temos de nos proteger, por que não tentar ajudar os que foram do Céu ao Inferno em dez capítulos (ou menos, em versões condensadas), se é que alguma vez conheceram o Céu na Terra e não apenas agruras, azares, doenças, emaranhados negócios de mercadorias, serviços e personalidades, e o temível gelo da solidão. Na órbita dos poderosos há muitos satélites gratos de lhes apanhar as migalhas gordas; na dos que chegaram à desgraça seja porque a sua história estava escrita, seja porque não a souberam reescrever em tempo útil, seja porque deixaram reescrevê-la quem era incompetente ou pouco interessado, nem por isso. Assim, de um momento para o outro, até sem o sabermos, podemos ficar na posição de não poder deixar extinguir a luzinha que resta de uma vida válida, até de a reverter, se formos pára-vento bastante contra os acasos ou as más intenções.

É claro que chega a ser injusto pedir-vos, a vós, mulheres e homens felizes e apreciados todos os dias da vossa vida por aqueles que vos são queridos, honrados e recompensados pelos princípios que seguis, pela lealdade com que sois amigos, pais, filhos, maridos, mulheres e amantes, colegas, subordinados e chefes, que imagineis uma vida tão patética como a de alguém que não soube manter uma família, construir um futuro, nem sequer defender-se sozinho. É de mais pedir que se acredite que se pode não ter nada de seu, nem que seja um telemóvel de penúltima geração. Seria trágico se fosse verosímil. Mas mais trágico ainda se acontecesse a alguém próximo de nós, já que a nós, propriamente ditos, é pouco menos de impossível, atendendo ao que, entretanto, fomos precavidamente carreando para a Suíça, Panamá, Baamas e Liechtenstein.

Felizmente, estamos livres disso, de não termos o que mais queremos. Já lutámos, já estudámos, já poupamos, já nos sacrificámos, justamente para agora, nestes anos maduros, podermos colher os frutos das sementes em tempo lançadas à terra, tal qual matematicamente calculámos. É verdade que há indigentes, sempre houve e haverá, mas esses são-no por negligência, azar, indolência, estupidez ou tendência anti-social. Conhecemo-los talvez por outros nomes, pois há vários, mais ou menos expressivos, mais ou menos correntes: calaceiro, lorpa, mandrião, malandro, madraço, mariola, parvo, morcão, pacóvio, pascácio, patego, pé-descalço, joão-ninguém, joão-fernandes, janeanes, zé-ninguém, zé-das-iscas, zé-dos-anzóis, zé-faz-formas, zé-cuecas, zé-quitólis, zé-da-véstia, zé-godes, jagodes, jangaz, bisbórrias, janistroques. Felizmente, não somos o meu amigo abandonado pela mulher. Nem somos aquela mulher que ali vai, fazendo croché no comboio para esquecer o emprego embrutecedor de onde vem e a casa com um marido embrutecido pelo álcool e pela estupidez natural para onde vai.

Felizmente, não. Mas pergunto-me: nós, as famílias-modelo que saímos nas capas das revistas, os que nos sentamos simultaneamente em vários conselhos de administração de empresas cotadas em bolsa, nós, que ocupamos os raros lugares de conservadores de museus ou “curadores” (mas sem nos curarmos a nós mesmos), nós, os directores-gerais que tudo dirigimos geralmente tão bem, que vivemos no país dos condomínios fechados com as nossas colecções de carros e sapatos de sonho, nós, que nos sentimos realizados profissionalmente, mesmo à custa da realização pessoal, nós, que podemos abrir associações de solidariedade social próximas do poder, que não temos medo de perder o emprego porque não temos emprego, mas apenas terapia ocupacional, que não somos afectados pelo desemprego porque nos é possível montar uma empresa que viva das redes de amigos ou uma loja num centro comercial para vender “novos conceitos”, que temos filhos que cantam ou representam ou “fazem” rádio ou televisão intermutavelmente, numa existência divertidamente polimórfica e polissémica cuja maior dor de cabeça é a de não saber o que lhes “apetece” fazer, nós que sacudimos a depressão com Romanée-Conti, Dalmore ou Macallan e visitas-relâmpago ao MoMA e mais demoradas às lojas da Quinta Avenida, não seremos socialmente co-responsáveis por aqueles que, trabalhando, não podem pagar as suas contas básicas como despesas de representação ou vendendo sentenças judiciais ou aprovando empréstimos bancários ou decidindo adjudicações de obras ou serviços a amigos que lhes vão pagar a velhice? Mesmo que academicamente, não deixo de ver o alcance do papel de cada um no jogo de interdependências que é este tão típico lamaçal. Portanto, só poderia fazer uma coisa: movi os meus vastos recursos, recolhi o meu amigo que ia morrendo em posição fetal, levei-o para o meu castelo e dei-lhe emprego como bibliotecário da minha fundação. Era este final feliz que – bem o sei – o grosso dos meus leitores mais românticos desejavam. E que pode ser melhor do que satisfazer os desejos de quem gosta de nós e, ao mesmo tempo, restaurar à condição funcional um amigo bibliófilo e um leal conselheiro?...

Correio premente

De Honório Riscado, lugar de Pés Escaldados, freguesia de Piódão, concelho de Arganil: “Notei que cometeu um erro. No seu artigo sobre bolachas que li citou um ditado popular escrevendo ‘cada terra com seu uso, todas, todas com Sical”, quando não existe tal. O que me cheira é a esquema publicitário para arrecadar mais receitas, a juntar ao que já lhe pagam, que não deve ser tão pouco como isso, faço uma pequena ideia... O ditado é ‘cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso’. Mais respeito pelos leitores, mesmo os de ocasião, como eu, que andava à procura da crónica do jogo Sporting-Benfica e encontrei o seu texto ‘Cachorro-quente’. Haja algum decoro, agora que até ao sr. engenheiro Sócrates querem por força descobrir podres e dizer que ele não era lá muito honesto. Ai não era? Quem disse? Que eu saiba, o trânsito ainda não foi julgado, para poderem atacar o homem. E os outros? E o Dias Loureiro? E o Alves Reis? E a D. Branca? E o Apito Dourado? E o Padre Frederico que fugiu para o Brasil? E o Abade de Priscos? E o Buíça? E o marquês de Pombal? E o Lance Armstrong? E o Capitão Roby? E a Carbonária? Pois é, destes ninguém fala. São sempre os mesmos. Falem do que sabem!”

Por ordem: não existe nenhum contrato comercial de patrocínio formalizado enquanto tal que me tenha por parte contraente. Apenas tive um lapsus linguae ou, melhor, um lapsus calami que me saiu em forma de mensagem subliminar, mas nenhuma importância de monta foi depositada na minha conta bancária proveniente da empresa em apreço. Só tenho uma conta bancária, toda a vida tive esta conta bancária, vivo de um empréstimo que contraí na Caixa Geral de Depósitos e tenho o mesmo carro, um Bentley Continental, há 20 anos. Nunca fui um homem de posses. Até o castelo com fosso e crocodilo em que vivo e que é sede da minha fundação não é meu. É de um amigo de infância – esse, sim, homem de posses – que mo emprestou porque custa uma fortuna para pôr a temperatura ambiente interior a níveis de degelo. Eu sei muito bem disso, porque todos os Invernos lhe peço dinheiro emprestado para pagar a nafta do aquecimento central.

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