Todas as famílias (inventadas) dão filmes felizes à sua maneira

Os filmes, ou alguns deles, são uma alternativa. Qualquer que seja o grau de empatia que se consiga estabelecer com eles, ­­­esse mundo é apetecível em Lazzaro Felice, de Alice Rohrwacher, e Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda, títulos da competição de Cannes.

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Alice Rohrwacher e Adriano Tardiolo e Alba Rohrwacher. Reuters/STEPHANE MAHE
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Nicoletta Braschi LUSA/IAN LANGSDON
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Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda 2018 FUJI TELEVISION NETWORK/GAGA CORPORATION/AOI PRO. INC. ALL RIGHTS RESERVED
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Hirokazu Kore-eda, Ladrões, Lily Franky
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É uma coincidência feliz que os actores de Lazzaro Felice, de Alice Rohrwacher, e de Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda, tenham sentido que fabricaram uma nova família com os filmes. Foi o que verbalizaram quando apresentaram à imprensa aquilo em que participaram. É feliz mas não é sequer uma coincidência, dado que os dois títulos do dia da competição de Cannes inventam, com os actores e com a equipa, possibilidades para um grupo para além das contingências. Para além do tempo, no caso da “realíssima fábula“, como descreveu a italiana. Para além da sociedade e das suas regras, como disse o japonês.

Alice Rohrwacher está pela terceira vez em Cannes, a segunda em competição. Em 2014, o júri de Jane Campion deu o Grande Prémio a O País das Maravilhas. Lazzaro Felice é feito das mesmas coisas, por exemplo de uma presença forte da realidade, dos objectos e dos corpos, porque documenta, como no caso anterior, um mundo. Mesmo que seja um mundo a desaparecer, o que no caso dos filmes da italiana é o desaparecimento do mundo camponês e das suas alianças – numa quinta, em Lazzaro Felice, uma marquesa mantém os seus operários presos a rituais antigos, como se lhes tapasse os olhos ao progresso.

Essas vésperas do desaparecimento põem tudo, no cinema de Alice Rohrwacher, em fuga. Inclusivamente os protocolos habituais da participação dos actores, que aqui são Nicoletta Braschi, Alba Rohrwacher ou Sergi Lopez, misturados com não-profissionais. A realidade não é contida, tem os pés noutro mundo, já o cinema de Alice apresenta ao espectador sedutoras experiências de desfoque.

O mundo muda, a bolha rebenta, os proletários são expostos à cidade, mas o que se instala é uma distopia de intolerância. Tudo mudou para tudo ficar na mesma, a História repete-se. O jovem Lazzaro, enormes olhos inocentes (Adriano Tardiolo, a quem não devem dar mais filmes para ele não ser actor e ficar como presença que visitou o cinema), é a figura que permanece igual ao longo dos 30 anos que a história do filme consome. Serve a  Alice Rohrwacher para uma viagem no tempo que investiga as possibilidades de sobrevivência da religião do humano. Aqui, Alice arrisca na alegoria, impõe-a à experiência do espectador. É um filme que sai da sua casca, mas não se experimenta essa ousadia com a mesma sensação de desfoque do filme anterior. Mais ousado, é também mais focado – estranha coisa esta para se obstar a um filme...

Shoplifters, que nada tem que ver com a alegoria e permanece dentro da miniatura que é a família, talvez seja o melhor dos últimos filmes do cineasta japonês. É o mais próximo de Nobody Knows/Ninguém Sabe (2004) na forma como faz do espaço familiar lugar de reinvenções veementes, e é dos últimos filmes do japonês aquele que resgata o seu cinema à música ambiente com que vem decorando os festivais (O Terceiro Assassinato, que se estreou há semanas em Portugal, competiu no último Festival de Veneza).

É uma história de família, daquelas a que talvez todos queiramos pertencer pelas cores e sentimentos que são não só a sua promessa mas a sua realidade – toda ela inventada, claro. Porque é uma família que se formou pelo crime, pelo delito — e o roubo é apenas um deles –, é uma família recomposta com quem já falhou antes no casamento ou com quem foi vítima de abuso. É família com pai, mãe, filhos e avó, que se não o são na legalidade (como disse o realizador, esta família não podia existir na sociedade japonesa – nem, obviamente, em qualquer outra), são-no na realidade que trataram de inventar. Mesmo que Shoplifters no final levante os olhos para o que está à volta, o seu sortilégio é acreditar na alternativa que inventa.

Os filmes, alguns deles, são mesmo alternativa. Qualquer que seja o grau de empatia que se consiga estabelecer com eles, o que  Alice Rohrwacher e Hirokazu Kore-eda inventaram é apetecível.

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