De que é nome Bruno de Carvalho?
É indispensável que se intervenha no modo como a indústria do futebol em geral se governa, sendo um dos objectivos de tal intervenção simples de enunciar: é preciso dar mais poder aos futebolistas.
Parece ser hoje consensual que é preciso pôr termo às crescentes manifestações de ódio protagonizadas pelos principais dirigentes desportivos portugueses, mais o seu cortejo de adeptos ultras e outros tantos assessores de comunicação. E, todavia, a possibilidade de empreendermos mais mecanismos policiais e judiciais de combate a essas mesmas manifestações não é ilimitada. Num estado de direito democrático, não é simplesmente possível eliminarmos a liberdade de expressão de personagens como Pedro Guerra, interditarmos o direito de associação que assiste à formação de uma claque como os Superdragões ou destituirmos Bruno de Carvalho do lugar em que os sócios do Sporting em má hora o colocaram. Por sua vez, medidas preventivas tributárias do princípio do “Estado de excepção” – às quais, por exemplo, o governo grego recentemente recorreu, suspendendo o campeonato profissional por algum tempo, em nome da segurança pública – têm, por definição, uma duração limitada.
Entretanto, há seguramente iniciativas importantes que um governo pode e deve tomar em resposta aos acontecimentos que tiveram lugar na Academia do Sporting, em Alcochete. O que se passou nessa ocasião deixou à vista de todos nós qual é o elo mais fraco da cadeia de poderes que hoje comanda e por que se governa o futebol profissional em Portugal: o jogador de futebol. E o facto de o conflito em questão ser interno a um clube sugere-nos que o problema que temos pela frente é mais do que o resultado de um simples exacerbamento de rivalidades clubísticas, não bastando ao governo intervir no modo como os dirigentes dos diferentes clubes entre si se relacionam. É indispensável que se intervenha, também, no modo como a indústria do futebol se governa e que tal intervenção cumpra um objectivo simples: dar mais poder aos futebolistas.
A concretização de tal objectivo implicará medidas de fundo que garantam aos futebolistas os mesmos direitos que assistem à generalidade dos trabalhadores, nomeadamente o direito à liberdade de mudar de emprego. É na negação deste direito que radica o despotismo e violência que os dirigentes reservam aos jogadores. Com efeito, na história e na actualidade do futebol português, abundam os exemplos do autoritarismo que os presidentes exercem sobre os “seus” jogadores. Exemplos que vão desde o condicionamento da liberdade de expressão, forçando os atletas a um silêncio ou a um laconismo que contrasta com a verborreia dirigente, até ao recurso à coerção física, praticada por claques milicianas que ora se dedicam à vigilância do comportamento pós-laboral dos jogadores ora tratam de prescrever “correctivos” que penalizem a sua performance laboral.
Ou seja, o que se passou no Sporting ao longo destas últimas semanas, desde a censura que se abateu sobre os jogadores quando estes redigiram um texto colectivo até às agressões da passada terça-feira, na sequência da derrota com o Marítimo, é senão um exemplo extremo de uma cultura de poder vigente em boa parte do sistema futebolístico profissional português e que um Estado democrático não pode admitir. Bruno de Carvalho é, seguramente, um caso monstruoso, mas melhor faremos em intervir igualmente sobre a realidade que o tornou possível.
A favor de uma tal intervenção é possível contarmos com a argumentação sustentada de não poucos juristas que têm questionado a legalidade de mecanismos como as célebres “cláusulas de rescisão” ou o próprio princípio do “passe do jogador”. De resto, em Portugal, o consenso político para uma mudança destas pode ser garantido a partir de perspectivas jurídicas inspiradas tanto no quadro constitucional português, e de pendor mais social-democratizante, como em concepções de inclinação mais liberal, ancoradas no direito europeu. Mais do que palavras pueris sobre a putativa amabilidade do desporto e a sua “essência” pacífica ou do que medidas repressivas que punam este e aquele comportamento criminal e outros tantos “excessos”, uma mudança na cultura futebolística em Portugal ou passará por intervenções nas relações de poder que fazem a sua economia ou não acontecerá.